Black Earth Rising quer explicar como e por que o genocídio de Ruanda começou, quais os interesses envolvidos então, o papel dos colonizadores e do mundo na matança e na reconstrução do país. A série, coprodução entre a Netflix e a BBC Two que estreou no fim de janeiro no streaming (passou na TV no Reino Unido entre setembro e outubro do ano passado), ainda aponta o dedo para a Igreja, para os tribunais internacionais, para o “paternalismo ocidental” e para os políticos e mostra as marcas do que não pode – não deve? – ser esquecido. Ufa. Um punhado de desafios para oito episódios de uma hora cada um.
A história é centrada em Kate Ashby (a lindíssima Michaela Coel), uma jovem investigadora que nasceu em Ruanda e mora em Londres e que foi salva do genocídio pela mãe, Eve (Harriet Walter), uma renomada advogada especialista em direitos humanos. Ela tem de confrontar o passado, do qual se lembra apenas em vagos flashbacks, quando a mãe leva ao tribunal um criminoso de guerra. Kate tem a ajuda de Michael Ennis (o sempre ótimo John Goodman) e embarca numa trama misteriosa entre França, Inglaterra e Ruanda.
A série acerta em cheio ao colocar o dedo na ferida em vários momentos. Critica a postura da Bélgica que, quando da colonização, incentivou a rivalidade entre hutus e tutsis. Enquanto os tutsis faziam parte de uma elite econômica e intelectualmente privilegiada, aos hutus, a maioria dos moradores do país, eram relegadas funções agrícolas e pouca instrução. A história se inverte com a independência, em 1962, quando os hutus assumem o poder e começam as perseguições aos tutsis e deportações – até o ápice do horror, de abril a julho de 1994, quando aproximadamente 800 mil tutsis e hutus moderados foram assassinados no país.
Quase sempre por intermédio de Kate, Black Earth também critica a atuação da França no conflito, acusada de armar e treinar os hutus e só interferir no genocídio quando os rebeldes da Frente Patriótica de Ruanda (FPR) estavam prestes a tomar o país – e os franceses só o fizeram, acusa a investigadora, para possibilitar que os hutus escapassem para a vizinha República Democrática do Congo (na época Zaire).
Escrita e dirigida por Hugo Blick, que também interpreta o inescrupuloso advogado Blake Gaines, a série mostra uma Igreja Católica no mínimo omissa diante do massacre e pós-conflito. E ainda aponta o dedo para o tribunal internacional montado para investigar e punir os criminosos de guerra – tanto hutus, responsáveis pelo extermínio, quanto os tutsis, que revidaram depois, nos campos de refugiados do Congo. Ao falar dos dias atuais, conta que Ruanda, apesar de ostentar bons índices econômicos, tem uma presidente, Bibi Mundazi (papel de Abena Ayivor), ex-combatente da FPR, no terceiro mandato e que não tolera muito bem a oposição – exatamente como o atual presidente do país, Paul Kagame.
Black Earth Rising ainda acerta ao mostrar algumas das cenas mais chocantes em animação em preto em branco, sem perder a dramaticidade. O diretor, no entanto, não poupa o espectador. E, para falar a verdade, isso nem seria possível se a intenção é contar, mesmo que por alto, a história de um genocídio. Por isso, ao longo dos oito episódios não faltam assassinatos, envenenamentos, suicídios e vômito, muito vômito (de medo, dor, emoção). Há também cadáveres – nas catacumbas de Paris ou nos memoriais do genocídio em Kigali, capital de Ruanda.
Uma das cenas mais tocantes é quando, de volta ao país onde nasceu, Kate vai até o que parece ser a igreja de Nyamata, onde, na “vida real”, 50 mil tutsis foram assassinados.
Se em parte parece destinada para “iniciados” no assunto, ao abordar tantos temas em tão pouco tempo, Black Earth Rising tem uma importância fundamental: chamar a atenção para o massacre de Ruanda, que completa 25 anos em 2019, e que, assim como na época, parece esquecido pelo resto do mundo.
Bônus: A música de abertura fica a cargo do eterno Leonard Cohen, com You Want It Darker – e a trilha ainda inclui uma pérola de Lou Reed.