Análise|Ney Latorraca foi muitos personagens em um só. Ficou ‘bobo’ com a fama e escolheu a reclusão no fim


O ator comprovou versatilidade em uma extensa carreira e ultrapassou os limites dos tipos cômicos que tanto lhe marcaram; Ney Latorraca morreu aos 80 anos nesta quinta, 26

Por Dirceu Alves Jr
Atualização:

Em 1991, o ator Ney Latorraca (1944-2024) vivia dois momentos simultâneos de extraordinário sucesso, algo raríssimo na carreira de qualquer artista. Desde 1986, ele lotava qualquer teatro por onde passava com a comédia O Mistério de Irma Vap, uma contracena antológica com Marco Nanini que seguiria quebrando recordes por mais seis anos. Na televisão, era a vez do Conde Vlad, o líder dos vampiros da novela Vamp, exibida pela Rede Globo no horário das sete, que lhe rendeu um fã-clube de todas as idades. E, pouco antes de entrar na novela, Latorraca dividia seu tempo entre Irma Vap e o humorístico TV Pirata, outro clássico, lançado em 1988, em que imortalizou personagens, como o velho Barbosa. Não era pouca coisa não...

Antônio Ney Latorraca, garoto pobre de Santos, filho do crooner Alfredo e da corista Nena, não resistiu e caiu no deslumbramento diante de tanto reconhecimento sucesso e dinheiro na conta. Ele próprio admitia com humor para disfarçar certa melancolia. “Com Irma Vap fiquei rico, comprei minha cobertura, nunca mais deixei de viajar de primeira classe e dei para minha mãe tudo o que ela merecia”, repetia nas entrevistas. “Vamp me proporcionou uma popularidade que jamais imaginei e fiquei bobo mesmo, comecei a me sentir o máximo.”

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Por isso, quem conheceu o trabalho de Latorraca apenas nas últimas três décadas talvez não tenha a noção do tamanho do seu talento e da versatilidade comprovada em 60 anos de carreira. A estreia nos palcos foi com Reportagem de um Tempo Mau, do conterrâneo santista Plínio Marcos, em 1964, imediatamente proibida pela censura e, nos dois anos seguintes, atuou em A Crônica e O Cristo Nu, junto ao grupo da Faculdade de Filosofia de Santos.

Ney Latorraca em julho, quando completou 80 anos. Foto: Pedro Kirilos/Estadão

Entre 1967 e 1969, cursou a Escola de Arte Dramática (EAD), em São Paulo, e ganhou o entendimento do ofício escolhido: precisava fazer as escolhas certas e planejar uma carreira para garantir um futuro estável. “A EAD tinha a consciência de que nosso trabalho precisava ser visto e, assim, além do pessoal do teatro, diretores de TV, como Walter Avancini, ou de cinema, como Ruy Guerra, acompanhavam os exames”, lembrou Latorraca, em julho passado, nesta entrevista ao Estadão quando ele fez 80 anos.

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Convidado pela atriz e produtora Ruth Escobar, o jovem começou a ensaiar O Balcão, lendária montagem dirigida por Victor García, em 1969, às escondidas porque entre as regras da EAD estava a de os alunos não poderiam aceitar um trabalho profissional antes de ter o diploma na mão.

Foi o primeiro de uma série de espetáculos marcantes feitos na sequência, como os musicais Hair e Jesus Cristo Superstar, as parcerias com o diretor Antunes Filho em O Estranho Caso de Mr. Morgan (1972) e Bodas de Sangue (1973), além de A Mandrágora (1975), encenada por Paulo José. “Trabalhei com todos os grandes, os maiores, só faltou mesmo o Zé Celso”, lamentava.

Em 1974, Latorraca chegou à Rede Globo na novela Escalada convicto de seu valor, mas certo de que os ganhos financeiros poderiam aumentar consideravelmente. Nos intervalos das gravações, ele dançava a valsa em bailes de debutantes e comprou seu primeiro imóvel, na Rua Marquês de Itu, em São Paulo. Como o rebelde Mederiquis, da novela Estúpido Cupido (1976), de jaqueta de couro e pilotando uma lambreta, sentiu o impacto da audiência e, com o ego massageado, se encantou pelas novelas.

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No vídeo, fez sucesso em Coração Alado (1980), Eu Prometo (1983), Um Sonho a Mais (1985), em que viveu o protagonista Volpone, que se travestia de Anabela Freire, O Cravo e a Rosa (2000), Da Cor do Pecado (2004) e Meu Pedacinho de Chão (2014), entre outras.

Seus trabalhos mais estimados na televisão, porém, admita, foram as minisséries Anarquistas, Graças a Deus (1983), Rabo de Saia (1984) e Memórias de um Gigolô (1986), comandados por Walter Avancini, o seu diretor preferido.

Ney Latorraca também fez cinema. Foi o padre jesuíta no longa Anchieta, José do Brasil (1976), teve momentos de destaque em O Beijo no Asfalto (1981), do cineasta Bruno Barreto, e em Ele, O Boto (1987), de Walter Lima Jr., e luminosas parcerias com Ruy Guerra em Ópera do Malandro (1985) e A Bela Palomera (1988).

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Mas foi mesmo no teatro que Latorraca soube ser muitos e deu a certeza de que seu potencial ultrapassa os múltiplos personagens de O Mistério de Irma Vap e da TV Pirata ou Vlad da novela Vamp. Mesmo consagrado pela TV, ele continuou fiel aos tablados e, em 1979, saltou do musical Lola Moreno para o drama barra-pesada Afinal, Uma Mulher de Negócios, ao lado de Renata Sorrah.

Cena da peça 'Entredentes', de Gerald Thomas, com Ney Latorraca e seu companheiro Edi Botelho Foto: Alisson Louback/Divulgação

Em 1982, foi o vilão Iago da versão de Otelo, de Shakespeare, protagonizada por Juca de Oliveira, e, de volta ao bardo inglês no ano seguinte, participou de Rei Lear, um texto que sonhou em montar como o protagonista até a morte.

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Sob o comando de Gerald Thomas, foram quatro espetáculos, a exemplo de Don Juan (1995), Quartett (1997) UnGlauber (1998, em Portugal) e Entredentes (2014), quase todos dividindo o palco com, entre outros atores, Edi Botelho, seu marido com quem viveu por três décadas.

Os seus últimos trabalhos, curiosamente, foram tributos a si mesmo. Em 2016, o artista voltou a viver o Conde Vlad em Vamp, o Musical, dirigido por Jorge Fernando e Diego Morais, e Seu Neyla rendeu uma experiência inusitada em 2022. Mesmo depois da abertura pós-pandêmica, Latorraca não se sentiu à vontade para enfrentar multidões e transmitiu o espetáculo de sua casa para plateia presenciais nos teatros. Garantiu que era uma forma de se proteger em uma fase em que a covid-19 não estava totalmente controlada. Era o começo de um novo personagem que marcaria os últimos tempos de sua história. Leia mais sobre a peça.

Cena da peça 'Seu Neyla', em homenagem a Ney Latorraca, com texto de Heloisa Perissé e direção de José Possi Neto Foto: Paulo Cartolano/Divulgação
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Ney Latorraca viveu o fim, nesta manhã de 26 de dezembro, completamente recluso e mal saía de sua cobertura, no Rio de Janeiro. No máximo, disse ele, dava caminhadas pela Lagoa Rodrigo de Freitas e voltava rapidinho para casa. Fugia dos convites para badalações, evitava conversas de trabalho e não conseguia controlar um certo pânico com os holofotes que tanto procurou no passado. Às vezes, faltava a compromissos assumidos sem justificativas, como na última entrega do Prêmio APTR deste ano, em julho.

Desde o dia 20, o ator estava internado na Clínica São Vicente, no Rio, devido ao agravamento de um câncer de próstata descoberto em 2019 e imediatamente operado. A doença voltou a se manifestar em agosto, logo depois de seus 80 anos, com metástase.

Discretamente, Ney Latorraca foi saindo de cena, sem despedidas e estardalhaços. Vaidoso, como era, talvez desejasse que o público guardasse para sempre a imagem dos seus grandes papeis no teatro, no cinema e na televisão. Estas imagens vão ficar.

Em 1991, o ator Ney Latorraca (1944-2024) vivia dois momentos simultâneos de extraordinário sucesso, algo raríssimo na carreira de qualquer artista. Desde 1986, ele lotava qualquer teatro por onde passava com a comédia O Mistério de Irma Vap, uma contracena antológica com Marco Nanini que seguiria quebrando recordes por mais seis anos. Na televisão, era a vez do Conde Vlad, o líder dos vampiros da novela Vamp, exibida pela Rede Globo no horário das sete, que lhe rendeu um fã-clube de todas as idades. E, pouco antes de entrar na novela, Latorraca dividia seu tempo entre Irma Vap e o humorístico TV Pirata, outro clássico, lançado em 1988, em que imortalizou personagens, como o velho Barbosa. Não era pouca coisa não...

Antônio Ney Latorraca, garoto pobre de Santos, filho do crooner Alfredo e da corista Nena, não resistiu e caiu no deslumbramento diante de tanto reconhecimento sucesso e dinheiro na conta. Ele próprio admitia com humor para disfarçar certa melancolia. “Com Irma Vap fiquei rico, comprei minha cobertura, nunca mais deixei de viajar de primeira classe e dei para minha mãe tudo o que ela merecia”, repetia nas entrevistas. “Vamp me proporcionou uma popularidade que jamais imaginei e fiquei bobo mesmo, comecei a me sentir o máximo.”

Por isso, quem conheceu o trabalho de Latorraca apenas nas últimas três décadas talvez não tenha a noção do tamanho do seu talento e da versatilidade comprovada em 60 anos de carreira. A estreia nos palcos foi com Reportagem de um Tempo Mau, do conterrâneo santista Plínio Marcos, em 1964, imediatamente proibida pela censura e, nos dois anos seguintes, atuou em A Crônica e O Cristo Nu, junto ao grupo da Faculdade de Filosofia de Santos.

Ney Latorraca em julho, quando completou 80 anos. Foto: Pedro Kirilos/Estadão

Entre 1967 e 1969, cursou a Escola de Arte Dramática (EAD), em São Paulo, e ganhou o entendimento do ofício escolhido: precisava fazer as escolhas certas e planejar uma carreira para garantir um futuro estável. “A EAD tinha a consciência de que nosso trabalho precisava ser visto e, assim, além do pessoal do teatro, diretores de TV, como Walter Avancini, ou de cinema, como Ruy Guerra, acompanhavam os exames”, lembrou Latorraca, em julho passado, nesta entrevista ao Estadão quando ele fez 80 anos.

Convidado pela atriz e produtora Ruth Escobar, o jovem começou a ensaiar O Balcão, lendária montagem dirigida por Victor García, em 1969, às escondidas porque entre as regras da EAD estava a de os alunos não poderiam aceitar um trabalho profissional antes de ter o diploma na mão.

Foi o primeiro de uma série de espetáculos marcantes feitos na sequência, como os musicais Hair e Jesus Cristo Superstar, as parcerias com o diretor Antunes Filho em O Estranho Caso de Mr. Morgan (1972) e Bodas de Sangue (1973), além de A Mandrágora (1975), encenada por Paulo José. “Trabalhei com todos os grandes, os maiores, só faltou mesmo o Zé Celso”, lamentava.

Em 1974, Latorraca chegou à Rede Globo na novela Escalada convicto de seu valor, mas certo de que os ganhos financeiros poderiam aumentar consideravelmente. Nos intervalos das gravações, ele dançava a valsa em bailes de debutantes e comprou seu primeiro imóvel, na Rua Marquês de Itu, em São Paulo. Como o rebelde Mederiquis, da novela Estúpido Cupido (1976), de jaqueta de couro e pilotando uma lambreta, sentiu o impacto da audiência e, com o ego massageado, se encantou pelas novelas.

No vídeo, fez sucesso em Coração Alado (1980), Eu Prometo (1983), Um Sonho a Mais (1985), em que viveu o protagonista Volpone, que se travestia de Anabela Freire, O Cravo e a Rosa (2000), Da Cor do Pecado (2004) e Meu Pedacinho de Chão (2014), entre outras.

Seus trabalhos mais estimados na televisão, porém, admita, foram as minisséries Anarquistas, Graças a Deus (1983), Rabo de Saia (1984) e Memórias de um Gigolô (1986), comandados por Walter Avancini, o seu diretor preferido.

Ney Latorraca também fez cinema. Foi o padre jesuíta no longa Anchieta, José do Brasil (1976), teve momentos de destaque em O Beijo no Asfalto (1981), do cineasta Bruno Barreto, e em Ele, O Boto (1987), de Walter Lima Jr., e luminosas parcerias com Ruy Guerra em Ópera do Malandro (1985) e A Bela Palomera (1988).

Mas foi mesmo no teatro que Latorraca soube ser muitos e deu a certeza de que seu potencial ultrapassa os múltiplos personagens de O Mistério de Irma Vap e da TV Pirata ou Vlad da novela Vamp. Mesmo consagrado pela TV, ele continuou fiel aos tablados e, em 1979, saltou do musical Lola Moreno para o drama barra-pesada Afinal, Uma Mulher de Negócios, ao lado de Renata Sorrah.

Cena da peça 'Entredentes', de Gerald Thomas, com Ney Latorraca e seu companheiro Edi Botelho Foto: Alisson Louback/Divulgação

Em 1982, foi o vilão Iago da versão de Otelo, de Shakespeare, protagonizada por Juca de Oliveira, e, de volta ao bardo inglês no ano seguinte, participou de Rei Lear, um texto que sonhou em montar como o protagonista até a morte.

Sob o comando de Gerald Thomas, foram quatro espetáculos, a exemplo de Don Juan (1995), Quartett (1997) UnGlauber (1998, em Portugal) e Entredentes (2014), quase todos dividindo o palco com, entre outros atores, Edi Botelho, seu marido com quem viveu por três décadas.

Os seus últimos trabalhos, curiosamente, foram tributos a si mesmo. Em 2016, o artista voltou a viver o Conde Vlad em Vamp, o Musical, dirigido por Jorge Fernando e Diego Morais, e Seu Neyla rendeu uma experiência inusitada em 2022. Mesmo depois da abertura pós-pandêmica, Latorraca não se sentiu à vontade para enfrentar multidões e transmitiu o espetáculo de sua casa para plateia presenciais nos teatros. Garantiu que era uma forma de se proteger em uma fase em que a covid-19 não estava totalmente controlada. Era o começo de um novo personagem que marcaria os últimos tempos de sua história. Leia mais sobre a peça.

Cena da peça 'Seu Neyla', em homenagem a Ney Latorraca, com texto de Heloisa Perissé e direção de José Possi Neto Foto: Paulo Cartolano/Divulgação

Ney Latorraca viveu o fim, nesta manhã de 26 de dezembro, completamente recluso e mal saía de sua cobertura, no Rio de Janeiro. No máximo, disse ele, dava caminhadas pela Lagoa Rodrigo de Freitas e voltava rapidinho para casa. Fugia dos convites para badalações, evitava conversas de trabalho e não conseguia controlar um certo pânico com os holofotes que tanto procurou no passado. Às vezes, faltava a compromissos assumidos sem justificativas, como na última entrega do Prêmio APTR deste ano, em julho.

Desde o dia 20, o ator estava internado na Clínica São Vicente, no Rio, devido ao agravamento de um câncer de próstata descoberto em 2019 e imediatamente operado. A doença voltou a se manifestar em agosto, logo depois de seus 80 anos, com metástase.

Discretamente, Ney Latorraca foi saindo de cena, sem despedidas e estardalhaços. Vaidoso, como era, talvez desejasse que o público guardasse para sempre a imagem dos seus grandes papeis no teatro, no cinema e na televisão. Estas imagens vão ficar.

Em 1991, o ator Ney Latorraca (1944-2024) vivia dois momentos simultâneos de extraordinário sucesso, algo raríssimo na carreira de qualquer artista. Desde 1986, ele lotava qualquer teatro por onde passava com a comédia O Mistério de Irma Vap, uma contracena antológica com Marco Nanini que seguiria quebrando recordes por mais seis anos. Na televisão, era a vez do Conde Vlad, o líder dos vampiros da novela Vamp, exibida pela Rede Globo no horário das sete, que lhe rendeu um fã-clube de todas as idades. E, pouco antes de entrar na novela, Latorraca dividia seu tempo entre Irma Vap e o humorístico TV Pirata, outro clássico, lançado em 1988, em que imortalizou personagens, como o velho Barbosa. Não era pouca coisa não...

Antônio Ney Latorraca, garoto pobre de Santos, filho do crooner Alfredo e da corista Nena, não resistiu e caiu no deslumbramento diante de tanto reconhecimento sucesso e dinheiro na conta. Ele próprio admitia com humor para disfarçar certa melancolia. “Com Irma Vap fiquei rico, comprei minha cobertura, nunca mais deixei de viajar de primeira classe e dei para minha mãe tudo o que ela merecia”, repetia nas entrevistas. “Vamp me proporcionou uma popularidade que jamais imaginei e fiquei bobo mesmo, comecei a me sentir o máximo.”

Por isso, quem conheceu o trabalho de Latorraca apenas nas últimas três décadas talvez não tenha a noção do tamanho do seu talento e da versatilidade comprovada em 60 anos de carreira. A estreia nos palcos foi com Reportagem de um Tempo Mau, do conterrâneo santista Plínio Marcos, em 1964, imediatamente proibida pela censura e, nos dois anos seguintes, atuou em A Crônica e O Cristo Nu, junto ao grupo da Faculdade de Filosofia de Santos.

Ney Latorraca em julho, quando completou 80 anos. Foto: Pedro Kirilos/Estadão

Entre 1967 e 1969, cursou a Escola de Arte Dramática (EAD), em São Paulo, e ganhou o entendimento do ofício escolhido: precisava fazer as escolhas certas e planejar uma carreira para garantir um futuro estável. “A EAD tinha a consciência de que nosso trabalho precisava ser visto e, assim, além do pessoal do teatro, diretores de TV, como Walter Avancini, ou de cinema, como Ruy Guerra, acompanhavam os exames”, lembrou Latorraca, em julho passado, nesta entrevista ao Estadão quando ele fez 80 anos.

Convidado pela atriz e produtora Ruth Escobar, o jovem começou a ensaiar O Balcão, lendária montagem dirigida por Victor García, em 1969, às escondidas porque entre as regras da EAD estava a de os alunos não poderiam aceitar um trabalho profissional antes de ter o diploma na mão.

Foi o primeiro de uma série de espetáculos marcantes feitos na sequência, como os musicais Hair e Jesus Cristo Superstar, as parcerias com o diretor Antunes Filho em O Estranho Caso de Mr. Morgan (1972) e Bodas de Sangue (1973), além de A Mandrágora (1975), encenada por Paulo José. “Trabalhei com todos os grandes, os maiores, só faltou mesmo o Zé Celso”, lamentava.

Em 1974, Latorraca chegou à Rede Globo na novela Escalada convicto de seu valor, mas certo de que os ganhos financeiros poderiam aumentar consideravelmente. Nos intervalos das gravações, ele dançava a valsa em bailes de debutantes e comprou seu primeiro imóvel, na Rua Marquês de Itu, em São Paulo. Como o rebelde Mederiquis, da novela Estúpido Cupido (1976), de jaqueta de couro e pilotando uma lambreta, sentiu o impacto da audiência e, com o ego massageado, se encantou pelas novelas.

No vídeo, fez sucesso em Coração Alado (1980), Eu Prometo (1983), Um Sonho a Mais (1985), em que viveu o protagonista Volpone, que se travestia de Anabela Freire, O Cravo e a Rosa (2000), Da Cor do Pecado (2004) e Meu Pedacinho de Chão (2014), entre outras.

Seus trabalhos mais estimados na televisão, porém, admita, foram as minisséries Anarquistas, Graças a Deus (1983), Rabo de Saia (1984) e Memórias de um Gigolô (1986), comandados por Walter Avancini, o seu diretor preferido.

Ney Latorraca também fez cinema. Foi o padre jesuíta no longa Anchieta, José do Brasil (1976), teve momentos de destaque em O Beijo no Asfalto (1981), do cineasta Bruno Barreto, e em Ele, O Boto (1987), de Walter Lima Jr., e luminosas parcerias com Ruy Guerra em Ópera do Malandro (1985) e A Bela Palomera (1988).

Mas foi mesmo no teatro que Latorraca soube ser muitos e deu a certeza de que seu potencial ultrapassa os múltiplos personagens de O Mistério de Irma Vap e da TV Pirata ou Vlad da novela Vamp. Mesmo consagrado pela TV, ele continuou fiel aos tablados e, em 1979, saltou do musical Lola Moreno para o drama barra-pesada Afinal, Uma Mulher de Negócios, ao lado de Renata Sorrah.

Cena da peça 'Entredentes', de Gerald Thomas, com Ney Latorraca e seu companheiro Edi Botelho Foto: Alisson Louback/Divulgação

Em 1982, foi o vilão Iago da versão de Otelo, de Shakespeare, protagonizada por Juca de Oliveira, e, de volta ao bardo inglês no ano seguinte, participou de Rei Lear, um texto que sonhou em montar como o protagonista até a morte.

Sob o comando de Gerald Thomas, foram quatro espetáculos, a exemplo de Don Juan (1995), Quartett (1997) UnGlauber (1998, em Portugal) e Entredentes (2014), quase todos dividindo o palco com, entre outros atores, Edi Botelho, seu marido com quem viveu por três décadas.

Os seus últimos trabalhos, curiosamente, foram tributos a si mesmo. Em 2016, o artista voltou a viver o Conde Vlad em Vamp, o Musical, dirigido por Jorge Fernando e Diego Morais, e Seu Neyla rendeu uma experiência inusitada em 2022. Mesmo depois da abertura pós-pandêmica, Latorraca não se sentiu à vontade para enfrentar multidões e transmitiu o espetáculo de sua casa para plateia presenciais nos teatros. Garantiu que era uma forma de se proteger em uma fase em que a covid-19 não estava totalmente controlada. Era o começo de um novo personagem que marcaria os últimos tempos de sua história. Leia mais sobre a peça.

Cena da peça 'Seu Neyla', em homenagem a Ney Latorraca, com texto de Heloisa Perissé e direção de José Possi Neto Foto: Paulo Cartolano/Divulgação

Ney Latorraca viveu o fim, nesta manhã de 26 de dezembro, completamente recluso e mal saía de sua cobertura, no Rio de Janeiro. No máximo, disse ele, dava caminhadas pela Lagoa Rodrigo de Freitas e voltava rapidinho para casa. Fugia dos convites para badalações, evitava conversas de trabalho e não conseguia controlar um certo pânico com os holofotes que tanto procurou no passado. Às vezes, faltava a compromissos assumidos sem justificativas, como na última entrega do Prêmio APTR deste ano, em julho.

Desde o dia 20, o ator estava internado na Clínica São Vicente, no Rio, devido ao agravamento de um câncer de próstata descoberto em 2019 e imediatamente operado. A doença voltou a se manifestar em agosto, logo depois de seus 80 anos, com metástase.

Discretamente, Ney Latorraca foi saindo de cena, sem despedidas e estardalhaços. Vaidoso, como era, talvez desejasse que o público guardasse para sempre a imagem dos seus grandes papeis no teatro, no cinema e na televisão. Estas imagens vão ficar.

Análise por Dirceu Alves Jr

Jornalista, crítico de teatro e autor de livros como 'Elias Andreato, A Máscara do Improvável' e 'Sérgio Mamberti, Senhor do Meu Tempo'

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