A noite da sexta-feira, 25, não marcará simplesmente o final de mais uma novela da Globo: encerrada, Um Lugar ao Sol terá fechado um raro ciclo entre os folhetins da emissora, pois temas incomuns, como gordofobia, liderança feminina, homofobia, foram tratados de forma direta, adulta e sem apelação. O bem-sucedido resultado foi fruto de interpretações seguras, direção inspirada e, principalmente, do texto bem articulado da teledramaturga Lícia Manzo, de 56 anos. Com diálogos precisos e cenas de alta capacidade dramática, ela escreveu uma novela que deverá figurar entre os grandes títulos da teledramaturgia brasileira.
A história do rapaz pobre que assumiu a posição do irmão gêmeo rico e morto (personagens de Cauã Reymond) sem que quase ninguém soubesse, a fim de alcançar uma prosperidade inatingível, foi o ponto de partida para Lícia traçar uma sociedade basicamente carioca (mas universal na essência) movida por desejos, frustrações, crimes, mas também amor e amizade. “O protagonista, Christian, é um homem bom que se corrompe ao desejar a riqueza e assumir a posição do irmão rico, Renato. Ele se perde e vai enlouquecendo progressivamente”, conta Lícia ao Estadão, em conversa por telefone. “Na internet, percebi que as pessoas buscavam explicações binárias: ele é bom ou é mal? Pensar é difícil, é mais fácil julgar.”
O rapaz, com nova identidade, passa a frequentar o mundo da riqueza, protagonizado pelo empresário Santiago (José de Abreu) e suas três filhas: Rebeca (Andrea Beltrão), Nicole (Ana Baird) e Bárbara (Alinne Moraes) – todas padecendo, em diferentes graus, da indiferença paterna durante a infância. Há uma inevitável presença shakespeariana aqui, notadamente a tragédia de Lear, o rei que decide se afastar do trono e dividir o seu reino entre suas filhas. Na novela, porém, nenhuma das moças reúne condições para assumir a rede de supermercados do pai, função que, durante um tempo, termina nas mãos de Christian/Renato, principalmente por ter se casado (por interesse) com Bárbara. “A estrutura da peça Rei Lear é, de fato, muito forte”, conta Lícia, que desenvolveu (junto a uma equipe de roteiristas colaboradores) as características de todos os personagens.
Ambíguas
Assim, enquanto Bárbara acredita que pode mudar o outro, Nicole está sempre disposta a acender a loucura familiar e a gordofobia. “Já Rebeca é o retrato do cancelamento da mulher a partir de certa faixa etária”, explica Lícia. “Na verdade, são pessoas muito ambíguas, por isso foi um desafio manter a coerência psicológica dos personagens.” É justamente a observação da complexidade humana que tornou a novela tão singular, especialmente pela opção da autora em escrever uma trama a partir da intimidade, do particular. “O fato importa menos que a repercussão desse fato no indivíduo.”
Lícia acredita que teve relativa facilidade para trilhar esse caminho graças ao seu conhecimento da obra de Clarice Lispector, autora especializada em dissecar a alma humana. “A subjetividade dos personagens sempre me interessou. Ali surgem figuras mais humanas.”
A escrita da novela começou há quatro anos, quando uma reportagem sobre os sonhos de garotos de um orfanato a comoveu, inspirando-a também a imaginar uma trama com dois gêmeos com destinos distintos – um vai para o abrigo, enquanto o outro é adotado por uma família rica. “Assim, quando Christian decide assumir a identidade do irmão morto, acontece a fusão dos personagens, o que me permitiu tratar de questões como integridade, ética, desigualdade social.”
Com a pandemia, Lícia teve mais tempo para criar – cada capítulo consumiu três dias de trabalho. “Cheguei a levar duas horas para escrever uma cena”, relembra ela, favorecida por uma decisão da Globo: a novela foi toda gravada antes de estrear. Se isso ajudou na organicidade, também impediu os desvios habituais na trama, motivados pelo humor do público à medida que a novela é exibida. Isso pode explicar a tímida performance da audiência: apesar de líder no horário, o folhetim atingiu 22 pontos na média nacional, abaixo do pior resultado da faixa (Babilônia, de 2015).