Como outras roteiristas de sua geração, seja Phoebe Waller-Bridge ou suas amigas Lena Dunham e Issa Rae, Michaela Coel busca inspiração em sua própria vida. Em Chewing Gum, usou sua experiência como adolescente religiosa para falar do despertar da sexualidade. Em I May Destroy You, que já está disponível na HBO, Michaela trata do abuso sexual que sofreu quatro anos atrás. “Jamais senti medo ou senti que não deveria contar essa história”, disse, em entrevista com participação do Estadão, via Zoom, direto de Londres.
Era uma noite de muito trabalho, com prazo apertado para entregar um dos episódios de Chewing Gum – Coel chega a escrever por 40 horas seguidas, “sem fazer xixi ou levantar, até as pernas ficarem inchadas”. Mas, naquela noite, ela decidiu fazer uma pausa e encontrar amigos. De volta à sua escrivaninha, sentindo-se meio fora de órbita, teve um flash de um homem desconhecido. A cena aparece quase sem diferenças em I May Destroy You, em que ela interpreta Arabella. Em vez de roteirista, a personagem é a escritora de um livro de sucesso que tenta dar um segundo passo em sua carreira.
“Eu tendo a escrever a partir da realidade. É instintivo”, disse. “Mas eu fico me perguntando se nesse caso foi minha maneira de me desassociar de algo traumático. Dando um passo para trás, pude entender e processar a uma distância segura.” Para ela, escrever I May Destroy You foi catártico. “Eu faço terapia e não acho que tenha sido uma substituta”, afirmou. “Mas foi uma montanha-russa de emoções. É muito recompensador poder escrever uma história baseada no passado, sentir toda a dor, mas também perceber que estou aqui no presente, podendo sentir a dor do passado, ou seja, que eu sobrevivi àquilo. É uma sensação maravilhosa.”
Sua determinação de mostrar a realidade faz com que a série tenha detalhe que não se costuma ver na televisão, principalmente no caso de personagens femininas, como sexo durante o período menstrual e idas ao banheiro. “O banheiro se tornou muito importante para mim quando estava escrevendo porque é um espaço privado, e a série inteira é sobre a violação desse espaço privado”, explicou. “Será que você queria que aquela porta fosse aberta? Alguém forçou a porta quando estava fechada?”, questionou ela.
Apesar de lidar com um assunto doloroso, a série não é um drama do começo ao fim. Sua estrutura é toda fragmentada, uma espécie de enigma a ser decifrado. O espectador faz descobertas do que aconteceu e de como lidar com o que houve junto com a personagem. Flashbacks também mostram outros aspectos da vida de Arabella que, como a maioria dos jovens, gosta de se divertir com seus amigos Terry (Weruche Opia), uma atriz aspirante, e Kwame (Paapa Essiedu), e de namorar. Há também muito humor. “Em cada elemento de dor, o humor simplesmente aparece, sem convite. É parte de mim. Não sei como escrever sem um pouco de humor.”
É dona de uma voz particular. Filha de imigrantes de Gana, para onde seu pai voltou, foi criada pela mãe, que conseguiu se formar em enfermagem trabalhando como faxineira em Londres. Quando estava crescendo, não via pessoas como ela na TV. Seu contato com as artes veio das aulas gratuitas aos sábados no teatro perto da escola. Depois, apaixonou-se pela dança do grupo de hip-hop Boy Blue e decidiu que, como eles, queria contar histórias. “Sempre tive uma fé cega, nunca achei que não ia dar certo”, disse ela, que atribui isso à sua religiosidade – ela se tornou cristã aos 18, mas abandonou a igreja por não aceitar suas visões sobre homossexuais. Hoje, ela escreve, produz e dirige seus próprios trabalhos, chefiando uma equipe inteira. “A ficha caiu quando vi que aquelas pessoas reunidas ali confiavam em mim. Isso dá muito medo. Percebi que tinha de ouvir muito, porque, quando eu falasse, tinha de ser importante.”
Michaela Coel pode ser o espelho para muitas meninas negras, de famílias de imigrantes e classe trabalhadora. E, quem sabe, ajudar as pessoas a se sentir menos sozinhas, ainda mais nesse momento. “Eu sinto estar falando para as partes de nós que sabem que em algum momento de nossas vidas fomos injustiçados”, disse. “Alguém nos roubou nosso consentimento, ou tirou vantagem, nos explorou. Quero encorajar todos que se sentem assim a encontrar uma maneira de dormir à noite – porque, às vezes, a dor e a raiva podem impedir. Algo em mim espera que as pessoas entendam que elas merecem uma boa noite de sono e que devem buscar isso acima de tudo.”