Quando uma discussão online viraliza, há uma probabilidade de quase 100% de ela terminar, quando se faz uma referência a Hitler. Este é um resumo da Lei de Godwin, que, desde de 1990, ganhou o seu verbete no Oxford Dictionary. Enunciada pela primeira vez pelo jurista e escritor americano Mike Godwin, ela virou um sintoma das quase infinitas teorias das conspirações, as quais, com o advento do universo digital, ganharam novo e surpreendente fôlego. Também é a inspiração inicial do novo livro de Richard Evans, Conspirações Sobre Hitler: o Terceiro Reich e a Imaginação Paranoica.
Especialista altamente credenciado da história do nazismo, lembre-se de que Evans atuou como perito no contencioso judicial do negacionista David Irving contra a historiadora Debora Liptstad, em 2000, e, seis anos depois, acabou virando personagem no conhecido filme Negação. Evans examina cinco casos, ainda tristemente famosos, de narrativas conspiratórias, colocadas no tom e estilo rasteiros da paranoia: os Protocolos dos Sábios de Sião foram uma autorização oficial para o genocídio? O exército alemão foi “apunhalado pelas costas” por socialistas e judeus em 1918? Os nazistas queimaram o Reichstag para tomar o poder? A fuga de Rudolph Hess para o Reino Unido, em 1941, foi autorizada por Hitler para propor a paz e foi omitida por Churchill? Hitler escapou do bunker em 1945, sobreviveu e fugiu para a América Latina?
Sem receio de enfrentar a complexidade, Evans tem a paciência de examinar cada um desses casos, em capítulos magistrais e meticulosamente documentados. Perda de tempo? Basta fazer uma busca na internet para verificar que nem a Lei de Godwin funciona mais – e muitas das fake news consistem basicamente em teorias da conspiração construídas a partir de fantasias e puras invencionices. O paradoxo da literatura paranoica é que ela é obsessiva por amealhar evidências para provar que o inacreditável é a única coisa em que se pode acreditar.
O caso dos Protocolos (a mais notória de todas as fraudes antissemitas) já foi amplamente estudado e Evans o define como o paradigma da conspiração sistêmica: uma única organização realiza uma ampla variedade de atividades veladas com o objetivo de assumir o controle de uma região, de um país ou mesmo do mundo inteiro. À margem de qualquer discurso racional, os Protocolos são ainda autovedantes: às críticas de que são plagiados e fraudulentos, conspiradores esgrimem a resposta pronta: são os próprios críticos (como judeus ou instrumentos a serviço dos judeus) que fazem parte da conspiração. Evans ainda comprova que o próprio antissemitismo é, em si mesmo, uma teoria da conspiração, mas vai além: o livrinho fraudulento nem fazia parte da biblioteca de 16 mil volumes de Hitler, que, com certeza, sequer tinha folheado quaisquer daqueles livros. O Führer apenas “ouviu falar” de partes do conteúdo, sabendo de orelhada, a partir de artigos de jornal escritos por alguma pena de aluguel para Henry Ford e depois traduzidos para o alemão em 1922.
O incêndio do Reichstag pelos nazistas foi encoberto durante décadas pela amnésica cultura política que vigorou na Alemanha no pós-guerra: falsearam provas, forjaram testemunhas e puseram a culpa num militante comunista, depois num judeu e, por último, num cigano. Já o caso de Rudolf Hess, personagem de um suposto complô de Hitler com o serviço secreto britânico para acabar com a guerra em 1941, não foi apenas um caso de paranoia pois, por muitos anos – e ainda hoje – o mito serve para atenuar as culpas dos alemães pelas atrocidades nazistas. Já a última alegação examinada – Hitler não morreu no bunker – ganha de todas as outras, e supera até mesmo os limites da paranoia sistêmica, ganhando espaço nos universos do ocultismo, da paranormalidade, da ufologia e até de um recente zen-fascismo. A mais estapafúrdia versão afirma que Hitler fugiu para a Argentina ao final da guerra, seguiu pelo Paraguai e chegou ao Brasil, onde se fixou no município de Nossa Senhora do Livramento, Mato Grosso: caçou tesouros enterrados com o auxílio de um mapa que recebeu de aliados no Vaticano e teria vivido 95 anos.
Delírio? Nem sempre. Como toda teoria conspiratória acabou por ser oportunamente apropriada para usos diversos: a alegada sobrevivência de Hitler entrou na mitologia popular a partir de 1950 e acabou ajudando a União Soviética a justificar seu controle contínuo sobre o Leste Europeu – a Cortina de Ferro – por vários anos. Evans não ignora o enorme e duradouro apelo estético das conspirações como atraente dispositivo de enredo para a ficção: daí seus usos quase infinitos nas produções da indústria cultural, muitas delas até de bom nível documental e quase todas atreladas ao universo do entretenimento popular. Narrativas conspiratórias também dão muito lucro quanto mais carregam nas tintas do maniqueísmo e da eterna luta do bem contra o mal. Adeptos do mito da sobrevivência de Hitler são, muitas vezes, figuras destituídas de importância, que sobrevivem a duras penas, às margens do mundo do jornalismo, das coleções de arte, da política ou do ambiente acadêmico, buscando uma forma qualquer de entrar para o mundo da fama: apresentam a seus consumidores um mundo em preto e branco, de heróis individuais, geralmente lobos solitários que lutam contra todas as adversidades para descobrir a verdade, e de vilões, geralmente em posições de poder, que fazem de tudo para escondê-la.
A internet pode ter permitido que esse mundo de pseudoinformação subterrânea viralizasse mais rapidamente do que antes, mas em termos de conteúdo o contexto é muito antigo. O mito do grande líder que supostamente trapaceia a morte e continua a viver, em segredo, como uma inspiração para seus seguidores: o antigo rei Artur, da Bretanha, o imperador alemão Frederico Barbarossa, ou mesmo Napoleão Bonaparte, que, dizem – em tom anedótico, claro – que até já foi avistado (provavelmente nas imediações de um hospício). Falando sério, espanta muito mais o grau de credulidade coletiva nas conspirações. Essa credulidade diz mais sobre este nosso mundo repleto de incertezas políticas e reiterada ansiedade moral. Em contraste com as ambiguidades morais da vida real, as teorias da conspiração pintam um quadro de absolutos morais, do bem e do mal, imagem que é mais fácil de entender e, por isso, mais interessante e emocionante de retratar do que a cinzenta complexidade da realidade documentada.
Mas sejamos claros: história fraudulenta faz mal e é um mergulho no poço sem fundo da vergonha ética. Ofende veteranos de guerra, agride a memória de gente que perdeu tudo, ultraja o luto das milhares de vítimas dos nazistas e alimenta uma cumplicidade sutil com assassinos e genocidas. Sugerir que Hitler se recolheu em algum esconderijo com a conivência dos Aliados ocidentais é um insulto. Trivializa e nega a difícil vitória, obtida a duras penas, sobre os nazistas e, é ainda mais perturbador ver quantos adeptos da teoria da sobrevivência de Hitler são também antissemitas e negacionistas do Holocausto. Tirando vantagem das pessoas de educação precária, tratando-as com desdém e intensificando sua ignorância, teóricos da conspiração poluem os poços do conhecimento. Eles incentivam as pessoas a duvidar de obras de pesquisas, de fontes jornalísticas respeitadas e acabam desmoralizando a reputação da historiografia séria. Evans sabe que descobrir e entender o que realmente aconteceu na história é difícil, requer um esforço incansável de trabalho árduo no exame direto das evidências, pressupõe disposição para mudar de ideia e o abandono de preconceitos, inclusive diante das evidências que os contrariam. Tudo isso, afinal, faz lembrar daquele antigo preceito de John Bury: quanto mais irracional uma sociedade, mais ela torna secundária a função de seus historiadores.