Edição em reprise da Globo abre debate: é preciso cortar cenas ofensivas de novelas antigas?


Caso recente de ‘edição corretiva’ da reprise de Malhação no canal Viva, que teve uma cena de ‘blackface’ eliminada na edição, acendeu o debate

Por Danilo Casaletti
Atualização:

Para os fãs mais ortodoxos de telenovelas, há dois portos seguros: o canal Viva e o Globoplay, ambos da TV Globo. Eles sabem que, em uma espécie de compromisso informal, as duas plataformas se dispõem a exibir os conteúdos de novelas e séries antigas na íntegra. Isso virou estratégia comercial da emissora para atrair assinantes para os canais.

Essa relação de confiança sofreu um abalo quando, recentemente, o Viva fez uma revisão – ou um corte corretivo, se assim pode ser chamado – em um dos episódios da temporada de 1998 da série juvenil Malhação, reprisada pelo canal desde o mês de janeiro.

A cena envolvia quatro personagens adolescentes brancos, interpretados pelos atores Rodrigo Faro, Jonas Torres, Bruno Gradim e Alexandre Barillari, que participavam de um concurso de bandas. Para simular uma banda de reggae, gênero musical criado na Jamaica, eles pintaram seus rostos com tinta preta, praticando a chamada “blackface”.

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O Viva, que anteriormente só havia feito interferência mais ostensiva no conteúdo em função de audiência, quando a reprise da novela Bebê a Bordo não foi bem aceita pelos seus telespectadores, em 2018, comunicou o corte em suas redes sociais.

Os atores Rodrigo Faro e Cássia Linhares durante gravação da temporada de 1998 de 'Malhação' Foto: André Durão/Agência Estado

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Hoje é um novo dia, de um novo tempo...

Para além de contrariar o público, o caso suscita um debate importante: os conteúdos de telenovelas antigas carecem de revisão para que sejam eliminadas cenas que expressem racismo, preconceito, homofobia, machismo ou outras formas de discriminação que atinjam a audiência atual, assim como já ocorre com a literatura?

Defensores da edição corretiva dizem que:

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  • tivemos uma evolução social que torna estas cenas inaceitáveis;
  • o racismo reverbera para além do momento em que foi praticado, e incentiva este comportamento hoje;
  • a dignidade humana deve estar acima da preocupação com o roteiro de uma novela.

Críticos da edição corretiva apontam:

  • manipulação da história, tanto da ficção quanto da realidade;
  • paralelos com a censura durante a ditadura militar;
  • eliminar cenas do passado tem pouca interferência no presente e abre um precedente perigoso.
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A festa é de quem quiser, quem vier?

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Para Mauro Alencar, doutor em Teledramaturgia pela Universidade de São Paulo (USP) e autor do livro A Hollywood Brasileira – Panorama da Telenovela no Brasil, o canal Viva errou ao eliminar a cena na reprise.

“Considero a atitude não apenas censura, mas manipulação da história, tanto da ficção quanto da realidade”, diz, de maneira enfática. “E certamente é um capítulo inédito na história social da arte”, complementa.

Alencar vai além. Compara a revisão com os cortes que eram solicitados pelos censores durante a ditadura militar brasileira, que atingiam em cheio a produção cultural de um modo geral. O especialista diz que teve a oportunidade de conversar com pessoas que exerciam a função de decidir o que poderia ou não ir ao ar nas novelas à época do regime.

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“Não existe ‘censura educativa’. A Censura Federal (que, aliás, eu conheci muito bem) do governo militar também partia desse princípio”, diz.

Alencar enumera alguns episódios de interferência, como o que impediu o autor Dias Gomes de usar as palavras ‘capitão’ e ‘coronel’ na adaptação do clássico O Bem-Amado para a TV (1973) e o pedido para que a babá Nice de Anjo Mau (1976), considerada um mau exemplo para a sociedade, morresse na trama.

Na adaptação de O Bem Amado para a TV, Odorico Paraguaçú, personagem de Paulo Gracindo, não podia ser chamado de coronel Foto: Acervo TV Globo

O especialista aponta até mesmo a sugestão dos censores de negar a escravidão no Brasil. " (Os censores) implicaram com a palavra ‘escravo’ em Escrava Isaura (1976). Não era simpático nem educativo mostrar a crueldade da escravidão no Brasil, praticamente o último país do mundo a abolir o hediondo sistema econômico e social”, conta.

‘Cenas ofensivas’, diz diretor da Globo

Após o corte em Malhação, e com o aviso do Viva nas redes sociais, o diretor de Produtos Digitais e Canais Pagos da Globo, Erick Bretas, foi questionado por seguidores dos perfis do canal e se manifestou sobre a decisão.

“A ausência da banda leva um grupo de meninos brancos a se pintarem de preto e se apresentarem no lugar da banda ausente. Um caso de black face. Em 1998 isso poderia ser tolerado. A sociedade evoluiu e hoje cenas assim são consideradas ofensivas”, escreveu no Twitter.

A reportagem do Estadão enviou perguntas à TV Globo sobre o corte, mas a assessoria de imprensa disse que não teria tempo hábil para respondê-las dentro do prazo indicado.

O futuro já começou...

O doutor em ciências jurídicas pela Harvard Law School Adilson José Moreira, autor do livro Racismo Recreativo, concorda com a visão de Bretas sobre a eliminação da cena na reprise atual. Sobretudo, segundo ele, tendo em vista que os meios de comunicação de massa são, para muitos, a única maneira de conhecimento do mundo.

“Essa representação caricata (a blackface) é utilizada para provocar risos, ridicularizar negros. E, com isso, afirmar a superioridade branca. O estereótipo não é apenas uma falsa representação da realidade. Ele também tem uma carga emocional que representa o desprezo”, diz.

Moreira explica que uma piada ou uma brincadeira racista reverbera para além do momento em que foi praticada. “Há um elemento cognitivo que motivará o comportamento dessas pessoas em relação a membros desses grupos em todas as situações”, diz. Como exemplos, ele cita relações profissionais, de relacionamento, sexuais e de segurança.

‘Fazíamos todo tipo de piada’, diz roteirista

A roteirista Patrícia Moretzsohn, uma das autoras da Malhação 98, afirma ao Estadão não se recordar dessa cena especificamente.

“Mas lembro que fazíamos todo tipo de piada e, naquela época, era muito possível uma cena dessas, até porque era socialmente aceita. Fazíamos muitas trilhas assim, de a banda cometer alguma bobagem. Hoje, claro, temos outro olhar”, diz.

Revisão pode atingir outros conteúdos da emissora?

A literatura é o espaço no qual o debate sobre ações corretivas está mais avançado. Um caso notório no Brasil é a obra do escritor Monteiro Lobato. Ela foi revisada para que termos considerados racistas de livros do O Sítio do Pica-Pau Amarelo, alguns lançados há mais de 100 anos, fossem eliminados. Eram expressões como ‘macaca de carvão’, ‘beiçuda’ e ‘carne preta’.

Em 2020, um dos livros mais famosos da escritora inglesa Agatha Christie, Dix Petits Négres (O Caso dos Dez Negrinhos, título brasileiro), foi rebatizado na França para Ills Étainet Dix (Eram Dez), com autorização de seus herdeiros. Por aqui, o romance policial passou a se chamar E Não Sobrou Nenhum.

A questão das telenovelas se difere da literatura em dois aspectos. O primeiro é um fã clube de novelas e séries no Brasil - ou fandom, em linguagem atual - muito mais ruidosos e atuantes do que leitores de livros. Em segundo lugar, a edição corretiva em uma novela antiga pode deixar a trama confusa, já que nenhuma sequência pode ser regravada.

O Estadão questionou a TV Globo se outras novelas ou séries antigas da emissora, reexibidas no Viva ou disponibilizadas na íntegra no Globoplay podem ter cenas submetidas ao mesmo processo de revisão pelo qual Malhação 98 passou. Também questionou se há algum departamento dedicado a esse tipo de análise e sobre como essas decisões são tomadas. A emissora não respondeu às indagações.

Quando comentou o caso de Malhação pelas redes sociais, Erick Bretas afirmou que era preciso “respeitar a sensibilidade da audiência de 2023″.

Nesse sentido, há outras tantas cenas ou situações em novelas já disponíveis no Globoplay que podem ir de encontro à sensibilidade da audiência atual, e serem classificadas como racistas, homofóbicas e misóginas - e a percepção entre a ofensa e a denúncia social, por vezes, pode parecer confusa.

Em Amor Com Amor Se Paga (1984), de Ivani Ribeiro, o personagem Tio Romão (Fernando Torres), um misto de adivinho e curandeiro, é chamado de ‘macumbeiro’ por outros personagens. Em Elas Por Elas (1982), comédia escrita por Cassiano Gabus Mendes que ganhará remake na Globo em breve, Cláudia (Christiane Torloni) é tratada pelo namorado Renê (Reginaldo Farias) com expressões rudes, entre elas, ‘cala a boca’, ‘não dá mais nenhum pio’ ou ‘vou te dar uns tabefes’.

Um caminho encontrado pelo Viva e Globoplay foi colocar um aviso antes de cada capítulo comunicando o telespectador de que a obra reproduz costumes e comportamentos da época em que foi produzida.

A personagem de Christiane Torloni era maltratada pelo namorado na novela 'Elas Por Elas' Foto: Acervo TV GLobo

Afinal, como será o novo tempo?

Para Mauro Alencar, eliminar cenas do passado tem pouca interferência no presente – e ele acredita que o caso de Malhação 98 abre um precedente.

“Se esconder ou eliminar uma cena escrita e produzida no passado (e que, felizmente, não está mais em consonância com o nosso tempo) surtisse efeito real, não estaríamos assistindo às barbáries com o jogador Vini Junior. A arte é um excelente instrumento para iluminar o obscurantismo e o atraso psicossocial”, diz.

Alencar diz que o melhor é o educacional, quando as telenovelas atuais têm três protagonistas negros Diogo Almeida (Amor Perfeito), Sheron Menezzes (Vai na Fé) e Bárbara Reis (Terra e Paixão). “É essa a importância vital da arte. Além do entretenimento, trazer em seu contexto o valor social (antigo ‘merchandising social’), diz.

Patrícia Moretzsohn classifica o corte como um “apagamento histórico”. “Lógico que entendo a cena ser ofensiva, mas até que ponto deve-se apagar referências que precisamos ter para que cenas como essas não sejam repetidas?”, diz.

Por outro lado, a roteirista, que atualmente está fora do mercado para finalizar um mestrado e prepara um curso de storytelling, não vê problema em a TV Globo adaptar o conteúdo para o conforto da audiência atual. Mas ela afirma que os autores da série poderiam ser consultados sobre as mudanças. “Poderíamos fazer uma costura na trama”, diz.

Para Adilson José Moreira os cortes se impõem perante a qualquer outra discussão e devem ser feitos pela emissora sempre que necessários, mesmo desagradando aos fãs de telenovelas.

“Diante da dignidade do povo negro, indígena ou asiático, de minorias sexuais, de mulheres, a última coisa a ser considerada deve ser a preocupação do corte dessa natureza. Vivemos em uma democracia comprometida com a dignidade humana. Essas pessoas (fãs) podem espernear o quanto elas quiserem”, diz.

Para os fãs mais ortodoxos de telenovelas, há dois portos seguros: o canal Viva e o Globoplay, ambos da TV Globo. Eles sabem que, em uma espécie de compromisso informal, as duas plataformas se dispõem a exibir os conteúdos de novelas e séries antigas na íntegra. Isso virou estratégia comercial da emissora para atrair assinantes para os canais.

Essa relação de confiança sofreu um abalo quando, recentemente, o Viva fez uma revisão – ou um corte corretivo, se assim pode ser chamado – em um dos episódios da temporada de 1998 da série juvenil Malhação, reprisada pelo canal desde o mês de janeiro.

A cena envolvia quatro personagens adolescentes brancos, interpretados pelos atores Rodrigo Faro, Jonas Torres, Bruno Gradim e Alexandre Barillari, que participavam de um concurso de bandas. Para simular uma banda de reggae, gênero musical criado na Jamaica, eles pintaram seus rostos com tinta preta, praticando a chamada “blackface”.

O Viva, que anteriormente só havia feito interferência mais ostensiva no conteúdo em função de audiência, quando a reprise da novela Bebê a Bordo não foi bem aceita pelos seus telespectadores, em 2018, comunicou o corte em suas redes sociais.

Os atores Rodrigo Faro e Cássia Linhares durante gravação da temporada de 1998 de 'Malhação' Foto: André Durão/Agência Estado

Hoje é um novo dia, de um novo tempo...

Para além de contrariar o público, o caso suscita um debate importante: os conteúdos de telenovelas antigas carecem de revisão para que sejam eliminadas cenas que expressem racismo, preconceito, homofobia, machismo ou outras formas de discriminação que atinjam a audiência atual, assim como já ocorre com a literatura?

Defensores da edição corretiva dizem que:

  • tivemos uma evolução social que torna estas cenas inaceitáveis;
  • o racismo reverbera para além do momento em que foi praticado, e incentiva este comportamento hoje;
  • a dignidade humana deve estar acima da preocupação com o roteiro de uma novela.

Críticos da edição corretiva apontam:

  • manipulação da história, tanto da ficção quanto da realidade;
  • paralelos com a censura durante a ditadura militar;
  • eliminar cenas do passado tem pouca interferência no presente e abre um precedente perigoso.

A festa é de quem quiser, quem vier?

Para Mauro Alencar, doutor em Teledramaturgia pela Universidade de São Paulo (USP) e autor do livro A Hollywood Brasileira – Panorama da Telenovela no Brasil, o canal Viva errou ao eliminar a cena na reprise.

“Considero a atitude não apenas censura, mas manipulação da história, tanto da ficção quanto da realidade”, diz, de maneira enfática. “E certamente é um capítulo inédito na história social da arte”, complementa.

Alencar vai além. Compara a revisão com os cortes que eram solicitados pelos censores durante a ditadura militar brasileira, que atingiam em cheio a produção cultural de um modo geral. O especialista diz que teve a oportunidade de conversar com pessoas que exerciam a função de decidir o que poderia ou não ir ao ar nas novelas à época do regime.

“Não existe ‘censura educativa’. A Censura Federal (que, aliás, eu conheci muito bem) do governo militar também partia desse princípio”, diz.

Alencar enumera alguns episódios de interferência, como o que impediu o autor Dias Gomes de usar as palavras ‘capitão’ e ‘coronel’ na adaptação do clássico O Bem-Amado para a TV (1973) e o pedido para que a babá Nice de Anjo Mau (1976), considerada um mau exemplo para a sociedade, morresse na trama.

Na adaptação de O Bem Amado para a TV, Odorico Paraguaçú, personagem de Paulo Gracindo, não podia ser chamado de coronel Foto: Acervo TV Globo

O especialista aponta até mesmo a sugestão dos censores de negar a escravidão no Brasil. " (Os censores) implicaram com a palavra ‘escravo’ em Escrava Isaura (1976). Não era simpático nem educativo mostrar a crueldade da escravidão no Brasil, praticamente o último país do mundo a abolir o hediondo sistema econômico e social”, conta.

‘Cenas ofensivas’, diz diretor da Globo

Após o corte em Malhação, e com o aviso do Viva nas redes sociais, o diretor de Produtos Digitais e Canais Pagos da Globo, Erick Bretas, foi questionado por seguidores dos perfis do canal e se manifestou sobre a decisão.

“A ausência da banda leva um grupo de meninos brancos a se pintarem de preto e se apresentarem no lugar da banda ausente. Um caso de black face. Em 1998 isso poderia ser tolerado. A sociedade evoluiu e hoje cenas assim são consideradas ofensivas”, escreveu no Twitter.

A reportagem do Estadão enviou perguntas à TV Globo sobre o corte, mas a assessoria de imprensa disse que não teria tempo hábil para respondê-las dentro do prazo indicado.

O futuro já começou...

O doutor em ciências jurídicas pela Harvard Law School Adilson José Moreira, autor do livro Racismo Recreativo, concorda com a visão de Bretas sobre a eliminação da cena na reprise atual. Sobretudo, segundo ele, tendo em vista que os meios de comunicação de massa são, para muitos, a única maneira de conhecimento do mundo.

“Essa representação caricata (a blackface) é utilizada para provocar risos, ridicularizar negros. E, com isso, afirmar a superioridade branca. O estereótipo não é apenas uma falsa representação da realidade. Ele também tem uma carga emocional que representa o desprezo”, diz.

Moreira explica que uma piada ou uma brincadeira racista reverbera para além do momento em que foi praticada. “Há um elemento cognitivo que motivará o comportamento dessas pessoas em relação a membros desses grupos em todas as situações”, diz. Como exemplos, ele cita relações profissionais, de relacionamento, sexuais e de segurança.

‘Fazíamos todo tipo de piada’, diz roteirista

A roteirista Patrícia Moretzsohn, uma das autoras da Malhação 98, afirma ao Estadão não se recordar dessa cena especificamente.

“Mas lembro que fazíamos todo tipo de piada e, naquela época, era muito possível uma cena dessas, até porque era socialmente aceita. Fazíamos muitas trilhas assim, de a banda cometer alguma bobagem. Hoje, claro, temos outro olhar”, diz.

Revisão pode atingir outros conteúdos da emissora?

A literatura é o espaço no qual o debate sobre ações corretivas está mais avançado. Um caso notório no Brasil é a obra do escritor Monteiro Lobato. Ela foi revisada para que termos considerados racistas de livros do O Sítio do Pica-Pau Amarelo, alguns lançados há mais de 100 anos, fossem eliminados. Eram expressões como ‘macaca de carvão’, ‘beiçuda’ e ‘carne preta’.

Em 2020, um dos livros mais famosos da escritora inglesa Agatha Christie, Dix Petits Négres (O Caso dos Dez Negrinhos, título brasileiro), foi rebatizado na França para Ills Étainet Dix (Eram Dez), com autorização de seus herdeiros. Por aqui, o romance policial passou a se chamar E Não Sobrou Nenhum.

A questão das telenovelas se difere da literatura em dois aspectos. O primeiro é um fã clube de novelas e séries no Brasil - ou fandom, em linguagem atual - muito mais ruidosos e atuantes do que leitores de livros. Em segundo lugar, a edição corretiva em uma novela antiga pode deixar a trama confusa, já que nenhuma sequência pode ser regravada.

O Estadão questionou a TV Globo se outras novelas ou séries antigas da emissora, reexibidas no Viva ou disponibilizadas na íntegra no Globoplay podem ter cenas submetidas ao mesmo processo de revisão pelo qual Malhação 98 passou. Também questionou se há algum departamento dedicado a esse tipo de análise e sobre como essas decisões são tomadas. A emissora não respondeu às indagações.

Quando comentou o caso de Malhação pelas redes sociais, Erick Bretas afirmou que era preciso “respeitar a sensibilidade da audiência de 2023″.

Nesse sentido, há outras tantas cenas ou situações em novelas já disponíveis no Globoplay que podem ir de encontro à sensibilidade da audiência atual, e serem classificadas como racistas, homofóbicas e misóginas - e a percepção entre a ofensa e a denúncia social, por vezes, pode parecer confusa.

Em Amor Com Amor Se Paga (1984), de Ivani Ribeiro, o personagem Tio Romão (Fernando Torres), um misto de adivinho e curandeiro, é chamado de ‘macumbeiro’ por outros personagens. Em Elas Por Elas (1982), comédia escrita por Cassiano Gabus Mendes que ganhará remake na Globo em breve, Cláudia (Christiane Torloni) é tratada pelo namorado Renê (Reginaldo Farias) com expressões rudes, entre elas, ‘cala a boca’, ‘não dá mais nenhum pio’ ou ‘vou te dar uns tabefes’.

Um caminho encontrado pelo Viva e Globoplay foi colocar um aviso antes de cada capítulo comunicando o telespectador de que a obra reproduz costumes e comportamentos da época em que foi produzida.

A personagem de Christiane Torloni era maltratada pelo namorado na novela 'Elas Por Elas' Foto: Acervo TV GLobo

Afinal, como será o novo tempo?

Para Mauro Alencar, eliminar cenas do passado tem pouca interferência no presente – e ele acredita que o caso de Malhação 98 abre um precedente.

“Se esconder ou eliminar uma cena escrita e produzida no passado (e que, felizmente, não está mais em consonância com o nosso tempo) surtisse efeito real, não estaríamos assistindo às barbáries com o jogador Vini Junior. A arte é um excelente instrumento para iluminar o obscurantismo e o atraso psicossocial”, diz.

Alencar diz que o melhor é o educacional, quando as telenovelas atuais têm três protagonistas negros Diogo Almeida (Amor Perfeito), Sheron Menezzes (Vai na Fé) e Bárbara Reis (Terra e Paixão). “É essa a importância vital da arte. Além do entretenimento, trazer em seu contexto o valor social (antigo ‘merchandising social’), diz.

Patrícia Moretzsohn classifica o corte como um “apagamento histórico”. “Lógico que entendo a cena ser ofensiva, mas até que ponto deve-se apagar referências que precisamos ter para que cenas como essas não sejam repetidas?”, diz.

Por outro lado, a roteirista, que atualmente está fora do mercado para finalizar um mestrado e prepara um curso de storytelling, não vê problema em a TV Globo adaptar o conteúdo para o conforto da audiência atual. Mas ela afirma que os autores da série poderiam ser consultados sobre as mudanças. “Poderíamos fazer uma costura na trama”, diz.

Para Adilson José Moreira os cortes se impõem perante a qualquer outra discussão e devem ser feitos pela emissora sempre que necessários, mesmo desagradando aos fãs de telenovelas.

“Diante da dignidade do povo negro, indígena ou asiático, de minorias sexuais, de mulheres, a última coisa a ser considerada deve ser a preocupação do corte dessa natureza. Vivemos em uma democracia comprometida com a dignidade humana. Essas pessoas (fãs) podem espernear o quanto elas quiserem”, diz.

Para os fãs mais ortodoxos de telenovelas, há dois portos seguros: o canal Viva e o Globoplay, ambos da TV Globo. Eles sabem que, em uma espécie de compromisso informal, as duas plataformas se dispõem a exibir os conteúdos de novelas e séries antigas na íntegra. Isso virou estratégia comercial da emissora para atrair assinantes para os canais.

Essa relação de confiança sofreu um abalo quando, recentemente, o Viva fez uma revisão – ou um corte corretivo, se assim pode ser chamado – em um dos episódios da temporada de 1998 da série juvenil Malhação, reprisada pelo canal desde o mês de janeiro.

A cena envolvia quatro personagens adolescentes brancos, interpretados pelos atores Rodrigo Faro, Jonas Torres, Bruno Gradim e Alexandre Barillari, que participavam de um concurso de bandas. Para simular uma banda de reggae, gênero musical criado na Jamaica, eles pintaram seus rostos com tinta preta, praticando a chamada “blackface”.

O Viva, que anteriormente só havia feito interferência mais ostensiva no conteúdo em função de audiência, quando a reprise da novela Bebê a Bordo não foi bem aceita pelos seus telespectadores, em 2018, comunicou o corte em suas redes sociais.

Os atores Rodrigo Faro e Cássia Linhares durante gravação da temporada de 1998 de 'Malhação' Foto: André Durão/Agência Estado

Hoje é um novo dia, de um novo tempo...

Para além de contrariar o público, o caso suscita um debate importante: os conteúdos de telenovelas antigas carecem de revisão para que sejam eliminadas cenas que expressem racismo, preconceito, homofobia, machismo ou outras formas de discriminação que atinjam a audiência atual, assim como já ocorre com a literatura?

Defensores da edição corretiva dizem que:

  • tivemos uma evolução social que torna estas cenas inaceitáveis;
  • o racismo reverbera para além do momento em que foi praticado, e incentiva este comportamento hoje;
  • a dignidade humana deve estar acima da preocupação com o roteiro de uma novela.

Críticos da edição corretiva apontam:

  • manipulação da história, tanto da ficção quanto da realidade;
  • paralelos com a censura durante a ditadura militar;
  • eliminar cenas do passado tem pouca interferência no presente e abre um precedente perigoso.

A festa é de quem quiser, quem vier?

Para Mauro Alencar, doutor em Teledramaturgia pela Universidade de São Paulo (USP) e autor do livro A Hollywood Brasileira – Panorama da Telenovela no Brasil, o canal Viva errou ao eliminar a cena na reprise.

“Considero a atitude não apenas censura, mas manipulação da história, tanto da ficção quanto da realidade”, diz, de maneira enfática. “E certamente é um capítulo inédito na história social da arte”, complementa.

Alencar vai além. Compara a revisão com os cortes que eram solicitados pelos censores durante a ditadura militar brasileira, que atingiam em cheio a produção cultural de um modo geral. O especialista diz que teve a oportunidade de conversar com pessoas que exerciam a função de decidir o que poderia ou não ir ao ar nas novelas à época do regime.

“Não existe ‘censura educativa’. A Censura Federal (que, aliás, eu conheci muito bem) do governo militar também partia desse princípio”, diz.

Alencar enumera alguns episódios de interferência, como o que impediu o autor Dias Gomes de usar as palavras ‘capitão’ e ‘coronel’ na adaptação do clássico O Bem-Amado para a TV (1973) e o pedido para que a babá Nice de Anjo Mau (1976), considerada um mau exemplo para a sociedade, morresse na trama.

Na adaptação de O Bem Amado para a TV, Odorico Paraguaçú, personagem de Paulo Gracindo, não podia ser chamado de coronel Foto: Acervo TV Globo

O especialista aponta até mesmo a sugestão dos censores de negar a escravidão no Brasil. " (Os censores) implicaram com a palavra ‘escravo’ em Escrava Isaura (1976). Não era simpático nem educativo mostrar a crueldade da escravidão no Brasil, praticamente o último país do mundo a abolir o hediondo sistema econômico e social”, conta.

‘Cenas ofensivas’, diz diretor da Globo

Após o corte em Malhação, e com o aviso do Viva nas redes sociais, o diretor de Produtos Digitais e Canais Pagos da Globo, Erick Bretas, foi questionado por seguidores dos perfis do canal e se manifestou sobre a decisão.

“A ausência da banda leva um grupo de meninos brancos a se pintarem de preto e se apresentarem no lugar da banda ausente. Um caso de black face. Em 1998 isso poderia ser tolerado. A sociedade evoluiu e hoje cenas assim são consideradas ofensivas”, escreveu no Twitter.

A reportagem do Estadão enviou perguntas à TV Globo sobre o corte, mas a assessoria de imprensa disse que não teria tempo hábil para respondê-las dentro do prazo indicado.

O futuro já começou...

O doutor em ciências jurídicas pela Harvard Law School Adilson José Moreira, autor do livro Racismo Recreativo, concorda com a visão de Bretas sobre a eliminação da cena na reprise atual. Sobretudo, segundo ele, tendo em vista que os meios de comunicação de massa são, para muitos, a única maneira de conhecimento do mundo.

“Essa representação caricata (a blackface) é utilizada para provocar risos, ridicularizar negros. E, com isso, afirmar a superioridade branca. O estereótipo não é apenas uma falsa representação da realidade. Ele também tem uma carga emocional que representa o desprezo”, diz.

Moreira explica que uma piada ou uma brincadeira racista reverbera para além do momento em que foi praticada. “Há um elemento cognitivo que motivará o comportamento dessas pessoas em relação a membros desses grupos em todas as situações”, diz. Como exemplos, ele cita relações profissionais, de relacionamento, sexuais e de segurança.

‘Fazíamos todo tipo de piada’, diz roteirista

A roteirista Patrícia Moretzsohn, uma das autoras da Malhação 98, afirma ao Estadão não se recordar dessa cena especificamente.

“Mas lembro que fazíamos todo tipo de piada e, naquela época, era muito possível uma cena dessas, até porque era socialmente aceita. Fazíamos muitas trilhas assim, de a banda cometer alguma bobagem. Hoje, claro, temos outro olhar”, diz.

Revisão pode atingir outros conteúdos da emissora?

A literatura é o espaço no qual o debate sobre ações corretivas está mais avançado. Um caso notório no Brasil é a obra do escritor Monteiro Lobato. Ela foi revisada para que termos considerados racistas de livros do O Sítio do Pica-Pau Amarelo, alguns lançados há mais de 100 anos, fossem eliminados. Eram expressões como ‘macaca de carvão’, ‘beiçuda’ e ‘carne preta’.

Em 2020, um dos livros mais famosos da escritora inglesa Agatha Christie, Dix Petits Négres (O Caso dos Dez Negrinhos, título brasileiro), foi rebatizado na França para Ills Étainet Dix (Eram Dez), com autorização de seus herdeiros. Por aqui, o romance policial passou a se chamar E Não Sobrou Nenhum.

A questão das telenovelas se difere da literatura em dois aspectos. O primeiro é um fã clube de novelas e séries no Brasil - ou fandom, em linguagem atual - muito mais ruidosos e atuantes do que leitores de livros. Em segundo lugar, a edição corretiva em uma novela antiga pode deixar a trama confusa, já que nenhuma sequência pode ser regravada.

O Estadão questionou a TV Globo se outras novelas ou séries antigas da emissora, reexibidas no Viva ou disponibilizadas na íntegra no Globoplay podem ter cenas submetidas ao mesmo processo de revisão pelo qual Malhação 98 passou. Também questionou se há algum departamento dedicado a esse tipo de análise e sobre como essas decisões são tomadas. A emissora não respondeu às indagações.

Quando comentou o caso de Malhação pelas redes sociais, Erick Bretas afirmou que era preciso “respeitar a sensibilidade da audiência de 2023″.

Nesse sentido, há outras tantas cenas ou situações em novelas já disponíveis no Globoplay que podem ir de encontro à sensibilidade da audiência atual, e serem classificadas como racistas, homofóbicas e misóginas - e a percepção entre a ofensa e a denúncia social, por vezes, pode parecer confusa.

Em Amor Com Amor Se Paga (1984), de Ivani Ribeiro, o personagem Tio Romão (Fernando Torres), um misto de adivinho e curandeiro, é chamado de ‘macumbeiro’ por outros personagens. Em Elas Por Elas (1982), comédia escrita por Cassiano Gabus Mendes que ganhará remake na Globo em breve, Cláudia (Christiane Torloni) é tratada pelo namorado Renê (Reginaldo Farias) com expressões rudes, entre elas, ‘cala a boca’, ‘não dá mais nenhum pio’ ou ‘vou te dar uns tabefes’.

Um caminho encontrado pelo Viva e Globoplay foi colocar um aviso antes de cada capítulo comunicando o telespectador de que a obra reproduz costumes e comportamentos da época em que foi produzida.

A personagem de Christiane Torloni era maltratada pelo namorado na novela 'Elas Por Elas' Foto: Acervo TV GLobo

Afinal, como será o novo tempo?

Para Mauro Alencar, eliminar cenas do passado tem pouca interferência no presente – e ele acredita que o caso de Malhação 98 abre um precedente.

“Se esconder ou eliminar uma cena escrita e produzida no passado (e que, felizmente, não está mais em consonância com o nosso tempo) surtisse efeito real, não estaríamos assistindo às barbáries com o jogador Vini Junior. A arte é um excelente instrumento para iluminar o obscurantismo e o atraso psicossocial”, diz.

Alencar diz que o melhor é o educacional, quando as telenovelas atuais têm três protagonistas negros Diogo Almeida (Amor Perfeito), Sheron Menezzes (Vai na Fé) e Bárbara Reis (Terra e Paixão). “É essa a importância vital da arte. Além do entretenimento, trazer em seu contexto o valor social (antigo ‘merchandising social’), diz.

Patrícia Moretzsohn classifica o corte como um “apagamento histórico”. “Lógico que entendo a cena ser ofensiva, mas até que ponto deve-se apagar referências que precisamos ter para que cenas como essas não sejam repetidas?”, diz.

Por outro lado, a roteirista, que atualmente está fora do mercado para finalizar um mestrado e prepara um curso de storytelling, não vê problema em a TV Globo adaptar o conteúdo para o conforto da audiência atual. Mas ela afirma que os autores da série poderiam ser consultados sobre as mudanças. “Poderíamos fazer uma costura na trama”, diz.

Para Adilson José Moreira os cortes se impõem perante a qualquer outra discussão e devem ser feitos pela emissora sempre que necessários, mesmo desagradando aos fãs de telenovelas.

“Diante da dignidade do povo negro, indígena ou asiático, de minorias sexuais, de mulheres, a última coisa a ser considerada deve ser a preocupação do corte dessa natureza. Vivemos em uma democracia comprometida com a dignidade humana. Essas pessoas (fãs) podem espernear o quanto elas quiserem”, diz.

Para os fãs mais ortodoxos de telenovelas, há dois portos seguros: o canal Viva e o Globoplay, ambos da TV Globo. Eles sabem que, em uma espécie de compromisso informal, as duas plataformas se dispõem a exibir os conteúdos de novelas e séries antigas na íntegra. Isso virou estratégia comercial da emissora para atrair assinantes para os canais.

Essa relação de confiança sofreu um abalo quando, recentemente, o Viva fez uma revisão – ou um corte corretivo, se assim pode ser chamado – em um dos episódios da temporada de 1998 da série juvenil Malhação, reprisada pelo canal desde o mês de janeiro.

A cena envolvia quatro personagens adolescentes brancos, interpretados pelos atores Rodrigo Faro, Jonas Torres, Bruno Gradim e Alexandre Barillari, que participavam de um concurso de bandas. Para simular uma banda de reggae, gênero musical criado na Jamaica, eles pintaram seus rostos com tinta preta, praticando a chamada “blackface”.

O Viva, que anteriormente só havia feito interferência mais ostensiva no conteúdo em função de audiência, quando a reprise da novela Bebê a Bordo não foi bem aceita pelos seus telespectadores, em 2018, comunicou o corte em suas redes sociais.

Os atores Rodrigo Faro e Cássia Linhares durante gravação da temporada de 1998 de 'Malhação' Foto: André Durão/Agência Estado

Hoje é um novo dia, de um novo tempo...

Para além de contrariar o público, o caso suscita um debate importante: os conteúdos de telenovelas antigas carecem de revisão para que sejam eliminadas cenas que expressem racismo, preconceito, homofobia, machismo ou outras formas de discriminação que atinjam a audiência atual, assim como já ocorre com a literatura?

Defensores da edição corretiva dizem que:

  • tivemos uma evolução social que torna estas cenas inaceitáveis;
  • o racismo reverbera para além do momento em que foi praticado, e incentiva este comportamento hoje;
  • a dignidade humana deve estar acima da preocupação com o roteiro de uma novela.

Críticos da edição corretiva apontam:

  • manipulação da história, tanto da ficção quanto da realidade;
  • paralelos com a censura durante a ditadura militar;
  • eliminar cenas do passado tem pouca interferência no presente e abre um precedente perigoso.

A festa é de quem quiser, quem vier?

Para Mauro Alencar, doutor em Teledramaturgia pela Universidade de São Paulo (USP) e autor do livro A Hollywood Brasileira – Panorama da Telenovela no Brasil, o canal Viva errou ao eliminar a cena na reprise.

“Considero a atitude não apenas censura, mas manipulação da história, tanto da ficção quanto da realidade”, diz, de maneira enfática. “E certamente é um capítulo inédito na história social da arte”, complementa.

Alencar vai além. Compara a revisão com os cortes que eram solicitados pelos censores durante a ditadura militar brasileira, que atingiam em cheio a produção cultural de um modo geral. O especialista diz que teve a oportunidade de conversar com pessoas que exerciam a função de decidir o que poderia ou não ir ao ar nas novelas à época do regime.

“Não existe ‘censura educativa’. A Censura Federal (que, aliás, eu conheci muito bem) do governo militar também partia desse princípio”, diz.

Alencar enumera alguns episódios de interferência, como o que impediu o autor Dias Gomes de usar as palavras ‘capitão’ e ‘coronel’ na adaptação do clássico O Bem-Amado para a TV (1973) e o pedido para que a babá Nice de Anjo Mau (1976), considerada um mau exemplo para a sociedade, morresse na trama.

Na adaptação de O Bem Amado para a TV, Odorico Paraguaçú, personagem de Paulo Gracindo, não podia ser chamado de coronel Foto: Acervo TV Globo

O especialista aponta até mesmo a sugestão dos censores de negar a escravidão no Brasil. " (Os censores) implicaram com a palavra ‘escravo’ em Escrava Isaura (1976). Não era simpático nem educativo mostrar a crueldade da escravidão no Brasil, praticamente o último país do mundo a abolir o hediondo sistema econômico e social”, conta.

‘Cenas ofensivas’, diz diretor da Globo

Após o corte em Malhação, e com o aviso do Viva nas redes sociais, o diretor de Produtos Digitais e Canais Pagos da Globo, Erick Bretas, foi questionado por seguidores dos perfis do canal e se manifestou sobre a decisão.

“A ausência da banda leva um grupo de meninos brancos a se pintarem de preto e se apresentarem no lugar da banda ausente. Um caso de black face. Em 1998 isso poderia ser tolerado. A sociedade evoluiu e hoje cenas assim são consideradas ofensivas”, escreveu no Twitter.

A reportagem do Estadão enviou perguntas à TV Globo sobre o corte, mas a assessoria de imprensa disse que não teria tempo hábil para respondê-las dentro do prazo indicado.

O futuro já começou...

O doutor em ciências jurídicas pela Harvard Law School Adilson José Moreira, autor do livro Racismo Recreativo, concorda com a visão de Bretas sobre a eliminação da cena na reprise atual. Sobretudo, segundo ele, tendo em vista que os meios de comunicação de massa são, para muitos, a única maneira de conhecimento do mundo.

“Essa representação caricata (a blackface) é utilizada para provocar risos, ridicularizar negros. E, com isso, afirmar a superioridade branca. O estereótipo não é apenas uma falsa representação da realidade. Ele também tem uma carga emocional que representa o desprezo”, diz.

Moreira explica que uma piada ou uma brincadeira racista reverbera para além do momento em que foi praticada. “Há um elemento cognitivo que motivará o comportamento dessas pessoas em relação a membros desses grupos em todas as situações”, diz. Como exemplos, ele cita relações profissionais, de relacionamento, sexuais e de segurança.

‘Fazíamos todo tipo de piada’, diz roteirista

A roteirista Patrícia Moretzsohn, uma das autoras da Malhação 98, afirma ao Estadão não se recordar dessa cena especificamente.

“Mas lembro que fazíamos todo tipo de piada e, naquela época, era muito possível uma cena dessas, até porque era socialmente aceita. Fazíamos muitas trilhas assim, de a banda cometer alguma bobagem. Hoje, claro, temos outro olhar”, diz.

Revisão pode atingir outros conteúdos da emissora?

A literatura é o espaço no qual o debate sobre ações corretivas está mais avançado. Um caso notório no Brasil é a obra do escritor Monteiro Lobato. Ela foi revisada para que termos considerados racistas de livros do O Sítio do Pica-Pau Amarelo, alguns lançados há mais de 100 anos, fossem eliminados. Eram expressões como ‘macaca de carvão’, ‘beiçuda’ e ‘carne preta’.

Em 2020, um dos livros mais famosos da escritora inglesa Agatha Christie, Dix Petits Négres (O Caso dos Dez Negrinhos, título brasileiro), foi rebatizado na França para Ills Étainet Dix (Eram Dez), com autorização de seus herdeiros. Por aqui, o romance policial passou a se chamar E Não Sobrou Nenhum.

A questão das telenovelas se difere da literatura em dois aspectos. O primeiro é um fã clube de novelas e séries no Brasil - ou fandom, em linguagem atual - muito mais ruidosos e atuantes do que leitores de livros. Em segundo lugar, a edição corretiva em uma novela antiga pode deixar a trama confusa, já que nenhuma sequência pode ser regravada.

O Estadão questionou a TV Globo se outras novelas ou séries antigas da emissora, reexibidas no Viva ou disponibilizadas na íntegra no Globoplay podem ter cenas submetidas ao mesmo processo de revisão pelo qual Malhação 98 passou. Também questionou se há algum departamento dedicado a esse tipo de análise e sobre como essas decisões são tomadas. A emissora não respondeu às indagações.

Quando comentou o caso de Malhação pelas redes sociais, Erick Bretas afirmou que era preciso “respeitar a sensibilidade da audiência de 2023″.

Nesse sentido, há outras tantas cenas ou situações em novelas já disponíveis no Globoplay que podem ir de encontro à sensibilidade da audiência atual, e serem classificadas como racistas, homofóbicas e misóginas - e a percepção entre a ofensa e a denúncia social, por vezes, pode parecer confusa.

Em Amor Com Amor Se Paga (1984), de Ivani Ribeiro, o personagem Tio Romão (Fernando Torres), um misto de adivinho e curandeiro, é chamado de ‘macumbeiro’ por outros personagens. Em Elas Por Elas (1982), comédia escrita por Cassiano Gabus Mendes que ganhará remake na Globo em breve, Cláudia (Christiane Torloni) é tratada pelo namorado Renê (Reginaldo Farias) com expressões rudes, entre elas, ‘cala a boca’, ‘não dá mais nenhum pio’ ou ‘vou te dar uns tabefes’.

Um caminho encontrado pelo Viva e Globoplay foi colocar um aviso antes de cada capítulo comunicando o telespectador de que a obra reproduz costumes e comportamentos da época em que foi produzida.

A personagem de Christiane Torloni era maltratada pelo namorado na novela 'Elas Por Elas' Foto: Acervo TV GLobo

Afinal, como será o novo tempo?

Para Mauro Alencar, eliminar cenas do passado tem pouca interferência no presente – e ele acredita que o caso de Malhação 98 abre um precedente.

“Se esconder ou eliminar uma cena escrita e produzida no passado (e que, felizmente, não está mais em consonância com o nosso tempo) surtisse efeito real, não estaríamos assistindo às barbáries com o jogador Vini Junior. A arte é um excelente instrumento para iluminar o obscurantismo e o atraso psicossocial”, diz.

Alencar diz que o melhor é o educacional, quando as telenovelas atuais têm três protagonistas negros Diogo Almeida (Amor Perfeito), Sheron Menezzes (Vai na Fé) e Bárbara Reis (Terra e Paixão). “É essa a importância vital da arte. Além do entretenimento, trazer em seu contexto o valor social (antigo ‘merchandising social’), diz.

Patrícia Moretzsohn classifica o corte como um “apagamento histórico”. “Lógico que entendo a cena ser ofensiva, mas até que ponto deve-se apagar referências que precisamos ter para que cenas como essas não sejam repetidas?”, diz.

Por outro lado, a roteirista, que atualmente está fora do mercado para finalizar um mestrado e prepara um curso de storytelling, não vê problema em a TV Globo adaptar o conteúdo para o conforto da audiência atual. Mas ela afirma que os autores da série poderiam ser consultados sobre as mudanças. “Poderíamos fazer uma costura na trama”, diz.

Para Adilson José Moreira os cortes se impõem perante a qualquer outra discussão e devem ser feitos pela emissora sempre que necessários, mesmo desagradando aos fãs de telenovelas.

“Diante da dignidade do povo negro, indígena ou asiático, de minorias sexuais, de mulheres, a última coisa a ser considerada deve ser a preocupação do corte dessa natureza. Vivemos em uma democracia comprometida com a dignidade humana. Essas pessoas (fãs) podem espernear o quanto elas quiserem”, diz.

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