Opinião|Maurício Kubrusly não se lembra de quem é, do que foi, do que fez - e seu documentário é tocante


‘Kubrusly - Mistério Sempre há de Pintar por aí’, que estreia no Globoplay, celebra a carreira de repórter que marcou época no ‘Fantástico’, sofre de demência frontotemporal e tem na música sua ponte para o mundo

Por Luiz Zanin Oricchio

Maurício Kubrusly, um dos jornalistas mais conhecidos no País, em especial pelo quadro Me Leva Brasil, mantido no Fantástico, na Rede Globo, de 2000 a 2017, ganha agora um documentário. Kubrusly - Mistério Sempre Há de Pintar por Aí chega ao Globoplay nesta quarta, 4, depois de uma estreia que comoveu, dias atrás, a plateia da Mostra de Cinema de Gostoso, no Rio Grande do Norte.

E por que seria tão tocante um filme dedicado a um profissional de imprensa, apesar de bastante conhecido no País por seu trabalho na TV? Por uma circunstância bastante triste, provavelmente: aos 79 anos de idade, Kubrusly sofre de demência frontotemporal, doença que afeta a cognição e a memória. Essa pessoa tão familiar ao público pela inteligência rápida de suas entrevistas e o humor incomum de suas reportagens, já não se lembra de quem é, do que foi, do que fez ou escreveu.

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No entanto, o doc, assinado por Caio Cavechini e Evelyn Kuriki, nada tem de depressivo. A dupla, na verdade um casal, busca uma aproximação cheia de empatia com uma pessoa que, os cineastas confessam, nunca sabem direito como vai reagir ao ser filmado. Como é um personagem atípico de documentário, eles tinham de chegar com antecedência para que ele se acostumasse com a presença da câmera e com a pequena equipe de filmagem. Torciam para que estivesse num bom dia e conseguissem registrar suas reações de modo a compor um perfil tão completo quanto possível.

Cena do documentário 'Kubrusly - Mistério sempre há de pintar por aí' Foto: Globo/Divulgação

Usam também bastante material de arquivo, opção possível em se tratando de uma pessoa cujo trabalho se deu, em sua maior parte, no âmbito da televisão.

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Mais difícil foi reconstituir a trajetória de Kubrusly anterior à TV. Parte desta se deu no rádio - e, por sorte, foi encontrada uma preciosa gravação dessa fase. Já o trabalho de Kubrusly na imprensa escrita também foi intenso, mas tem óbvias limitações à sua reprodução num filme. Kubrusly trabalhou em diversos órgãos de imprensa escrita, inclusive no Jornal da Tarde, no qual atuou quando veio do Rio para São Paulo.

Deixou lembranças engraçadas dessa fase. Não suportando o calor paulistano num dia sem ar condicionado, tirou a camisa e bateu em sua máquina durante a tarde nu da cintura para cima, para escândalo das chefias.

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Crítico musical refinado, Kubrusly tinha ouvido e antena para detectar novos talentos e tendências. Viu na emergência de músicos como Luiz Tatit, Itamar Assumpção e Arrigo Barnabé um conjunto coerente que se podia chamar de “nova vanguarda paulista”. Tatit elogia essa capacidade do crítico de ouvir o novo, compreendê-lo e formar conceitos abrangentes. O comentário é acompanhado pela reprodução de uma das obras mais talentosas de Tatit, a canção Felicidade, de letra engenhosa e melodia e harmonia originais.

Essa relação privilegiada com a música foi e continua sendo uma ponte entre Kubrusly e o mundo. Em meio ao naufrágio da doença, salvou-se e salvou-o esse talento. Ele perdeu a memória e não consegue mais ler ou escrever, no entanto, ouve muita música em sua casa no sul da Bahia, onde vive com a mulher, Beatriz Goulart. A música é sua memória. E seu prazer. Admira demais as canções que escuta e seu rosto se reaviva. “Que maravilha!” exclama ao ouvir Esotérico, de Gilberto Gil. Na letra, um dos versos fornece o subtítulo do filme: “Mistério sempre há de pintar por aí”.

Verso de Gilberto Gil dá nome ao documentário sobre Maurício Kubrusly, disponível no streaming Foto: Globo/Divulgação
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O encontro com artistas importantes em sua trajetória, como Gilberto Gil, Wandi Doratiotto e o próprio Tatit fornecem o material mais vivo da obra. Kubrusly se entusiasma com músicas dos amigos, como se as ouvisse pela primeira vez. Ouve trechos de seus textos como crítico musical e se surpreende: “Eu escrevi isso aí?”. Gil, na sua condição de buda nagô, responde: “Foi você e não foi você”.

Gil é um sábio e nessa frase reside toda a questão. A pessoa atingida por uma doença desse tipo é seu eu antigo mas também já não é mais. Sendo o mesmo, é outro, quase um paradoxo ambulante, desafio para seus familiares e amigos.

O encontro com Wandi, um comediante nato, é muito engraçado. Porém, nota-se a emoção correndo por trás das frases cômicas dos amigos. Tudo é muito sutil.

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Por seu tom, o filme lembra, em certos aspectos, outro doc, este chileno, que fez muito sucesso - A Memória Infinita, de Maite Alberdi (disponível no streaming Paramount +). Retrata o drama de um casal muito conhecido no Chile. O marido, Augusto Góngora, jornalista e guardião da memória do país em sua luta contra a ditadura Pinochet, acaba por ter a sua própria memória comprometida pelo Mal de Alzheimer. A mulher, a atriz e ex-ministra da Cultura, Paulina Urrutia, lhe dá todo apoio, numa relação amorosa e solidária que a doença não abala.

Em ambos, temos um ponto comum - a presença de mulheres fortes e amorosas (os termos não são excludentes), que dão suporte aos maridos enfermos. Outro ponto: evitam a autopiedade e toda forma de pieguice. Parecem mais celebrar aqueles homens pelo que foram do que lamentar o que perderam com a doença. Se o termo não for piegas para leitores (e leitoras) contemporâneos, pode-se dizer também que celebram o amor entre pessoas como poderoso remédio para atenuar os efeitos do tempo, do sofrimento, do esquecimento. O senso de humor está presente em ambos.

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Kubrusly não foi um repórter convencional. Interferia e interagia com os entrevistados, na maior parte das vezes usando seu senso humor ou tiradas inesperadas que davam novo rumo às conversas. “Esse traço de originalidade do personagem tinha de estar presente”, diz o diretor. Daí, talvez, a vivacidade do documentário, que, em seus quase 100 minutos de duração, não cansa jamais.

Maurício Kubrusly e a mulher, Beatriz Goulart; o casal vive no sul da Bahia Foto: Globo/Divulgação

Das imagens atuais de Kubrusly retemos seu relacionamento divertido e carinhoso com a mulher. A preservação de uma inteligência aguda e do senso de ironia, que às vezes se expressa numa entonação de voz ou num movimento de olhos. O filme vale muito também como reflexão sobre o etarismo e a difícil arte de proceder quando um ente querido perde sua memória: relacionar-se com a pessoa do presente e não com a lembrança que se tem de um passado perdido.

O “projeto Kubrusly” não se esgota no filme. Suas histórias e percurso diversificado estarão presentes num misto de biografia e almanaque que o jornalista Alberto Villas prepara para a Geração Editorial, de Luiz Fernando Emediato.

Maurício Kubrusly, um dos jornalistas mais conhecidos no País, em especial pelo quadro Me Leva Brasil, mantido no Fantástico, na Rede Globo, de 2000 a 2017, ganha agora um documentário. Kubrusly - Mistério Sempre Há de Pintar por Aí chega ao Globoplay nesta quarta, 4, depois de uma estreia que comoveu, dias atrás, a plateia da Mostra de Cinema de Gostoso, no Rio Grande do Norte.

E por que seria tão tocante um filme dedicado a um profissional de imprensa, apesar de bastante conhecido no País por seu trabalho na TV? Por uma circunstância bastante triste, provavelmente: aos 79 anos de idade, Kubrusly sofre de demência frontotemporal, doença que afeta a cognição e a memória. Essa pessoa tão familiar ao público pela inteligência rápida de suas entrevistas e o humor incomum de suas reportagens, já não se lembra de quem é, do que foi, do que fez ou escreveu.

No entanto, o doc, assinado por Caio Cavechini e Evelyn Kuriki, nada tem de depressivo. A dupla, na verdade um casal, busca uma aproximação cheia de empatia com uma pessoa que, os cineastas confessam, nunca sabem direito como vai reagir ao ser filmado. Como é um personagem atípico de documentário, eles tinham de chegar com antecedência para que ele se acostumasse com a presença da câmera e com a pequena equipe de filmagem. Torciam para que estivesse num bom dia e conseguissem registrar suas reações de modo a compor um perfil tão completo quanto possível.

Cena do documentário 'Kubrusly - Mistério sempre há de pintar por aí' Foto: Globo/Divulgação

Usam também bastante material de arquivo, opção possível em se tratando de uma pessoa cujo trabalho se deu, em sua maior parte, no âmbito da televisão.

Mais difícil foi reconstituir a trajetória de Kubrusly anterior à TV. Parte desta se deu no rádio - e, por sorte, foi encontrada uma preciosa gravação dessa fase. Já o trabalho de Kubrusly na imprensa escrita também foi intenso, mas tem óbvias limitações à sua reprodução num filme. Kubrusly trabalhou em diversos órgãos de imprensa escrita, inclusive no Jornal da Tarde, no qual atuou quando veio do Rio para São Paulo.

Deixou lembranças engraçadas dessa fase. Não suportando o calor paulistano num dia sem ar condicionado, tirou a camisa e bateu em sua máquina durante a tarde nu da cintura para cima, para escândalo das chefias.

Crítico musical refinado, Kubrusly tinha ouvido e antena para detectar novos talentos e tendências. Viu na emergência de músicos como Luiz Tatit, Itamar Assumpção e Arrigo Barnabé um conjunto coerente que se podia chamar de “nova vanguarda paulista”. Tatit elogia essa capacidade do crítico de ouvir o novo, compreendê-lo e formar conceitos abrangentes. O comentário é acompanhado pela reprodução de uma das obras mais talentosas de Tatit, a canção Felicidade, de letra engenhosa e melodia e harmonia originais.

Essa relação privilegiada com a música foi e continua sendo uma ponte entre Kubrusly e o mundo. Em meio ao naufrágio da doença, salvou-se e salvou-o esse talento. Ele perdeu a memória e não consegue mais ler ou escrever, no entanto, ouve muita música em sua casa no sul da Bahia, onde vive com a mulher, Beatriz Goulart. A música é sua memória. E seu prazer. Admira demais as canções que escuta e seu rosto se reaviva. “Que maravilha!” exclama ao ouvir Esotérico, de Gilberto Gil. Na letra, um dos versos fornece o subtítulo do filme: “Mistério sempre há de pintar por aí”.

Verso de Gilberto Gil dá nome ao documentário sobre Maurício Kubrusly, disponível no streaming Foto: Globo/Divulgação

O encontro com artistas importantes em sua trajetória, como Gilberto Gil, Wandi Doratiotto e o próprio Tatit fornecem o material mais vivo da obra. Kubrusly se entusiasma com músicas dos amigos, como se as ouvisse pela primeira vez. Ouve trechos de seus textos como crítico musical e se surpreende: “Eu escrevi isso aí?”. Gil, na sua condição de buda nagô, responde: “Foi você e não foi você”.

Gil é um sábio e nessa frase reside toda a questão. A pessoa atingida por uma doença desse tipo é seu eu antigo mas também já não é mais. Sendo o mesmo, é outro, quase um paradoxo ambulante, desafio para seus familiares e amigos.

O encontro com Wandi, um comediante nato, é muito engraçado. Porém, nota-se a emoção correndo por trás das frases cômicas dos amigos. Tudo é muito sutil.

Por seu tom, o filme lembra, em certos aspectos, outro doc, este chileno, que fez muito sucesso - A Memória Infinita, de Maite Alberdi (disponível no streaming Paramount +). Retrata o drama de um casal muito conhecido no Chile. O marido, Augusto Góngora, jornalista e guardião da memória do país em sua luta contra a ditadura Pinochet, acaba por ter a sua própria memória comprometida pelo Mal de Alzheimer. A mulher, a atriz e ex-ministra da Cultura, Paulina Urrutia, lhe dá todo apoio, numa relação amorosa e solidária que a doença não abala.

Em ambos, temos um ponto comum - a presença de mulheres fortes e amorosas (os termos não são excludentes), que dão suporte aos maridos enfermos. Outro ponto: evitam a autopiedade e toda forma de pieguice. Parecem mais celebrar aqueles homens pelo que foram do que lamentar o que perderam com a doença. Se o termo não for piegas para leitores (e leitoras) contemporâneos, pode-se dizer também que celebram o amor entre pessoas como poderoso remédio para atenuar os efeitos do tempo, do sofrimento, do esquecimento. O senso de humor está presente em ambos.

Kubrusly não foi um repórter convencional. Interferia e interagia com os entrevistados, na maior parte das vezes usando seu senso humor ou tiradas inesperadas que davam novo rumo às conversas. “Esse traço de originalidade do personagem tinha de estar presente”, diz o diretor. Daí, talvez, a vivacidade do documentário, que, em seus quase 100 minutos de duração, não cansa jamais.

Maurício Kubrusly e a mulher, Beatriz Goulart; o casal vive no sul da Bahia Foto: Globo/Divulgação

Das imagens atuais de Kubrusly retemos seu relacionamento divertido e carinhoso com a mulher. A preservação de uma inteligência aguda e do senso de ironia, que às vezes se expressa numa entonação de voz ou num movimento de olhos. O filme vale muito também como reflexão sobre o etarismo e a difícil arte de proceder quando um ente querido perde sua memória: relacionar-se com a pessoa do presente e não com a lembrança que se tem de um passado perdido.

O “projeto Kubrusly” não se esgota no filme. Suas histórias e percurso diversificado estarão presentes num misto de biografia e almanaque que o jornalista Alberto Villas prepara para a Geração Editorial, de Luiz Fernando Emediato.

Maurício Kubrusly, um dos jornalistas mais conhecidos no País, em especial pelo quadro Me Leva Brasil, mantido no Fantástico, na Rede Globo, de 2000 a 2017, ganha agora um documentário. Kubrusly - Mistério Sempre Há de Pintar por Aí chega ao Globoplay nesta quarta, 4, depois de uma estreia que comoveu, dias atrás, a plateia da Mostra de Cinema de Gostoso, no Rio Grande do Norte.

E por que seria tão tocante um filme dedicado a um profissional de imprensa, apesar de bastante conhecido no País por seu trabalho na TV? Por uma circunstância bastante triste, provavelmente: aos 79 anos de idade, Kubrusly sofre de demência frontotemporal, doença que afeta a cognição e a memória. Essa pessoa tão familiar ao público pela inteligência rápida de suas entrevistas e o humor incomum de suas reportagens, já não se lembra de quem é, do que foi, do que fez ou escreveu.

No entanto, o doc, assinado por Caio Cavechini e Evelyn Kuriki, nada tem de depressivo. A dupla, na verdade um casal, busca uma aproximação cheia de empatia com uma pessoa que, os cineastas confessam, nunca sabem direito como vai reagir ao ser filmado. Como é um personagem atípico de documentário, eles tinham de chegar com antecedência para que ele se acostumasse com a presença da câmera e com a pequena equipe de filmagem. Torciam para que estivesse num bom dia e conseguissem registrar suas reações de modo a compor um perfil tão completo quanto possível.

Cena do documentário 'Kubrusly - Mistério sempre há de pintar por aí' Foto: Globo/Divulgação

Usam também bastante material de arquivo, opção possível em se tratando de uma pessoa cujo trabalho se deu, em sua maior parte, no âmbito da televisão.

Mais difícil foi reconstituir a trajetória de Kubrusly anterior à TV. Parte desta se deu no rádio - e, por sorte, foi encontrada uma preciosa gravação dessa fase. Já o trabalho de Kubrusly na imprensa escrita também foi intenso, mas tem óbvias limitações à sua reprodução num filme. Kubrusly trabalhou em diversos órgãos de imprensa escrita, inclusive no Jornal da Tarde, no qual atuou quando veio do Rio para São Paulo.

Deixou lembranças engraçadas dessa fase. Não suportando o calor paulistano num dia sem ar condicionado, tirou a camisa e bateu em sua máquina durante a tarde nu da cintura para cima, para escândalo das chefias.

Crítico musical refinado, Kubrusly tinha ouvido e antena para detectar novos talentos e tendências. Viu na emergência de músicos como Luiz Tatit, Itamar Assumpção e Arrigo Barnabé um conjunto coerente que se podia chamar de “nova vanguarda paulista”. Tatit elogia essa capacidade do crítico de ouvir o novo, compreendê-lo e formar conceitos abrangentes. O comentário é acompanhado pela reprodução de uma das obras mais talentosas de Tatit, a canção Felicidade, de letra engenhosa e melodia e harmonia originais.

Essa relação privilegiada com a música foi e continua sendo uma ponte entre Kubrusly e o mundo. Em meio ao naufrágio da doença, salvou-se e salvou-o esse talento. Ele perdeu a memória e não consegue mais ler ou escrever, no entanto, ouve muita música em sua casa no sul da Bahia, onde vive com a mulher, Beatriz Goulart. A música é sua memória. E seu prazer. Admira demais as canções que escuta e seu rosto se reaviva. “Que maravilha!” exclama ao ouvir Esotérico, de Gilberto Gil. Na letra, um dos versos fornece o subtítulo do filme: “Mistério sempre há de pintar por aí”.

Verso de Gilberto Gil dá nome ao documentário sobre Maurício Kubrusly, disponível no streaming Foto: Globo/Divulgação

O encontro com artistas importantes em sua trajetória, como Gilberto Gil, Wandi Doratiotto e o próprio Tatit fornecem o material mais vivo da obra. Kubrusly se entusiasma com músicas dos amigos, como se as ouvisse pela primeira vez. Ouve trechos de seus textos como crítico musical e se surpreende: “Eu escrevi isso aí?”. Gil, na sua condição de buda nagô, responde: “Foi você e não foi você”.

Gil é um sábio e nessa frase reside toda a questão. A pessoa atingida por uma doença desse tipo é seu eu antigo mas também já não é mais. Sendo o mesmo, é outro, quase um paradoxo ambulante, desafio para seus familiares e amigos.

O encontro com Wandi, um comediante nato, é muito engraçado. Porém, nota-se a emoção correndo por trás das frases cômicas dos amigos. Tudo é muito sutil.

Por seu tom, o filme lembra, em certos aspectos, outro doc, este chileno, que fez muito sucesso - A Memória Infinita, de Maite Alberdi (disponível no streaming Paramount +). Retrata o drama de um casal muito conhecido no Chile. O marido, Augusto Góngora, jornalista e guardião da memória do país em sua luta contra a ditadura Pinochet, acaba por ter a sua própria memória comprometida pelo Mal de Alzheimer. A mulher, a atriz e ex-ministra da Cultura, Paulina Urrutia, lhe dá todo apoio, numa relação amorosa e solidária que a doença não abala.

Em ambos, temos um ponto comum - a presença de mulheres fortes e amorosas (os termos não são excludentes), que dão suporte aos maridos enfermos. Outro ponto: evitam a autopiedade e toda forma de pieguice. Parecem mais celebrar aqueles homens pelo que foram do que lamentar o que perderam com a doença. Se o termo não for piegas para leitores (e leitoras) contemporâneos, pode-se dizer também que celebram o amor entre pessoas como poderoso remédio para atenuar os efeitos do tempo, do sofrimento, do esquecimento. O senso de humor está presente em ambos.

Kubrusly não foi um repórter convencional. Interferia e interagia com os entrevistados, na maior parte das vezes usando seu senso humor ou tiradas inesperadas que davam novo rumo às conversas. “Esse traço de originalidade do personagem tinha de estar presente”, diz o diretor. Daí, talvez, a vivacidade do documentário, que, em seus quase 100 minutos de duração, não cansa jamais.

Maurício Kubrusly e a mulher, Beatriz Goulart; o casal vive no sul da Bahia Foto: Globo/Divulgação

Das imagens atuais de Kubrusly retemos seu relacionamento divertido e carinhoso com a mulher. A preservação de uma inteligência aguda e do senso de ironia, que às vezes se expressa numa entonação de voz ou num movimento de olhos. O filme vale muito também como reflexão sobre o etarismo e a difícil arte de proceder quando um ente querido perde sua memória: relacionar-se com a pessoa do presente e não com a lembrança que se tem de um passado perdido.

O “projeto Kubrusly” não se esgota no filme. Suas histórias e percurso diversificado estarão presentes num misto de biografia e almanaque que o jornalista Alberto Villas prepara para a Geração Editorial, de Luiz Fernando Emediato.

Maurício Kubrusly, um dos jornalistas mais conhecidos no País, em especial pelo quadro Me Leva Brasil, mantido no Fantástico, na Rede Globo, de 2000 a 2017, ganha agora um documentário. Kubrusly - Mistério Sempre Há de Pintar por Aí chega ao Globoplay nesta quarta, 4, depois de uma estreia que comoveu, dias atrás, a plateia da Mostra de Cinema de Gostoso, no Rio Grande do Norte.

E por que seria tão tocante um filme dedicado a um profissional de imprensa, apesar de bastante conhecido no País por seu trabalho na TV? Por uma circunstância bastante triste, provavelmente: aos 79 anos de idade, Kubrusly sofre de demência frontotemporal, doença que afeta a cognição e a memória. Essa pessoa tão familiar ao público pela inteligência rápida de suas entrevistas e o humor incomum de suas reportagens, já não se lembra de quem é, do que foi, do que fez ou escreveu.

No entanto, o doc, assinado por Caio Cavechini e Evelyn Kuriki, nada tem de depressivo. A dupla, na verdade um casal, busca uma aproximação cheia de empatia com uma pessoa que, os cineastas confessam, nunca sabem direito como vai reagir ao ser filmado. Como é um personagem atípico de documentário, eles tinham de chegar com antecedência para que ele se acostumasse com a presença da câmera e com a pequena equipe de filmagem. Torciam para que estivesse num bom dia e conseguissem registrar suas reações de modo a compor um perfil tão completo quanto possível.

Cena do documentário 'Kubrusly - Mistério sempre há de pintar por aí' Foto: Globo/Divulgação

Usam também bastante material de arquivo, opção possível em se tratando de uma pessoa cujo trabalho se deu, em sua maior parte, no âmbito da televisão.

Mais difícil foi reconstituir a trajetória de Kubrusly anterior à TV. Parte desta se deu no rádio - e, por sorte, foi encontrada uma preciosa gravação dessa fase. Já o trabalho de Kubrusly na imprensa escrita também foi intenso, mas tem óbvias limitações à sua reprodução num filme. Kubrusly trabalhou em diversos órgãos de imprensa escrita, inclusive no Jornal da Tarde, no qual atuou quando veio do Rio para São Paulo.

Deixou lembranças engraçadas dessa fase. Não suportando o calor paulistano num dia sem ar condicionado, tirou a camisa e bateu em sua máquina durante a tarde nu da cintura para cima, para escândalo das chefias.

Crítico musical refinado, Kubrusly tinha ouvido e antena para detectar novos talentos e tendências. Viu na emergência de músicos como Luiz Tatit, Itamar Assumpção e Arrigo Barnabé um conjunto coerente que se podia chamar de “nova vanguarda paulista”. Tatit elogia essa capacidade do crítico de ouvir o novo, compreendê-lo e formar conceitos abrangentes. O comentário é acompanhado pela reprodução de uma das obras mais talentosas de Tatit, a canção Felicidade, de letra engenhosa e melodia e harmonia originais.

Essa relação privilegiada com a música foi e continua sendo uma ponte entre Kubrusly e o mundo. Em meio ao naufrágio da doença, salvou-se e salvou-o esse talento. Ele perdeu a memória e não consegue mais ler ou escrever, no entanto, ouve muita música em sua casa no sul da Bahia, onde vive com a mulher, Beatriz Goulart. A música é sua memória. E seu prazer. Admira demais as canções que escuta e seu rosto se reaviva. “Que maravilha!” exclama ao ouvir Esotérico, de Gilberto Gil. Na letra, um dos versos fornece o subtítulo do filme: “Mistério sempre há de pintar por aí”.

Verso de Gilberto Gil dá nome ao documentário sobre Maurício Kubrusly, disponível no streaming Foto: Globo/Divulgação

O encontro com artistas importantes em sua trajetória, como Gilberto Gil, Wandi Doratiotto e o próprio Tatit fornecem o material mais vivo da obra. Kubrusly se entusiasma com músicas dos amigos, como se as ouvisse pela primeira vez. Ouve trechos de seus textos como crítico musical e se surpreende: “Eu escrevi isso aí?”. Gil, na sua condição de buda nagô, responde: “Foi você e não foi você”.

Gil é um sábio e nessa frase reside toda a questão. A pessoa atingida por uma doença desse tipo é seu eu antigo mas também já não é mais. Sendo o mesmo, é outro, quase um paradoxo ambulante, desafio para seus familiares e amigos.

O encontro com Wandi, um comediante nato, é muito engraçado. Porém, nota-se a emoção correndo por trás das frases cômicas dos amigos. Tudo é muito sutil.

Por seu tom, o filme lembra, em certos aspectos, outro doc, este chileno, que fez muito sucesso - A Memória Infinita, de Maite Alberdi (disponível no streaming Paramount +). Retrata o drama de um casal muito conhecido no Chile. O marido, Augusto Góngora, jornalista e guardião da memória do país em sua luta contra a ditadura Pinochet, acaba por ter a sua própria memória comprometida pelo Mal de Alzheimer. A mulher, a atriz e ex-ministra da Cultura, Paulina Urrutia, lhe dá todo apoio, numa relação amorosa e solidária que a doença não abala.

Em ambos, temos um ponto comum - a presença de mulheres fortes e amorosas (os termos não são excludentes), que dão suporte aos maridos enfermos. Outro ponto: evitam a autopiedade e toda forma de pieguice. Parecem mais celebrar aqueles homens pelo que foram do que lamentar o que perderam com a doença. Se o termo não for piegas para leitores (e leitoras) contemporâneos, pode-se dizer também que celebram o amor entre pessoas como poderoso remédio para atenuar os efeitos do tempo, do sofrimento, do esquecimento. O senso de humor está presente em ambos.

Kubrusly não foi um repórter convencional. Interferia e interagia com os entrevistados, na maior parte das vezes usando seu senso humor ou tiradas inesperadas que davam novo rumo às conversas. “Esse traço de originalidade do personagem tinha de estar presente”, diz o diretor. Daí, talvez, a vivacidade do documentário, que, em seus quase 100 minutos de duração, não cansa jamais.

Maurício Kubrusly e a mulher, Beatriz Goulart; o casal vive no sul da Bahia Foto: Globo/Divulgação

Das imagens atuais de Kubrusly retemos seu relacionamento divertido e carinhoso com a mulher. A preservação de uma inteligência aguda e do senso de ironia, que às vezes se expressa numa entonação de voz ou num movimento de olhos. O filme vale muito também como reflexão sobre o etarismo e a difícil arte de proceder quando um ente querido perde sua memória: relacionar-se com a pessoa do presente e não com a lembrança que se tem de um passado perdido.

O “projeto Kubrusly” não se esgota no filme. Suas histórias e percurso diversificado estarão presentes num misto de biografia e almanaque que o jornalista Alberto Villas prepara para a Geração Editorial, de Luiz Fernando Emediato.

Maurício Kubrusly, um dos jornalistas mais conhecidos no País, em especial pelo quadro Me Leva Brasil, mantido no Fantástico, na Rede Globo, de 2000 a 2017, ganha agora um documentário. Kubrusly - Mistério Sempre Há de Pintar por Aí chega ao Globoplay nesta quarta, 4, depois de uma estreia que comoveu, dias atrás, a plateia da Mostra de Cinema de Gostoso, no Rio Grande do Norte.

E por que seria tão tocante um filme dedicado a um profissional de imprensa, apesar de bastante conhecido no País por seu trabalho na TV? Por uma circunstância bastante triste, provavelmente: aos 79 anos de idade, Kubrusly sofre de demência frontotemporal, doença que afeta a cognição e a memória. Essa pessoa tão familiar ao público pela inteligência rápida de suas entrevistas e o humor incomum de suas reportagens, já não se lembra de quem é, do que foi, do que fez ou escreveu.

No entanto, o doc, assinado por Caio Cavechini e Evelyn Kuriki, nada tem de depressivo. A dupla, na verdade um casal, busca uma aproximação cheia de empatia com uma pessoa que, os cineastas confessam, nunca sabem direito como vai reagir ao ser filmado. Como é um personagem atípico de documentário, eles tinham de chegar com antecedência para que ele se acostumasse com a presença da câmera e com a pequena equipe de filmagem. Torciam para que estivesse num bom dia e conseguissem registrar suas reações de modo a compor um perfil tão completo quanto possível.

Cena do documentário 'Kubrusly - Mistério sempre há de pintar por aí' Foto: Globo/Divulgação

Usam também bastante material de arquivo, opção possível em se tratando de uma pessoa cujo trabalho se deu, em sua maior parte, no âmbito da televisão.

Mais difícil foi reconstituir a trajetória de Kubrusly anterior à TV. Parte desta se deu no rádio - e, por sorte, foi encontrada uma preciosa gravação dessa fase. Já o trabalho de Kubrusly na imprensa escrita também foi intenso, mas tem óbvias limitações à sua reprodução num filme. Kubrusly trabalhou em diversos órgãos de imprensa escrita, inclusive no Jornal da Tarde, no qual atuou quando veio do Rio para São Paulo.

Deixou lembranças engraçadas dessa fase. Não suportando o calor paulistano num dia sem ar condicionado, tirou a camisa e bateu em sua máquina durante a tarde nu da cintura para cima, para escândalo das chefias.

Crítico musical refinado, Kubrusly tinha ouvido e antena para detectar novos talentos e tendências. Viu na emergência de músicos como Luiz Tatit, Itamar Assumpção e Arrigo Barnabé um conjunto coerente que se podia chamar de “nova vanguarda paulista”. Tatit elogia essa capacidade do crítico de ouvir o novo, compreendê-lo e formar conceitos abrangentes. O comentário é acompanhado pela reprodução de uma das obras mais talentosas de Tatit, a canção Felicidade, de letra engenhosa e melodia e harmonia originais.

Essa relação privilegiada com a música foi e continua sendo uma ponte entre Kubrusly e o mundo. Em meio ao naufrágio da doença, salvou-se e salvou-o esse talento. Ele perdeu a memória e não consegue mais ler ou escrever, no entanto, ouve muita música em sua casa no sul da Bahia, onde vive com a mulher, Beatriz Goulart. A música é sua memória. E seu prazer. Admira demais as canções que escuta e seu rosto se reaviva. “Que maravilha!” exclama ao ouvir Esotérico, de Gilberto Gil. Na letra, um dos versos fornece o subtítulo do filme: “Mistério sempre há de pintar por aí”.

Verso de Gilberto Gil dá nome ao documentário sobre Maurício Kubrusly, disponível no streaming Foto: Globo/Divulgação

O encontro com artistas importantes em sua trajetória, como Gilberto Gil, Wandi Doratiotto e o próprio Tatit fornecem o material mais vivo da obra. Kubrusly se entusiasma com músicas dos amigos, como se as ouvisse pela primeira vez. Ouve trechos de seus textos como crítico musical e se surpreende: “Eu escrevi isso aí?”. Gil, na sua condição de buda nagô, responde: “Foi você e não foi você”.

Gil é um sábio e nessa frase reside toda a questão. A pessoa atingida por uma doença desse tipo é seu eu antigo mas também já não é mais. Sendo o mesmo, é outro, quase um paradoxo ambulante, desafio para seus familiares e amigos.

O encontro com Wandi, um comediante nato, é muito engraçado. Porém, nota-se a emoção correndo por trás das frases cômicas dos amigos. Tudo é muito sutil.

Por seu tom, o filme lembra, em certos aspectos, outro doc, este chileno, que fez muito sucesso - A Memória Infinita, de Maite Alberdi (disponível no streaming Paramount +). Retrata o drama de um casal muito conhecido no Chile. O marido, Augusto Góngora, jornalista e guardião da memória do país em sua luta contra a ditadura Pinochet, acaba por ter a sua própria memória comprometida pelo Mal de Alzheimer. A mulher, a atriz e ex-ministra da Cultura, Paulina Urrutia, lhe dá todo apoio, numa relação amorosa e solidária que a doença não abala.

Em ambos, temos um ponto comum - a presença de mulheres fortes e amorosas (os termos não são excludentes), que dão suporte aos maridos enfermos. Outro ponto: evitam a autopiedade e toda forma de pieguice. Parecem mais celebrar aqueles homens pelo que foram do que lamentar o que perderam com a doença. Se o termo não for piegas para leitores (e leitoras) contemporâneos, pode-se dizer também que celebram o amor entre pessoas como poderoso remédio para atenuar os efeitos do tempo, do sofrimento, do esquecimento. O senso de humor está presente em ambos.

Kubrusly não foi um repórter convencional. Interferia e interagia com os entrevistados, na maior parte das vezes usando seu senso humor ou tiradas inesperadas que davam novo rumo às conversas. “Esse traço de originalidade do personagem tinha de estar presente”, diz o diretor. Daí, talvez, a vivacidade do documentário, que, em seus quase 100 minutos de duração, não cansa jamais.

Maurício Kubrusly e a mulher, Beatriz Goulart; o casal vive no sul da Bahia Foto: Globo/Divulgação

Das imagens atuais de Kubrusly retemos seu relacionamento divertido e carinhoso com a mulher. A preservação de uma inteligência aguda e do senso de ironia, que às vezes se expressa numa entonação de voz ou num movimento de olhos. O filme vale muito também como reflexão sobre o etarismo e a difícil arte de proceder quando um ente querido perde sua memória: relacionar-se com a pessoa do presente e não com a lembrança que se tem de um passado perdido.

O “projeto Kubrusly” não se esgota no filme. Suas histórias e percurso diversificado estarão presentes num misto de biografia e almanaque que o jornalista Alberto Villas prepara para a Geração Editorial, de Luiz Fernando Emediato.

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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