Documentários nacionais se fortalecem e ganham espaço no streaming durante a pandemia


O produtor Evandro Fióti de 'AmarElo - É Tudo Pra Ontem', a diretora Juliana Vicente, de 'Afronta!', e Petra Costa de 'Democracia em Vertigem' comentam o crescimento do gênero e seu potencial no mundo

Por Leandro Nunes

Sempre presente em festivais e mostras de cinema pelo mundo, não é raro que documentários fossem ofuscados pelo sucesso das histórias de ficção e pelos rostos famosos na tela. Ao escolher a realidade como inspiração, o gênero se faz na mistura de ponto de vista com o improvável. Com o documentário Democracia em Vertigem, de Petra Costa, última nomeação brasileira de um filme ao Oscar, a cena audiovisual recebeu um gás para ir além. Deu voz a temáticas ligadas à negritude, e espaço nas grandes plataformas de streaming. Mas nem sempre foi assim. 

Pandemia.'O audiovisual se tornou um abrigo', diz Evandro Fióti, produtor de 'AmarElo' Foto: JEF DELGADO

Quando a diretora Juliana Vicente estreou o curta Cores e Botas (2010), o cinema ainda representava um campo de batalha por espaço, conta ao Estadão. “Eu sabia que nas produtoras tradicionais, comandadas por homens brancos, eu não ia conseguir contar minhas histórias”, diz a responsável pela produtora Preta Portê Filmes. Com roteiro simples, o curta contava a saga de uma menina negra que tinha o sonho de se tornar paquita da Xuxa. Durante um concurso escolar, a garota percebe a sutileza do racismo ao ser considerada uma “paquita exótica”, por uma das juradas.

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Juliana também é o nome que entrevistou artistas, pesquisadores, cineastas, estilistas e produtores negros e negras para o documentário Afronta!, disponível na Netflix. A cada episódio, figuras brasileiras narram suas experiências ao empreender em negócios e os desafio de um mercado com forte presença masculina nas decisões de poder. Entre as entrevistas, nomes como a atriz e diretora Grace Passô, as cantoras Liniker e Karol Conka, e a deputada estadual Erica Malunguinho. “Na época, meu pai falava para eu esperar e aprender nessas produtoras, mas eu sabia que aquilo ia matar minha vontade de fazer cinema”, aponta. 

Visão. Juliana Vicente, da Preta Portê Filmes, diretora de 'Afronta!', com relatos de artistas e pensadores negros Foto: PRETA PORTÊ FILMES

Enquanto a pauta do racismo e da negritude ganharam toda força possível em 2020, a diretora de Afronta! entende que seu documentário já estava pronto, antes mesmo de gravá-lo. “No começo, eu falava que era um documentário sobre meus amigos e quem mais chegava para falar. Percebi que o assunto já estava lançado. Em comparação com outras áreas, o rap é mais esperto quando se fala em conexão.”

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Para o músico e produtor Evandro Fióti, a pandemia transformou o espaço do streaming, e o gênero documentário foi recebido de braços abertos. “O audiovisual se tornou um abrigo. Muitos artistas estão revendo seus trabalhos e o considerando como nova ferramenta”, afirma, em entrevista ao Estadão

Embora um pouco estacionado, o cinema ainda vai continuar sentindo o impacto da pandemia, mas Petra Costa afirma que o lugar sempre será a casa da sétima arte. “Acredito que o cinema continua se reinventando e se adaptando aos novos contextos. E torço para que as salas de cinema continuem oferecendo uma experiência”, acrescenta. 

Foi o que o irmão do rapper Emicida com o documentário AmarElo – É tudo Pra Ontem, lançado neste ano na Netflix. Uma mescla de show no Teatro Municipal de São Paulo com um resgate histórico da influência negra na música e nas artes brasileira, o filme ambicioso ganhou destaque na plataforma e nas redes sociais. Uma chance de rever a ancestralidade negra que formou a cultura popular do nosso País, mesmo que às vezes tenha sido tratada como criminosa por isso. “O funk, o hip hop, enfrentam hoje a mesma discriminação do samba, considerado vadiagem no passado”, lembra Fióti. “A intenção do documentário foi compreender que, se o curso da história não for corrigido, corremos o risco de perpetuar a desigualdade.”

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Evandro Fióti, produtor de 'AmarElo: É Tudo Pra Ontem', Foto: PEDRO MARGHERITO

O documentário faz parte de mais um projeto de Fióti com Laboratório Fantasma, empreendimento criado há 11 anos, e cada vez mais híbrido, para gerenciar os negócios de música, moda, entretenimento e agora audiovisual, ao lado do irmão Emicida. 

Durante a pandemia, Fióti percebeu que a receita de shows ainda representava grande parte do faturamento. Sem a chance de realizar eventos presenciais, a solução era ser cada vez mais mutante. Em abril, o lançamento do disco de Rael foi dentro de um simulador da vida real, o game Avakin Life, assistido por 602 mil pessoas – ou avatares. “A vanguarda da Semana de 1922, narrada no documentário, tem a ver com o futuro que queremos. Inspirar a juventude da periferia faz parte disso”, diz Fióti.

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Para a cineasta Petra, Democracia em Vertigem abriu os olhos da produção de documentários para o potencial do Brasil nas premiações mundiais. “Havia um preconceito enorme contra a categoria de documentários, e antes desta nomeação lembro muitas vezes de ouvir que era impossível nomearem um documentário como o representante brasileiro. Talvez a nomeação do documentário tenha aberto a consciência de alguns ao potencial desse gênero.”

'Democracia em Vertigem'. Indicação ao Oscar abriu portas Foto: NETFLIX

‘A realidade está superando a ficção’, diz a cineasta Petra Costa

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A nomeação de ‘Democracia em Vertigem’ para o Oscar ampliou uma discussão sobre o tema da política. Como você avalia a repercussão do documentário? 

Trabalho com documentários desde 2004 e, profissionalmente, desde 2009. Pretendo continuar explorando esse gênero, ainda mais nos tempos atuais, em que realidade está constantemente superando a ficção. 

O que achou da escolha de Babenco – Alguém Tem que Ouvir o Coração e Dizer: Parou, de Bárbara Paz, para representar o Brasil no Oscar 2021? Temos chance?

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Fiquei muito feliz com essa nomeação. Havia um preconceito enorme contra a categoria de documentários. Babenco é um filme belíssimo, Bárbara Paz fez um filme-poema, que emociona intensamente. Acredito que o filme tem chances tanto pela sua poesia quanto pela notoriedade que o próprio Babenco teve em Hollywood. 

Aliás, documentário é um gênero que te agrada? O que tem visto ultimamente?

Sim, gosto muito de documentários. Alguns recentes que vi e gostei são Êxtase da Moara Passoni (que sou suspeita, pois sou a produtora); Collective, do Alexander Nanau; Dick John is Dead, da Kirsten Johnson; e Bem-Vindo a Chechênia são os que mais me impactaram, além de Babenco.

Está trabalhando em algo novo? Estou trabalhando num documentário chamado Dystopia, que se iniciou na pandemia e tem se tornado sobre esse novo Brasil que muitos de nós estamos ainda tentando entender.

DESTAQUES

A pandemia pode até ter reduzido os espaços de produção do audiovisual mas não foi capaz de impedir a circulação de documentários.

Na plataforma da Netflix, somente este ano, quase todos os assinantes da América Latina curtiram um documentário. Segundo a plataforma a base audiência foi de 96%, com base na porcentagem de contas ativas na América Latina, entre janeiro e outubro de 2020. Confira alguns do principais documentários por países. 

Argentina ‘Boca Juniors Confidencial’ ‘Fangio: O Rei das Pistas’ ‘Nisman: O Promotor, a Presidente e o Espião’ ‘Quem Matou María Marta?’  ‘Guillermo Vilas: Esta Vitória é Sua’ ‘Street Food: America Latina’ ‘Chef’s Table’

México ‘Passarinheiros’ ‘Lorena, la de pies ligeros ‘ ‘3 minutos, um abraço’ ‘Cozinha do Bem’ ‘43 Jovens de Ayotzinapa’ ‘Belas da Noite’ ‘Mexicanos de Bronze’ ‘Camino a Roma’ ‘As Três Mortes de Marisela’

Brasil ‘Afronta!’ ‘Democracia em Vertigem’ ‘Senna: O Brasileiro, O Herói, O Campeão’ ‘Elena’  ‘Bandidos na TV’ ‘Guerras do Brasil.doc’ ‘Raul - O Início, o fim e o meio’ ‘Com a Palavra, Arnaldo Antunes’ ‘Vinicius de Moraes’ ‘Barão Vermelho - Por que a gente é assim?’ ‘O Barato de Iacanga’ ‘Axé - Canto do Povo de um Lugar’ ‘Estou me guardando para quando o carnaval chegar’ ‘Sepultura - Endurance’ ‘Sergio’ ‘Anavitória: Araguaína - Las ‘Vegas’ ‘Ana e Vitória’ ‘Emicida: AmarElo - É Tudo pra Ontem’ ‘Anitta: Made in Honorio’

Sempre presente em festivais e mostras de cinema pelo mundo, não é raro que documentários fossem ofuscados pelo sucesso das histórias de ficção e pelos rostos famosos na tela. Ao escolher a realidade como inspiração, o gênero se faz na mistura de ponto de vista com o improvável. Com o documentário Democracia em Vertigem, de Petra Costa, última nomeação brasileira de um filme ao Oscar, a cena audiovisual recebeu um gás para ir além. Deu voz a temáticas ligadas à negritude, e espaço nas grandes plataformas de streaming. Mas nem sempre foi assim. 

Pandemia.'O audiovisual se tornou um abrigo', diz Evandro Fióti, produtor de 'AmarElo' Foto: JEF DELGADO

Quando a diretora Juliana Vicente estreou o curta Cores e Botas (2010), o cinema ainda representava um campo de batalha por espaço, conta ao Estadão. “Eu sabia que nas produtoras tradicionais, comandadas por homens brancos, eu não ia conseguir contar minhas histórias”, diz a responsável pela produtora Preta Portê Filmes. Com roteiro simples, o curta contava a saga de uma menina negra que tinha o sonho de se tornar paquita da Xuxa. Durante um concurso escolar, a garota percebe a sutileza do racismo ao ser considerada uma “paquita exótica”, por uma das juradas.

Juliana também é o nome que entrevistou artistas, pesquisadores, cineastas, estilistas e produtores negros e negras para o documentário Afronta!, disponível na Netflix. A cada episódio, figuras brasileiras narram suas experiências ao empreender em negócios e os desafio de um mercado com forte presença masculina nas decisões de poder. Entre as entrevistas, nomes como a atriz e diretora Grace Passô, as cantoras Liniker e Karol Conka, e a deputada estadual Erica Malunguinho. “Na época, meu pai falava para eu esperar e aprender nessas produtoras, mas eu sabia que aquilo ia matar minha vontade de fazer cinema”, aponta. 

Visão. Juliana Vicente, da Preta Portê Filmes, diretora de 'Afronta!', com relatos de artistas e pensadores negros Foto: PRETA PORTÊ FILMES

Enquanto a pauta do racismo e da negritude ganharam toda força possível em 2020, a diretora de Afronta! entende que seu documentário já estava pronto, antes mesmo de gravá-lo. “No começo, eu falava que era um documentário sobre meus amigos e quem mais chegava para falar. Percebi que o assunto já estava lançado. Em comparação com outras áreas, o rap é mais esperto quando se fala em conexão.”

Para o músico e produtor Evandro Fióti, a pandemia transformou o espaço do streaming, e o gênero documentário foi recebido de braços abertos. “O audiovisual se tornou um abrigo. Muitos artistas estão revendo seus trabalhos e o considerando como nova ferramenta”, afirma, em entrevista ao Estadão

Embora um pouco estacionado, o cinema ainda vai continuar sentindo o impacto da pandemia, mas Petra Costa afirma que o lugar sempre será a casa da sétima arte. “Acredito que o cinema continua se reinventando e se adaptando aos novos contextos. E torço para que as salas de cinema continuem oferecendo uma experiência”, acrescenta. 

Foi o que o irmão do rapper Emicida com o documentário AmarElo – É tudo Pra Ontem, lançado neste ano na Netflix. Uma mescla de show no Teatro Municipal de São Paulo com um resgate histórico da influência negra na música e nas artes brasileira, o filme ambicioso ganhou destaque na plataforma e nas redes sociais. Uma chance de rever a ancestralidade negra que formou a cultura popular do nosso País, mesmo que às vezes tenha sido tratada como criminosa por isso. “O funk, o hip hop, enfrentam hoje a mesma discriminação do samba, considerado vadiagem no passado”, lembra Fióti. “A intenção do documentário foi compreender que, se o curso da história não for corrigido, corremos o risco de perpetuar a desigualdade.”

Evandro Fióti, produtor de 'AmarElo: É Tudo Pra Ontem', Foto: PEDRO MARGHERITO

O documentário faz parte de mais um projeto de Fióti com Laboratório Fantasma, empreendimento criado há 11 anos, e cada vez mais híbrido, para gerenciar os negócios de música, moda, entretenimento e agora audiovisual, ao lado do irmão Emicida. 

Durante a pandemia, Fióti percebeu que a receita de shows ainda representava grande parte do faturamento. Sem a chance de realizar eventos presenciais, a solução era ser cada vez mais mutante. Em abril, o lançamento do disco de Rael foi dentro de um simulador da vida real, o game Avakin Life, assistido por 602 mil pessoas – ou avatares. “A vanguarda da Semana de 1922, narrada no documentário, tem a ver com o futuro que queremos. Inspirar a juventude da periferia faz parte disso”, diz Fióti.

Para a cineasta Petra, Democracia em Vertigem abriu os olhos da produção de documentários para o potencial do Brasil nas premiações mundiais. “Havia um preconceito enorme contra a categoria de documentários, e antes desta nomeação lembro muitas vezes de ouvir que era impossível nomearem um documentário como o representante brasileiro. Talvez a nomeação do documentário tenha aberto a consciência de alguns ao potencial desse gênero.”

'Democracia em Vertigem'. Indicação ao Oscar abriu portas Foto: NETFLIX

‘A realidade está superando a ficção’, diz a cineasta Petra Costa

A nomeação de ‘Democracia em Vertigem’ para o Oscar ampliou uma discussão sobre o tema da política. Como você avalia a repercussão do documentário? 

Trabalho com documentários desde 2004 e, profissionalmente, desde 2009. Pretendo continuar explorando esse gênero, ainda mais nos tempos atuais, em que realidade está constantemente superando a ficção. 

O que achou da escolha de Babenco – Alguém Tem que Ouvir o Coração e Dizer: Parou, de Bárbara Paz, para representar o Brasil no Oscar 2021? Temos chance?

Fiquei muito feliz com essa nomeação. Havia um preconceito enorme contra a categoria de documentários. Babenco é um filme belíssimo, Bárbara Paz fez um filme-poema, que emociona intensamente. Acredito que o filme tem chances tanto pela sua poesia quanto pela notoriedade que o próprio Babenco teve em Hollywood. 

Aliás, documentário é um gênero que te agrada? O que tem visto ultimamente?

Sim, gosto muito de documentários. Alguns recentes que vi e gostei são Êxtase da Moara Passoni (que sou suspeita, pois sou a produtora); Collective, do Alexander Nanau; Dick John is Dead, da Kirsten Johnson; e Bem-Vindo a Chechênia são os que mais me impactaram, além de Babenco.

Está trabalhando em algo novo? Estou trabalhando num documentário chamado Dystopia, que se iniciou na pandemia e tem se tornado sobre esse novo Brasil que muitos de nós estamos ainda tentando entender.

DESTAQUES

A pandemia pode até ter reduzido os espaços de produção do audiovisual mas não foi capaz de impedir a circulação de documentários.

Na plataforma da Netflix, somente este ano, quase todos os assinantes da América Latina curtiram um documentário. Segundo a plataforma a base audiência foi de 96%, com base na porcentagem de contas ativas na América Latina, entre janeiro e outubro de 2020. Confira alguns do principais documentários por países. 

Argentina ‘Boca Juniors Confidencial’ ‘Fangio: O Rei das Pistas’ ‘Nisman: O Promotor, a Presidente e o Espião’ ‘Quem Matou María Marta?’  ‘Guillermo Vilas: Esta Vitória é Sua’ ‘Street Food: America Latina’ ‘Chef’s Table’

México ‘Passarinheiros’ ‘Lorena, la de pies ligeros ‘ ‘3 minutos, um abraço’ ‘Cozinha do Bem’ ‘43 Jovens de Ayotzinapa’ ‘Belas da Noite’ ‘Mexicanos de Bronze’ ‘Camino a Roma’ ‘As Três Mortes de Marisela’

Brasil ‘Afronta!’ ‘Democracia em Vertigem’ ‘Senna: O Brasileiro, O Herói, O Campeão’ ‘Elena’  ‘Bandidos na TV’ ‘Guerras do Brasil.doc’ ‘Raul - O Início, o fim e o meio’ ‘Com a Palavra, Arnaldo Antunes’ ‘Vinicius de Moraes’ ‘Barão Vermelho - Por que a gente é assim?’ ‘O Barato de Iacanga’ ‘Axé - Canto do Povo de um Lugar’ ‘Estou me guardando para quando o carnaval chegar’ ‘Sepultura - Endurance’ ‘Sergio’ ‘Anavitória: Araguaína - Las ‘Vegas’ ‘Ana e Vitória’ ‘Emicida: AmarElo - É Tudo pra Ontem’ ‘Anitta: Made in Honorio’

Sempre presente em festivais e mostras de cinema pelo mundo, não é raro que documentários fossem ofuscados pelo sucesso das histórias de ficção e pelos rostos famosos na tela. Ao escolher a realidade como inspiração, o gênero se faz na mistura de ponto de vista com o improvável. Com o documentário Democracia em Vertigem, de Petra Costa, última nomeação brasileira de um filme ao Oscar, a cena audiovisual recebeu um gás para ir além. Deu voz a temáticas ligadas à negritude, e espaço nas grandes plataformas de streaming. Mas nem sempre foi assim. 

Pandemia.'O audiovisual se tornou um abrigo', diz Evandro Fióti, produtor de 'AmarElo' Foto: JEF DELGADO

Quando a diretora Juliana Vicente estreou o curta Cores e Botas (2010), o cinema ainda representava um campo de batalha por espaço, conta ao Estadão. “Eu sabia que nas produtoras tradicionais, comandadas por homens brancos, eu não ia conseguir contar minhas histórias”, diz a responsável pela produtora Preta Portê Filmes. Com roteiro simples, o curta contava a saga de uma menina negra que tinha o sonho de se tornar paquita da Xuxa. Durante um concurso escolar, a garota percebe a sutileza do racismo ao ser considerada uma “paquita exótica”, por uma das juradas.

Juliana também é o nome que entrevistou artistas, pesquisadores, cineastas, estilistas e produtores negros e negras para o documentário Afronta!, disponível na Netflix. A cada episódio, figuras brasileiras narram suas experiências ao empreender em negócios e os desafio de um mercado com forte presença masculina nas decisões de poder. Entre as entrevistas, nomes como a atriz e diretora Grace Passô, as cantoras Liniker e Karol Conka, e a deputada estadual Erica Malunguinho. “Na época, meu pai falava para eu esperar e aprender nessas produtoras, mas eu sabia que aquilo ia matar minha vontade de fazer cinema”, aponta. 

Visão. Juliana Vicente, da Preta Portê Filmes, diretora de 'Afronta!', com relatos de artistas e pensadores negros Foto: PRETA PORTÊ FILMES

Enquanto a pauta do racismo e da negritude ganharam toda força possível em 2020, a diretora de Afronta! entende que seu documentário já estava pronto, antes mesmo de gravá-lo. “No começo, eu falava que era um documentário sobre meus amigos e quem mais chegava para falar. Percebi que o assunto já estava lançado. Em comparação com outras áreas, o rap é mais esperto quando se fala em conexão.”

Para o músico e produtor Evandro Fióti, a pandemia transformou o espaço do streaming, e o gênero documentário foi recebido de braços abertos. “O audiovisual se tornou um abrigo. Muitos artistas estão revendo seus trabalhos e o considerando como nova ferramenta”, afirma, em entrevista ao Estadão

Embora um pouco estacionado, o cinema ainda vai continuar sentindo o impacto da pandemia, mas Petra Costa afirma que o lugar sempre será a casa da sétima arte. “Acredito que o cinema continua se reinventando e se adaptando aos novos contextos. E torço para que as salas de cinema continuem oferecendo uma experiência”, acrescenta. 

Foi o que o irmão do rapper Emicida com o documentário AmarElo – É tudo Pra Ontem, lançado neste ano na Netflix. Uma mescla de show no Teatro Municipal de São Paulo com um resgate histórico da influência negra na música e nas artes brasileira, o filme ambicioso ganhou destaque na plataforma e nas redes sociais. Uma chance de rever a ancestralidade negra que formou a cultura popular do nosso País, mesmo que às vezes tenha sido tratada como criminosa por isso. “O funk, o hip hop, enfrentam hoje a mesma discriminação do samba, considerado vadiagem no passado”, lembra Fióti. “A intenção do documentário foi compreender que, se o curso da história não for corrigido, corremos o risco de perpetuar a desigualdade.”

Evandro Fióti, produtor de 'AmarElo: É Tudo Pra Ontem', Foto: PEDRO MARGHERITO

O documentário faz parte de mais um projeto de Fióti com Laboratório Fantasma, empreendimento criado há 11 anos, e cada vez mais híbrido, para gerenciar os negócios de música, moda, entretenimento e agora audiovisual, ao lado do irmão Emicida. 

Durante a pandemia, Fióti percebeu que a receita de shows ainda representava grande parte do faturamento. Sem a chance de realizar eventos presenciais, a solução era ser cada vez mais mutante. Em abril, o lançamento do disco de Rael foi dentro de um simulador da vida real, o game Avakin Life, assistido por 602 mil pessoas – ou avatares. “A vanguarda da Semana de 1922, narrada no documentário, tem a ver com o futuro que queremos. Inspirar a juventude da periferia faz parte disso”, diz Fióti.

Para a cineasta Petra, Democracia em Vertigem abriu os olhos da produção de documentários para o potencial do Brasil nas premiações mundiais. “Havia um preconceito enorme contra a categoria de documentários, e antes desta nomeação lembro muitas vezes de ouvir que era impossível nomearem um documentário como o representante brasileiro. Talvez a nomeação do documentário tenha aberto a consciência de alguns ao potencial desse gênero.”

'Democracia em Vertigem'. Indicação ao Oscar abriu portas Foto: NETFLIX

‘A realidade está superando a ficção’, diz a cineasta Petra Costa

A nomeação de ‘Democracia em Vertigem’ para o Oscar ampliou uma discussão sobre o tema da política. Como você avalia a repercussão do documentário? 

Trabalho com documentários desde 2004 e, profissionalmente, desde 2009. Pretendo continuar explorando esse gênero, ainda mais nos tempos atuais, em que realidade está constantemente superando a ficção. 

O que achou da escolha de Babenco – Alguém Tem que Ouvir o Coração e Dizer: Parou, de Bárbara Paz, para representar o Brasil no Oscar 2021? Temos chance?

Fiquei muito feliz com essa nomeação. Havia um preconceito enorme contra a categoria de documentários. Babenco é um filme belíssimo, Bárbara Paz fez um filme-poema, que emociona intensamente. Acredito que o filme tem chances tanto pela sua poesia quanto pela notoriedade que o próprio Babenco teve em Hollywood. 

Aliás, documentário é um gênero que te agrada? O que tem visto ultimamente?

Sim, gosto muito de documentários. Alguns recentes que vi e gostei são Êxtase da Moara Passoni (que sou suspeita, pois sou a produtora); Collective, do Alexander Nanau; Dick John is Dead, da Kirsten Johnson; e Bem-Vindo a Chechênia são os que mais me impactaram, além de Babenco.

Está trabalhando em algo novo? Estou trabalhando num documentário chamado Dystopia, que se iniciou na pandemia e tem se tornado sobre esse novo Brasil que muitos de nós estamos ainda tentando entender.

DESTAQUES

A pandemia pode até ter reduzido os espaços de produção do audiovisual mas não foi capaz de impedir a circulação de documentários.

Na plataforma da Netflix, somente este ano, quase todos os assinantes da América Latina curtiram um documentário. Segundo a plataforma a base audiência foi de 96%, com base na porcentagem de contas ativas na América Latina, entre janeiro e outubro de 2020. Confira alguns do principais documentários por países. 

Argentina ‘Boca Juniors Confidencial’ ‘Fangio: O Rei das Pistas’ ‘Nisman: O Promotor, a Presidente e o Espião’ ‘Quem Matou María Marta?’  ‘Guillermo Vilas: Esta Vitória é Sua’ ‘Street Food: America Latina’ ‘Chef’s Table’

México ‘Passarinheiros’ ‘Lorena, la de pies ligeros ‘ ‘3 minutos, um abraço’ ‘Cozinha do Bem’ ‘43 Jovens de Ayotzinapa’ ‘Belas da Noite’ ‘Mexicanos de Bronze’ ‘Camino a Roma’ ‘As Três Mortes de Marisela’

Brasil ‘Afronta!’ ‘Democracia em Vertigem’ ‘Senna: O Brasileiro, O Herói, O Campeão’ ‘Elena’  ‘Bandidos na TV’ ‘Guerras do Brasil.doc’ ‘Raul - O Início, o fim e o meio’ ‘Com a Palavra, Arnaldo Antunes’ ‘Vinicius de Moraes’ ‘Barão Vermelho - Por que a gente é assim?’ ‘O Barato de Iacanga’ ‘Axé - Canto do Povo de um Lugar’ ‘Estou me guardando para quando o carnaval chegar’ ‘Sepultura - Endurance’ ‘Sergio’ ‘Anavitória: Araguaína - Las ‘Vegas’ ‘Ana e Vitória’ ‘Emicida: AmarElo - É Tudo pra Ontem’ ‘Anitta: Made in Honorio’

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