Thea von Harbou: a escritora que inspirou 'Metrópolis' e virou nazista


Chega pela primeira vez ao Brasil o livro 'Metrópolis', cuja autora foi mulher de Fritz Lang

Por André Cáceres
Atualização:

 Quando a escritora, roteirista, diretora e atriz alemã Thea von Harbou (1888-1954) publicou Metrópolis, em 1925, a palavra “robô” existia havia menos de uma década – o checo Karel Capek a usou na peça A Fábrica de Robôs, de 1920. Um século depois, quando se pensa em androides, uma das principais referências visuais ainda é o filme Metrópolis (1927), dirigido por Fritz Lang com base no romance de Harbou. A clássica cena em que o inventor Rotwang transforma as feições de um robô no rosto humano de Maria (Brigitte Helm) tornou-se uma das mais reconhecíveis na história do cinema. No entanto, poucos se lembram que esse filme foi inspirado em um livro. O apagamento de Harbou pode ter sido causado por ela ser mulher – ou então por ter se filiado ao partido nazista. Seja como for, esse ofuscamento é corrigido agora com a publicação do romance, inédito no Brasil e traduzido diretamente do alemão por Petê Rissati, em uma parceria da editora Aleph com o Instituto Goethe.

Cena do filme 'Metrópolis' (1927), de Fritz Lang Foto: Art Films

Von Harbou foi roteirista dos principais filmes de Lang, como Dr. Mabuse, o Jogador (1922), Os Nibelungos (1924) e M, o Vampiro de Dusseldorf (1931). Depois que eles se separaram, em 1933, Lang nunca mais voltaria a alcançar o mesmo sucesso. Ela, porém, não se limitou à obra do marido – escreveu roteiros para Carl Theodor Dreyer, F. W. Murnau, Fritz Wendhausen e Ewald André Dupont, grandes nomes do expressionismo e fundamentais na transição do cinema mudo para a era do som.

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Nascida em uma família de nobreza decadente, Thea cresceu em meio a dificuldades financeiras e tendo de se mudar diversas vezes, o que talvez explique sua tentativa de conciliar as elites e a classe operária com o que se tornou o mote de Metrópolis: “O mediador entre o cérebro e as mãos deve ser o coração”.

A despeito de eventuais discrepâncias, a premissa do filme de Lang segue bem fielmente os passos do romance de Harbou. Em um futuro indefinido (no filme, a trama se passa em 2026) e distópico, uma cidade extremamente desigual, praticamente dividida em castas, entra em ebulição social com operários revoltosos por suas condições precárias. Metrópolis é governada do alto da Nova Torre de Babel, uma edificação de proporções colossais, o “cérebro” de que fala Harbou. De lá, o supercapitalista Joh Fredersen controla a rotina dos desvalidos – as “mãos” – que trabalham nas máquinas subterrâneas em jornadas de dez horas diárias. 

Enquanto os miseráveis são explorados, a elite gasta seu tempo fazendo atividades físicas, lúdicas e artísticas. Em seus jardins idílicos, o protagonista Freder, filho de Joh Fredersen, ignora o abismo social até o dia em que conhece Maria, a garota pobre que cuida das crianças dos trabalhadores, e se apaixona por ela. 

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Ilustração de Mateus Acioli inspirada em 'Metrópolis' Foto: Mateus Acioli/Aleph

Maria não é apenas uma babá. É também uma líder revolucionária e pacifista. Os trabalhadores se reúnem para ouvir seus discursos, escritos com eloquência por Harbou: “Muitos entre vocês estão gritando: Luta! Destruição! Não lutem, meus irmãos, porque isso os tornaria culpados. Acreditem em mim, virá alguém que falará por vocês, que será um intermediário entre vocês, as mãos, e o homem cujo cérebro e cuja vontade estão acima de todos. Ele lhes dará algo mais precioso do que tudo que um ser humano poderia lhes dar: a capacidade de tornarem-se livres sem que se tornem culpados”.

Diante da suspeita de que os funcionários estejam organizando reuniões subversivas em um ambiente subterrâneo, Joh Fredersen pede ajuda a um antigo rival, o inventor Rotwang, que havia criado Futura, um robô com traços femininos. No passado, o líder de Metrópolis seduziu a mulher do cientista, Hel, que morreu dando à luz Freder. Porém Rotwang aceita auxiliar seu desafeto. O inventor – um exemplar clássico do arquétipo de cientista louco – captura Maria e transforma Futura em seu duplo. No entanto, o robô se rebela e, em vez de acalmar a turba de revoltosos, incita os trabalhadores com um discurso ludita: “A máquina os devora como ração e cospe fora! Por que vocês engordam a máquina com seus corpos Por que estão lubrificando as articulações da máquina com seu cérebro?”

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Quando Freder conhece a realidade dos despossuídos, ele desenvolve, por vias tortas, uma espécie de consciência social – mais pelo desejo amoroso por Maria do que por identificação com os oprimidos. Diante da catarse social, o jovem assume, afinal, o papel de mediador entre o cérebro e as mãos. 

Se Metrópolis é hoje reconhecido como um clássico do cinema, a crítica não foi tão positiva na época. A edição da Aleph traz elucidativos textos do crítico literário austríaco Franz Rottensteiner, da atriz e cineasta Marina Person, e do escritor Anthony Burgess, que ajudam a compreender o contexto da obra.

Burgess, autor de Laranja Mecânica, escreve sobre como Metrópolis mudou sua vida, mas admite: “É uma história bem melodramática”. Rottensteiner fala sobre a recepção do filme, mostrando que o cineasta surrealista Luis Buñuel e o escritor de ficção científica H.G. Wells não reagiram bem à obra. Mais do que isso, ele explicita um recorte de gênero: “Tudo o que é bom sobre o filme (...) em geral se atribui à genialidade do diretor Fritz Lang, enquanto tudo o que é negativo, o sentimental, o patético, o kitsch, supostamente vem de Thea von Harbou”.

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De fato, o esoterismo com que a autora encara a ideia de máquina (os aparelhos parecem não ter nenhuma função prática, servindo apenas ao simbolismo), as referências religiosas explícitas (como a figura de Maria e a deidade das máquinas) e a profusão de adjetivos nas descrições do livro justificam essa noção. Entretanto, seu romance antecipou diversas questões que viriam a ser tratadas pela literatura do século 20, como o autoritarismo, a precarização do trabalho e a opressão das máquinas em uma sociedade tecnológica. Fica clara, portanto, a diferença de tratamento entre Harbou e Lang por parte da crítica.

Cena de 'Metrópolis' (1927), de Fritz Lang Foto: Art Films

O machismo talvez seja um dos motivos pelos quais ela foi eclipsada. Contudo, é importante lembrar que sua associação ao nazismo não foi apenas superficial. Quando Joseph Goebbels, ministro da propaganda de Adolf Hitler, convidou Fritz Lang a trabalhar para o Terceiro Reich, o cineasta fugiu para Paris (sua ascendência judia contribuiu para a decisão), mas Harbou preferiu ficar no país e presidiu a Associação Alemã de Autores de Filmes Falados, sob a égide de Hitler.

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“Nossa intenção não é apagar ou minimizar o envolvimento de Thea com o regime nazista, mas trazer luz a esse livro que é um importante documento histórico da cultura alemã e mundial”, afirma Luciana Fracchetta, diretora de conteúdo da editora Aleph, em entrevista ao Aliás. “Fomos cuidadosos, inclusive por sermos uma empresa cujos sócios são de origem judaica”, lembrou ela. “Por mais que consideremos abjetos os princípios e ideais com os quais Thea flertou, é impossível negar a sua contribuição para a história do cinema mundial.”

Esse é um caso exemplar a se considerar na discussão sobre a necessidade de se separar autor e obra, algo ainda mais relevante em tempos de #MeToo e perseguições ideológicas. Em seu texto, Marina Person argumenta que o ofuscamento de Harbou não pode ser explicado apenas por seu gênero e sua ideologia, uma vez que a também colaboradora do nazismo Leni Riefenstahl permaneceu lembrada como uma das grandes diretoras de seu tempo. “A diferença talvez seja simplesmente o fato de Riefenstahl nunca ter estado à sombra de um homem.”

Outra distopia futurista de uma escritora pouco lembrada no Brasil e que ganhou recentemente uma nova edição por aqui, pela Carambaia, foi Kallocaína, que a sueca Karin Boye publicou em 1940 como um testemunho do auge totalitário na Europa – a falta de perspectiva de liberdade no futuro seria uma das causas do suicídio da autora, no ano seguinte. O romance, que guarda semelhanças estéticas com Metrópolis, também é ambientado em uma sociedade repressiva, dividida em castas e com rígido controle social. Nesse cenário, o químico Leo Kall cria uma droga – a kallocaína – capaz de induzir qualquer pessoa a admitir os atos mais inconfessáveis. Com isso, nove anos antes da publicação de 1984, Boye imaginou um regime cuja vigilância chegava até aos pensamentos de seus cidadãos, algo ainda mais invasivo que as câmeras do Grande Irmão. 

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Harbou e Boye abordaram temores caros à literatura da primeira metade do século 20. Esses temas impulsionaram obras de nomes como E.M. Forster, Ievgeni Zamiatin, Carel Kapek, Claude Farrère, Aldous Huxley e George Orwell, coincidentemente ou não muito mais bem preservadas pela historiografia do que suas contrapartes de autoria feminina. 

Após o fim da 2.ª Guerra Mundial, Harbou ficou presa até 1950 e teve de prestar serviço forçado limpando escombros do conflito para os britânicos. Sua morte, em 1954, não poderia ter sido mais representativa da vida que ela levou: Thea von Harbou teve complicações após sofrer uma queda em um cinema de Berlim que exibia o filme A Morte Cansada (1921), uma das primeiras parcerias dela com Fritz Lang.

 Quando a escritora, roteirista, diretora e atriz alemã Thea von Harbou (1888-1954) publicou Metrópolis, em 1925, a palavra “robô” existia havia menos de uma década – o checo Karel Capek a usou na peça A Fábrica de Robôs, de 1920. Um século depois, quando se pensa em androides, uma das principais referências visuais ainda é o filme Metrópolis (1927), dirigido por Fritz Lang com base no romance de Harbou. A clássica cena em que o inventor Rotwang transforma as feições de um robô no rosto humano de Maria (Brigitte Helm) tornou-se uma das mais reconhecíveis na história do cinema. No entanto, poucos se lembram que esse filme foi inspirado em um livro. O apagamento de Harbou pode ter sido causado por ela ser mulher – ou então por ter se filiado ao partido nazista. Seja como for, esse ofuscamento é corrigido agora com a publicação do romance, inédito no Brasil e traduzido diretamente do alemão por Petê Rissati, em uma parceria da editora Aleph com o Instituto Goethe.

Cena do filme 'Metrópolis' (1927), de Fritz Lang Foto: Art Films

Von Harbou foi roteirista dos principais filmes de Lang, como Dr. Mabuse, o Jogador (1922), Os Nibelungos (1924) e M, o Vampiro de Dusseldorf (1931). Depois que eles se separaram, em 1933, Lang nunca mais voltaria a alcançar o mesmo sucesso. Ela, porém, não se limitou à obra do marido – escreveu roteiros para Carl Theodor Dreyer, F. W. Murnau, Fritz Wendhausen e Ewald André Dupont, grandes nomes do expressionismo e fundamentais na transição do cinema mudo para a era do som.

Nascida em uma família de nobreza decadente, Thea cresceu em meio a dificuldades financeiras e tendo de se mudar diversas vezes, o que talvez explique sua tentativa de conciliar as elites e a classe operária com o que se tornou o mote de Metrópolis: “O mediador entre o cérebro e as mãos deve ser o coração”.

A despeito de eventuais discrepâncias, a premissa do filme de Lang segue bem fielmente os passos do romance de Harbou. Em um futuro indefinido (no filme, a trama se passa em 2026) e distópico, uma cidade extremamente desigual, praticamente dividida em castas, entra em ebulição social com operários revoltosos por suas condições precárias. Metrópolis é governada do alto da Nova Torre de Babel, uma edificação de proporções colossais, o “cérebro” de que fala Harbou. De lá, o supercapitalista Joh Fredersen controla a rotina dos desvalidos – as “mãos” – que trabalham nas máquinas subterrâneas em jornadas de dez horas diárias. 

Enquanto os miseráveis são explorados, a elite gasta seu tempo fazendo atividades físicas, lúdicas e artísticas. Em seus jardins idílicos, o protagonista Freder, filho de Joh Fredersen, ignora o abismo social até o dia em que conhece Maria, a garota pobre que cuida das crianças dos trabalhadores, e se apaixona por ela. 

Ilustração de Mateus Acioli inspirada em 'Metrópolis' Foto: Mateus Acioli/Aleph

Maria não é apenas uma babá. É também uma líder revolucionária e pacifista. Os trabalhadores se reúnem para ouvir seus discursos, escritos com eloquência por Harbou: “Muitos entre vocês estão gritando: Luta! Destruição! Não lutem, meus irmãos, porque isso os tornaria culpados. Acreditem em mim, virá alguém que falará por vocês, que será um intermediário entre vocês, as mãos, e o homem cujo cérebro e cuja vontade estão acima de todos. Ele lhes dará algo mais precioso do que tudo que um ser humano poderia lhes dar: a capacidade de tornarem-se livres sem que se tornem culpados”.

Diante da suspeita de que os funcionários estejam organizando reuniões subversivas em um ambiente subterrâneo, Joh Fredersen pede ajuda a um antigo rival, o inventor Rotwang, que havia criado Futura, um robô com traços femininos. No passado, o líder de Metrópolis seduziu a mulher do cientista, Hel, que morreu dando à luz Freder. Porém Rotwang aceita auxiliar seu desafeto. O inventor – um exemplar clássico do arquétipo de cientista louco – captura Maria e transforma Futura em seu duplo. No entanto, o robô se rebela e, em vez de acalmar a turba de revoltosos, incita os trabalhadores com um discurso ludita: “A máquina os devora como ração e cospe fora! Por que vocês engordam a máquina com seus corpos Por que estão lubrificando as articulações da máquina com seu cérebro?”

Quando Freder conhece a realidade dos despossuídos, ele desenvolve, por vias tortas, uma espécie de consciência social – mais pelo desejo amoroso por Maria do que por identificação com os oprimidos. Diante da catarse social, o jovem assume, afinal, o papel de mediador entre o cérebro e as mãos. 

Se Metrópolis é hoje reconhecido como um clássico do cinema, a crítica não foi tão positiva na época. A edição da Aleph traz elucidativos textos do crítico literário austríaco Franz Rottensteiner, da atriz e cineasta Marina Person, e do escritor Anthony Burgess, que ajudam a compreender o contexto da obra.

Burgess, autor de Laranja Mecânica, escreve sobre como Metrópolis mudou sua vida, mas admite: “É uma história bem melodramática”. Rottensteiner fala sobre a recepção do filme, mostrando que o cineasta surrealista Luis Buñuel e o escritor de ficção científica H.G. Wells não reagiram bem à obra. Mais do que isso, ele explicita um recorte de gênero: “Tudo o que é bom sobre o filme (...) em geral se atribui à genialidade do diretor Fritz Lang, enquanto tudo o que é negativo, o sentimental, o patético, o kitsch, supostamente vem de Thea von Harbou”.

De fato, o esoterismo com que a autora encara a ideia de máquina (os aparelhos parecem não ter nenhuma função prática, servindo apenas ao simbolismo), as referências religiosas explícitas (como a figura de Maria e a deidade das máquinas) e a profusão de adjetivos nas descrições do livro justificam essa noção. Entretanto, seu romance antecipou diversas questões que viriam a ser tratadas pela literatura do século 20, como o autoritarismo, a precarização do trabalho e a opressão das máquinas em uma sociedade tecnológica. Fica clara, portanto, a diferença de tratamento entre Harbou e Lang por parte da crítica.

Cena de 'Metrópolis' (1927), de Fritz Lang Foto: Art Films

O machismo talvez seja um dos motivos pelos quais ela foi eclipsada. Contudo, é importante lembrar que sua associação ao nazismo não foi apenas superficial. Quando Joseph Goebbels, ministro da propaganda de Adolf Hitler, convidou Fritz Lang a trabalhar para o Terceiro Reich, o cineasta fugiu para Paris (sua ascendência judia contribuiu para a decisão), mas Harbou preferiu ficar no país e presidiu a Associação Alemã de Autores de Filmes Falados, sob a égide de Hitler.

“Nossa intenção não é apagar ou minimizar o envolvimento de Thea com o regime nazista, mas trazer luz a esse livro que é um importante documento histórico da cultura alemã e mundial”, afirma Luciana Fracchetta, diretora de conteúdo da editora Aleph, em entrevista ao Aliás. “Fomos cuidadosos, inclusive por sermos uma empresa cujos sócios são de origem judaica”, lembrou ela. “Por mais que consideremos abjetos os princípios e ideais com os quais Thea flertou, é impossível negar a sua contribuição para a história do cinema mundial.”

Esse é um caso exemplar a se considerar na discussão sobre a necessidade de se separar autor e obra, algo ainda mais relevante em tempos de #MeToo e perseguições ideológicas. Em seu texto, Marina Person argumenta que o ofuscamento de Harbou não pode ser explicado apenas por seu gênero e sua ideologia, uma vez que a também colaboradora do nazismo Leni Riefenstahl permaneceu lembrada como uma das grandes diretoras de seu tempo. “A diferença talvez seja simplesmente o fato de Riefenstahl nunca ter estado à sombra de um homem.”

Outra distopia futurista de uma escritora pouco lembrada no Brasil e que ganhou recentemente uma nova edição por aqui, pela Carambaia, foi Kallocaína, que a sueca Karin Boye publicou em 1940 como um testemunho do auge totalitário na Europa – a falta de perspectiva de liberdade no futuro seria uma das causas do suicídio da autora, no ano seguinte. O romance, que guarda semelhanças estéticas com Metrópolis, também é ambientado em uma sociedade repressiva, dividida em castas e com rígido controle social. Nesse cenário, o químico Leo Kall cria uma droga – a kallocaína – capaz de induzir qualquer pessoa a admitir os atos mais inconfessáveis. Com isso, nove anos antes da publicação de 1984, Boye imaginou um regime cuja vigilância chegava até aos pensamentos de seus cidadãos, algo ainda mais invasivo que as câmeras do Grande Irmão. 

Harbou e Boye abordaram temores caros à literatura da primeira metade do século 20. Esses temas impulsionaram obras de nomes como E.M. Forster, Ievgeni Zamiatin, Carel Kapek, Claude Farrère, Aldous Huxley e George Orwell, coincidentemente ou não muito mais bem preservadas pela historiografia do que suas contrapartes de autoria feminina. 

Após o fim da 2.ª Guerra Mundial, Harbou ficou presa até 1950 e teve de prestar serviço forçado limpando escombros do conflito para os britânicos. Sua morte, em 1954, não poderia ter sido mais representativa da vida que ela levou: Thea von Harbou teve complicações após sofrer uma queda em um cinema de Berlim que exibia o filme A Morte Cansada (1921), uma das primeiras parcerias dela com Fritz Lang.

 Quando a escritora, roteirista, diretora e atriz alemã Thea von Harbou (1888-1954) publicou Metrópolis, em 1925, a palavra “robô” existia havia menos de uma década – o checo Karel Capek a usou na peça A Fábrica de Robôs, de 1920. Um século depois, quando se pensa em androides, uma das principais referências visuais ainda é o filme Metrópolis (1927), dirigido por Fritz Lang com base no romance de Harbou. A clássica cena em que o inventor Rotwang transforma as feições de um robô no rosto humano de Maria (Brigitte Helm) tornou-se uma das mais reconhecíveis na história do cinema. No entanto, poucos se lembram que esse filme foi inspirado em um livro. O apagamento de Harbou pode ter sido causado por ela ser mulher – ou então por ter se filiado ao partido nazista. Seja como for, esse ofuscamento é corrigido agora com a publicação do romance, inédito no Brasil e traduzido diretamente do alemão por Petê Rissati, em uma parceria da editora Aleph com o Instituto Goethe.

Cena do filme 'Metrópolis' (1927), de Fritz Lang Foto: Art Films

Von Harbou foi roteirista dos principais filmes de Lang, como Dr. Mabuse, o Jogador (1922), Os Nibelungos (1924) e M, o Vampiro de Dusseldorf (1931). Depois que eles se separaram, em 1933, Lang nunca mais voltaria a alcançar o mesmo sucesso. Ela, porém, não se limitou à obra do marido – escreveu roteiros para Carl Theodor Dreyer, F. W. Murnau, Fritz Wendhausen e Ewald André Dupont, grandes nomes do expressionismo e fundamentais na transição do cinema mudo para a era do som.

Nascida em uma família de nobreza decadente, Thea cresceu em meio a dificuldades financeiras e tendo de se mudar diversas vezes, o que talvez explique sua tentativa de conciliar as elites e a classe operária com o que se tornou o mote de Metrópolis: “O mediador entre o cérebro e as mãos deve ser o coração”.

A despeito de eventuais discrepâncias, a premissa do filme de Lang segue bem fielmente os passos do romance de Harbou. Em um futuro indefinido (no filme, a trama se passa em 2026) e distópico, uma cidade extremamente desigual, praticamente dividida em castas, entra em ebulição social com operários revoltosos por suas condições precárias. Metrópolis é governada do alto da Nova Torre de Babel, uma edificação de proporções colossais, o “cérebro” de que fala Harbou. De lá, o supercapitalista Joh Fredersen controla a rotina dos desvalidos – as “mãos” – que trabalham nas máquinas subterrâneas em jornadas de dez horas diárias. 

Enquanto os miseráveis são explorados, a elite gasta seu tempo fazendo atividades físicas, lúdicas e artísticas. Em seus jardins idílicos, o protagonista Freder, filho de Joh Fredersen, ignora o abismo social até o dia em que conhece Maria, a garota pobre que cuida das crianças dos trabalhadores, e se apaixona por ela. 

Ilustração de Mateus Acioli inspirada em 'Metrópolis' Foto: Mateus Acioli/Aleph

Maria não é apenas uma babá. É também uma líder revolucionária e pacifista. Os trabalhadores se reúnem para ouvir seus discursos, escritos com eloquência por Harbou: “Muitos entre vocês estão gritando: Luta! Destruição! Não lutem, meus irmãos, porque isso os tornaria culpados. Acreditem em mim, virá alguém que falará por vocês, que será um intermediário entre vocês, as mãos, e o homem cujo cérebro e cuja vontade estão acima de todos. Ele lhes dará algo mais precioso do que tudo que um ser humano poderia lhes dar: a capacidade de tornarem-se livres sem que se tornem culpados”.

Diante da suspeita de que os funcionários estejam organizando reuniões subversivas em um ambiente subterrâneo, Joh Fredersen pede ajuda a um antigo rival, o inventor Rotwang, que havia criado Futura, um robô com traços femininos. No passado, o líder de Metrópolis seduziu a mulher do cientista, Hel, que morreu dando à luz Freder. Porém Rotwang aceita auxiliar seu desafeto. O inventor – um exemplar clássico do arquétipo de cientista louco – captura Maria e transforma Futura em seu duplo. No entanto, o robô se rebela e, em vez de acalmar a turba de revoltosos, incita os trabalhadores com um discurso ludita: “A máquina os devora como ração e cospe fora! Por que vocês engordam a máquina com seus corpos Por que estão lubrificando as articulações da máquina com seu cérebro?”

Quando Freder conhece a realidade dos despossuídos, ele desenvolve, por vias tortas, uma espécie de consciência social – mais pelo desejo amoroso por Maria do que por identificação com os oprimidos. Diante da catarse social, o jovem assume, afinal, o papel de mediador entre o cérebro e as mãos. 

Se Metrópolis é hoje reconhecido como um clássico do cinema, a crítica não foi tão positiva na época. A edição da Aleph traz elucidativos textos do crítico literário austríaco Franz Rottensteiner, da atriz e cineasta Marina Person, e do escritor Anthony Burgess, que ajudam a compreender o contexto da obra.

Burgess, autor de Laranja Mecânica, escreve sobre como Metrópolis mudou sua vida, mas admite: “É uma história bem melodramática”. Rottensteiner fala sobre a recepção do filme, mostrando que o cineasta surrealista Luis Buñuel e o escritor de ficção científica H.G. Wells não reagiram bem à obra. Mais do que isso, ele explicita um recorte de gênero: “Tudo o que é bom sobre o filme (...) em geral se atribui à genialidade do diretor Fritz Lang, enquanto tudo o que é negativo, o sentimental, o patético, o kitsch, supostamente vem de Thea von Harbou”.

De fato, o esoterismo com que a autora encara a ideia de máquina (os aparelhos parecem não ter nenhuma função prática, servindo apenas ao simbolismo), as referências religiosas explícitas (como a figura de Maria e a deidade das máquinas) e a profusão de adjetivos nas descrições do livro justificam essa noção. Entretanto, seu romance antecipou diversas questões que viriam a ser tratadas pela literatura do século 20, como o autoritarismo, a precarização do trabalho e a opressão das máquinas em uma sociedade tecnológica. Fica clara, portanto, a diferença de tratamento entre Harbou e Lang por parte da crítica.

Cena de 'Metrópolis' (1927), de Fritz Lang Foto: Art Films

O machismo talvez seja um dos motivos pelos quais ela foi eclipsada. Contudo, é importante lembrar que sua associação ao nazismo não foi apenas superficial. Quando Joseph Goebbels, ministro da propaganda de Adolf Hitler, convidou Fritz Lang a trabalhar para o Terceiro Reich, o cineasta fugiu para Paris (sua ascendência judia contribuiu para a decisão), mas Harbou preferiu ficar no país e presidiu a Associação Alemã de Autores de Filmes Falados, sob a égide de Hitler.

“Nossa intenção não é apagar ou minimizar o envolvimento de Thea com o regime nazista, mas trazer luz a esse livro que é um importante documento histórico da cultura alemã e mundial”, afirma Luciana Fracchetta, diretora de conteúdo da editora Aleph, em entrevista ao Aliás. “Fomos cuidadosos, inclusive por sermos uma empresa cujos sócios são de origem judaica”, lembrou ela. “Por mais que consideremos abjetos os princípios e ideais com os quais Thea flertou, é impossível negar a sua contribuição para a história do cinema mundial.”

Esse é um caso exemplar a se considerar na discussão sobre a necessidade de se separar autor e obra, algo ainda mais relevante em tempos de #MeToo e perseguições ideológicas. Em seu texto, Marina Person argumenta que o ofuscamento de Harbou não pode ser explicado apenas por seu gênero e sua ideologia, uma vez que a também colaboradora do nazismo Leni Riefenstahl permaneceu lembrada como uma das grandes diretoras de seu tempo. “A diferença talvez seja simplesmente o fato de Riefenstahl nunca ter estado à sombra de um homem.”

Outra distopia futurista de uma escritora pouco lembrada no Brasil e que ganhou recentemente uma nova edição por aqui, pela Carambaia, foi Kallocaína, que a sueca Karin Boye publicou em 1940 como um testemunho do auge totalitário na Europa – a falta de perspectiva de liberdade no futuro seria uma das causas do suicídio da autora, no ano seguinte. O romance, que guarda semelhanças estéticas com Metrópolis, também é ambientado em uma sociedade repressiva, dividida em castas e com rígido controle social. Nesse cenário, o químico Leo Kall cria uma droga – a kallocaína – capaz de induzir qualquer pessoa a admitir os atos mais inconfessáveis. Com isso, nove anos antes da publicação de 1984, Boye imaginou um regime cuja vigilância chegava até aos pensamentos de seus cidadãos, algo ainda mais invasivo que as câmeras do Grande Irmão. 

Harbou e Boye abordaram temores caros à literatura da primeira metade do século 20. Esses temas impulsionaram obras de nomes como E.M. Forster, Ievgeni Zamiatin, Carel Kapek, Claude Farrère, Aldous Huxley e George Orwell, coincidentemente ou não muito mais bem preservadas pela historiografia do que suas contrapartes de autoria feminina. 

Após o fim da 2.ª Guerra Mundial, Harbou ficou presa até 1950 e teve de prestar serviço forçado limpando escombros do conflito para os britânicos. Sua morte, em 1954, não poderia ter sido mais representativa da vida que ela levou: Thea von Harbou teve complicações após sofrer uma queda em um cinema de Berlim que exibia o filme A Morte Cansada (1921), uma das primeiras parcerias dela com Fritz Lang.

 Quando a escritora, roteirista, diretora e atriz alemã Thea von Harbou (1888-1954) publicou Metrópolis, em 1925, a palavra “robô” existia havia menos de uma década – o checo Karel Capek a usou na peça A Fábrica de Robôs, de 1920. Um século depois, quando se pensa em androides, uma das principais referências visuais ainda é o filme Metrópolis (1927), dirigido por Fritz Lang com base no romance de Harbou. A clássica cena em que o inventor Rotwang transforma as feições de um robô no rosto humano de Maria (Brigitte Helm) tornou-se uma das mais reconhecíveis na história do cinema. No entanto, poucos se lembram que esse filme foi inspirado em um livro. O apagamento de Harbou pode ter sido causado por ela ser mulher – ou então por ter se filiado ao partido nazista. Seja como for, esse ofuscamento é corrigido agora com a publicação do romance, inédito no Brasil e traduzido diretamente do alemão por Petê Rissati, em uma parceria da editora Aleph com o Instituto Goethe.

Cena do filme 'Metrópolis' (1927), de Fritz Lang Foto: Art Films

Von Harbou foi roteirista dos principais filmes de Lang, como Dr. Mabuse, o Jogador (1922), Os Nibelungos (1924) e M, o Vampiro de Dusseldorf (1931). Depois que eles se separaram, em 1933, Lang nunca mais voltaria a alcançar o mesmo sucesso. Ela, porém, não se limitou à obra do marido – escreveu roteiros para Carl Theodor Dreyer, F. W. Murnau, Fritz Wendhausen e Ewald André Dupont, grandes nomes do expressionismo e fundamentais na transição do cinema mudo para a era do som.

Nascida em uma família de nobreza decadente, Thea cresceu em meio a dificuldades financeiras e tendo de se mudar diversas vezes, o que talvez explique sua tentativa de conciliar as elites e a classe operária com o que se tornou o mote de Metrópolis: “O mediador entre o cérebro e as mãos deve ser o coração”.

A despeito de eventuais discrepâncias, a premissa do filme de Lang segue bem fielmente os passos do romance de Harbou. Em um futuro indefinido (no filme, a trama se passa em 2026) e distópico, uma cidade extremamente desigual, praticamente dividida em castas, entra em ebulição social com operários revoltosos por suas condições precárias. Metrópolis é governada do alto da Nova Torre de Babel, uma edificação de proporções colossais, o “cérebro” de que fala Harbou. De lá, o supercapitalista Joh Fredersen controla a rotina dos desvalidos – as “mãos” – que trabalham nas máquinas subterrâneas em jornadas de dez horas diárias. 

Enquanto os miseráveis são explorados, a elite gasta seu tempo fazendo atividades físicas, lúdicas e artísticas. Em seus jardins idílicos, o protagonista Freder, filho de Joh Fredersen, ignora o abismo social até o dia em que conhece Maria, a garota pobre que cuida das crianças dos trabalhadores, e se apaixona por ela. 

Ilustração de Mateus Acioli inspirada em 'Metrópolis' Foto: Mateus Acioli/Aleph

Maria não é apenas uma babá. É também uma líder revolucionária e pacifista. Os trabalhadores se reúnem para ouvir seus discursos, escritos com eloquência por Harbou: “Muitos entre vocês estão gritando: Luta! Destruição! Não lutem, meus irmãos, porque isso os tornaria culpados. Acreditem em mim, virá alguém que falará por vocês, que será um intermediário entre vocês, as mãos, e o homem cujo cérebro e cuja vontade estão acima de todos. Ele lhes dará algo mais precioso do que tudo que um ser humano poderia lhes dar: a capacidade de tornarem-se livres sem que se tornem culpados”.

Diante da suspeita de que os funcionários estejam organizando reuniões subversivas em um ambiente subterrâneo, Joh Fredersen pede ajuda a um antigo rival, o inventor Rotwang, que havia criado Futura, um robô com traços femininos. No passado, o líder de Metrópolis seduziu a mulher do cientista, Hel, que morreu dando à luz Freder. Porém Rotwang aceita auxiliar seu desafeto. O inventor – um exemplar clássico do arquétipo de cientista louco – captura Maria e transforma Futura em seu duplo. No entanto, o robô se rebela e, em vez de acalmar a turba de revoltosos, incita os trabalhadores com um discurso ludita: “A máquina os devora como ração e cospe fora! Por que vocês engordam a máquina com seus corpos Por que estão lubrificando as articulações da máquina com seu cérebro?”

Quando Freder conhece a realidade dos despossuídos, ele desenvolve, por vias tortas, uma espécie de consciência social – mais pelo desejo amoroso por Maria do que por identificação com os oprimidos. Diante da catarse social, o jovem assume, afinal, o papel de mediador entre o cérebro e as mãos. 

Se Metrópolis é hoje reconhecido como um clássico do cinema, a crítica não foi tão positiva na época. A edição da Aleph traz elucidativos textos do crítico literário austríaco Franz Rottensteiner, da atriz e cineasta Marina Person, e do escritor Anthony Burgess, que ajudam a compreender o contexto da obra.

Burgess, autor de Laranja Mecânica, escreve sobre como Metrópolis mudou sua vida, mas admite: “É uma história bem melodramática”. Rottensteiner fala sobre a recepção do filme, mostrando que o cineasta surrealista Luis Buñuel e o escritor de ficção científica H.G. Wells não reagiram bem à obra. Mais do que isso, ele explicita um recorte de gênero: “Tudo o que é bom sobre o filme (...) em geral se atribui à genialidade do diretor Fritz Lang, enquanto tudo o que é negativo, o sentimental, o patético, o kitsch, supostamente vem de Thea von Harbou”.

De fato, o esoterismo com que a autora encara a ideia de máquina (os aparelhos parecem não ter nenhuma função prática, servindo apenas ao simbolismo), as referências religiosas explícitas (como a figura de Maria e a deidade das máquinas) e a profusão de adjetivos nas descrições do livro justificam essa noção. Entretanto, seu romance antecipou diversas questões que viriam a ser tratadas pela literatura do século 20, como o autoritarismo, a precarização do trabalho e a opressão das máquinas em uma sociedade tecnológica. Fica clara, portanto, a diferença de tratamento entre Harbou e Lang por parte da crítica.

Cena de 'Metrópolis' (1927), de Fritz Lang Foto: Art Films

O machismo talvez seja um dos motivos pelos quais ela foi eclipsada. Contudo, é importante lembrar que sua associação ao nazismo não foi apenas superficial. Quando Joseph Goebbels, ministro da propaganda de Adolf Hitler, convidou Fritz Lang a trabalhar para o Terceiro Reich, o cineasta fugiu para Paris (sua ascendência judia contribuiu para a decisão), mas Harbou preferiu ficar no país e presidiu a Associação Alemã de Autores de Filmes Falados, sob a égide de Hitler.

“Nossa intenção não é apagar ou minimizar o envolvimento de Thea com o regime nazista, mas trazer luz a esse livro que é um importante documento histórico da cultura alemã e mundial”, afirma Luciana Fracchetta, diretora de conteúdo da editora Aleph, em entrevista ao Aliás. “Fomos cuidadosos, inclusive por sermos uma empresa cujos sócios são de origem judaica”, lembrou ela. “Por mais que consideremos abjetos os princípios e ideais com os quais Thea flertou, é impossível negar a sua contribuição para a história do cinema mundial.”

Esse é um caso exemplar a se considerar na discussão sobre a necessidade de se separar autor e obra, algo ainda mais relevante em tempos de #MeToo e perseguições ideológicas. Em seu texto, Marina Person argumenta que o ofuscamento de Harbou não pode ser explicado apenas por seu gênero e sua ideologia, uma vez que a também colaboradora do nazismo Leni Riefenstahl permaneceu lembrada como uma das grandes diretoras de seu tempo. “A diferença talvez seja simplesmente o fato de Riefenstahl nunca ter estado à sombra de um homem.”

Outra distopia futurista de uma escritora pouco lembrada no Brasil e que ganhou recentemente uma nova edição por aqui, pela Carambaia, foi Kallocaína, que a sueca Karin Boye publicou em 1940 como um testemunho do auge totalitário na Europa – a falta de perspectiva de liberdade no futuro seria uma das causas do suicídio da autora, no ano seguinte. O romance, que guarda semelhanças estéticas com Metrópolis, também é ambientado em uma sociedade repressiva, dividida em castas e com rígido controle social. Nesse cenário, o químico Leo Kall cria uma droga – a kallocaína – capaz de induzir qualquer pessoa a admitir os atos mais inconfessáveis. Com isso, nove anos antes da publicação de 1984, Boye imaginou um regime cuja vigilância chegava até aos pensamentos de seus cidadãos, algo ainda mais invasivo que as câmeras do Grande Irmão. 

Harbou e Boye abordaram temores caros à literatura da primeira metade do século 20. Esses temas impulsionaram obras de nomes como E.M. Forster, Ievgeni Zamiatin, Carel Kapek, Claude Farrère, Aldous Huxley e George Orwell, coincidentemente ou não muito mais bem preservadas pela historiografia do que suas contrapartes de autoria feminina. 

Após o fim da 2.ª Guerra Mundial, Harbou ficou presa até 1950 e teve de prestar serviço forçado limpando escombros do conflito para os britânicos. Sua morte, em 1954, não poderia ter sido mais representativa da vida que ela levou: Thea von Harbou teve complicações após sofrer uma queda em um cinema de Berlim que exibia o filme A Morte Cansada (1921), uma das primeiras parcerias dela com Fritz Lang.

 Quando a escritora, roteirista, diretora e atriz alemã Thea von Harbou (1888-1954) publicou Metrópolis, em 1925, a palavra “robô” existia havia menos de uma década – o checo Karel Capek a usou na peça A Fábrica de Robôs, de 1920. Um século depois, quando se pensa em androides, uma das principais referências visuais ainda é o filme Metrópolis (1927), dirigido por Fritz Lang com base no romance de Harbou. A clássica cena em que o inventor Rotwang transforma as feições de um robô no rosto humano de Maria (Brigitte Helm) tornou-se uma das mais reconhecíveis na história do cinema. No entanto, poucos se lembram que esse filme foi inspirado em um livro. O apagamento de Harbou pode ter sido causado por ela ser mulher – ou então por ter se filiado ao partido nazista. Seja como for, esse ofuscamento é corrigido agora com a publicação do romance, inédito no Brasil e traduzido diretamente do alemão por Petê Rissati, em uma parceria da editora Aleph com o Instituto Goethe.

Cena do filme 'Metrópolis' (1927), de Fritz Lang Foto: Art Films

Von Harbou foi roteirista dos principais filmes de Lang, como Dr. Mabuse, o Jogador (1922), Os Nibelungos (1924) e M, o Vampiro de Dusseldorf (1931). Depois que eles se separaram, em 1933, Lang nunca mais voltaria a alcançar o mesmo sucesso. Ela, porém, não se limitou à obra do marido – escreveu roteiros para Carl Theodor Dreyer, F. W. Murnau, Fritz Wendhausen e Ewald André Dupont, grandes nomes do expressionismo e fundamentais na transição do cinema mudo para a era do som.

Nascida em uma família de nobreza decadente, Thea cresceu em meio a dificuldades financeiras e tendo de se mudar diversas vezes, o que talvez explique sua tentativa de conciliar as elites e a classe operária com o que se tornou o mote de Metrópolis: “O mediador entre o cérebro e as mãos deve ser o coração”.

A despeito de eventuais discrepâncias, a premissa do filme de Lang segue bem fielmente os passos do romance de Harbou. Em um futuro indefinido (no filme, a trama se passa em 2026) e distópico, uma cidade extremamente desigual, praticamente dividida em castas, entra em ebulição social com operários revoltosos por suas condições precárias. Metrópolis é governada do alto da Nova Torre de Babel, uma edificação de proporções colossais, o “cérebro” de que fala Harbou. De lá, o supercapitalista Joh Fredersen controla a rotina dos desvalidos – as “mãos” – que trabalham nas máquinas subterrâneas em jornadas de dez horas diárias. 

Enquanto os miseráveis são explorados, a elite gasta seu tempo fazendo atividades físicas, lúdicas e artísticas. Em seus jardins idílicos, o protagonista Freder, filho de Joh Fredersen, ignora o abismo social até o dia em que conhece Maria, a garota pobre que cuida das crianças dos trabalhadores, e se apaixona por ela. 

Ilustração de Mateus Acioli inspirada em 'Metrópolis' Foto: Mateus Acioli/Aleph

Maria não é apenas uma babá. É também uma líder revolucionária e pacifista. Os trabalhadores se reúnem para ouvir seus discursos, escritos com eloquência por Harbou: “Muitos entre vocês estão gritando: Luta! Destruição! Não lutem, meus irmãos, porque isso os tornaria culpados. Acreditem em mim, virá alguém que falará por vocês, que será um intermediário entre vocês, as mãos, e o homem cujo cérebro e cuja vontade estão acima de todos. Ele lhes dará algo mais precioso do que tudo que um ser humano poderia lhes dar: a capacidade de tornarem-se livres sem que se tornem culpados”.

Diante da suspeita de que os funcionários estejam organizando reuniões subversivas em um ambiente subterrâneo, Joh Fredersen pede ajuda a um antigo rival, o inventor Rotwang, que havia criado Futura, um robô com traços femininos. No passado, o líder de Metrópolis seduziu a mulher do cientista, Hel, que morreu dando à luz Freder. Porém Rotwang aceita auxiliar seu desafeto. O inventor – um exemplar clássico do arquétipo de cientista louco – captura Maria e transforma Futura em seu duplo. No entanto, o robô se rebela e, em vez de acalmar a turba de revoltosos, incita os trabalhadores com um discurso ludita: “A máquina os devora como ração e cospe fora! Por que vocês engordam a máquina com seus corpos Por que estão lubrificando as articulações da máquina com seu cérebro?”

Quando Freder conhece a realidade dos despossuídos, ele desenvolve, por vias tortas, uma espécie de consciência social – mais pelo desejo amoroso por Maria do que por identificação com os oprimidos. Diante da catarse social, o jovem assume, afinal, o papel de mediador entre o cérebro e as mãos. 

Se Metrópolis é hoje reconhecido como um clássico do cinema, a crítica não foi tão positiva na época. A edição da Aleph traz elucidativos textos do crítico literário austríaco Franz Rottensteiner, da atriz e cineasta Marina Person, e do escritor Anthony Burgess, que ajudam a compreender o contexto da obra.

Burgess, autor de Laranja Mecânica, escreve sobre como Metrópolis mudou sua vida, mas admite: “É uma história bem melodramática”. Rottensteiner fala sobre a recepção do filme, mostrando que o cineasta surrealista Luis Buñuel e o escritor de ficção científica H.G. Wells não reagiram bem à obra. Mais do que isso, ele explicita um recorte de gênero: “Tudo o que é bom sobre o filme (...) em geral se atribui à genialidade do diretor Fritz Lang, enquanto tudo o que é negativo, o sentimental, o patético, o kitsch, supostamente vem de Thea von Harbou”.

De fato, o esoterismo com que a autora encara a ideia de máquina (os aparelhos parecem não ter nenhuma função prática, servindo apenas ao simbolismo), as referências religiosas explícitas (como a figura de Maria e a deidade das máquinas) e a profusão de adjetivos nas descrições do livro justificam essa noção. Entretanto, seu romance antecipou diversas questões que viriam a ser tratadas pela literatura do século 20, como o autoritarismo, a precarização do trabalho e a opressão das máquinas em uma sociedade tecnológica. Fica clara, portanto, a diferença de tratamento entre Harbou e Lang por parte da crítica.

Cena de 'Metrópolis' (1927), de Fritz Lang Foto: Art Films

O machismo talvez seja um dos motivos pelos quais ela foi eclipsada. Contudo, é importante lembrar que sua associação ao nazismo não foi apenas superficial. Quando Joseph Goebbels, ministro da propaganda de Adolf Hitler, convidou Fritz Lang a trabalhar para o Terceiro Reich, o cineasta fugiu para Paris (sua ascendência judia contribuiu para a decisão), mas Harbou preferiu ficar no país e presidiu a Associação Alemã de Autores de Filmes Falados, sob a égide de Hitler.

“Nossa intenção não é apagar ou minimizar o envolvimento de Thea com o regime nazista, mas trazer luz a esse livro que é um importante documento histórico da cultura alemã e mundial”, afirma Luciana Fracchetta, diretora de conteúdo da editora Aleph, em entrevista ao Aliás. “Fomos cuidadosos, inclusive por sermos uma empresa cujos sócios são de origem judaica”, lembrou ela. “Por mais que consideremos abjetos os princípios e ideais com os quais Thea flertou, é impossível negar a sua contribuição para a história do cinema mundial.”

Esse é um caso exemplar a se considerar na discussão sobre a necessidade de se separar autor e obra, algo ainda mais relevante em tempos de #MeToo e perseguições ideológicas. Em seu texto, Marina Person argumenta que o ofuscamento de Harbou não pode ser explicado apenas por seu gênero e sua ideologia, uma vez que a também colaboradora do nazismo Leni Riefenstahl permaneceu lembrada como uma das grandes diretoras de seu tempo. “A diferença talvez seja simplesmente o fato de Riefenstahl nunca ter estado à sombra de um homem.”

Outra distopia futurista de uma escritora pouco lembrada no Brasil e que ganhou recentemente uma nova edição por aqui, pela Carambaia, foi Kallocaína, que a sueca Karin Boye publicou em 1940 como um testemunho do auge totalitário na Europa – a falta de perspectiva de liberdade no futuro seria uma das causas do suicídio da autora, no ano seguinte. O romance, que guarda semelhanças estéticas com Metrópolis, também é ambientado em uma sociedade repressiva, dividida em castas e com rígido controle social. Nesse cenário, o químico Leo Kall cria uma droga – a kallocaína – capaz de induzir qualquer pessoa a admitir os atos mais inconfessáveis. Com isso, nove anos antes da publicação de 1984, Boye imaginou um regime cuja vigilância chegava até aos pensamentos de seus cidadãos, algo ainda mais invasivo que as câmeras do Grande Irmão. 

Harbou e Boye abordaram temores caros à literatura da primeira metade do século 20. Esses temas impulsionaram obras de nomes como E.M. Forster, Ievgeni Zamiatin, Carel Kapek, Claude Farrère, Aldous Huxley e George Orwell, coincidentemente ou não muito mais bem preservadas pela historiografia do que suas contrapartes de autoria feminina. 

Após o fim da 2.ª Guerra Mundial, Harbou ficou presa até 1950 e teve de prestar serviço forçado limpando escombros do conflito para os britânicos. Sua morte, em 1954, não poderia ter sido mais representativa da vida que ela levou: Thea von Harbou teve complicações após sofrer uma queda em um cinema de Berlim que exibia o filme A Morte Cansada (1921), uma das primeiras parcerias dela com Fritz Lang.

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