Umberto Eco dizia que “a língua da Europa é a tradução”. Acredito que a língua do mundo deveria ser a tradução, pois é através desta que se conhecem outras culturas e novas formas de pensar. No que tange à literatura, particularmente, é através dela que autores estrangeiros ganham repercussão, por vezes muito mais do que os autores nacionais, como acontece no Brasil. A propósito, a tradução da obra de escritores brasileiros ainda é pequena, em parte porque não temos uma política de divulgação de nossa produção literária em países não falantes do português. Sem um programa governamental, esse trabalho de divulgação e de tradução da produção literária nacional vem sendo feito, em grande parte, por professores e alunos das nossas universidades em conjunto com universidades estrangeiras.
Las Travesuras de Naricita (Reinações de Narizinho), de Monteiro Lobato, que agora chega pela primeira vez ao Chile, é fruto desse esforço que nasce na academia. A edição alentada é coordenada por Letícia Goellner, doutora pelo programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução da Universidade Federal de Santa Catarina e professora de Tradução na Pontifícia Universidad Católica de Chile. O livro, cujo texto de Lobato foi traduzido por Goellner, Pablo Saavedra e Vicente Menares, conta com paratextos importantes, assinados pelos tradutores e por pesquisadoras brasileiras como Regina Zilberman, Fernanda Coutinho e Marie-Hélène Torres.Reinações de Narizinho, que faz 90 anos em 2021, é o segundo livro de Lobato para o público infantil. O primeiro, A Menina do Narizinho Arrebitado, de 1920, fez um sucesso tão grande que, em 1931, Lobato decidiu relançar a história, acrescentando, contudo, outras aventuras inéditas ao volume. Nasceu, assim, Reinações de Narizinho, livro que “abre para a porteira do Sítio do Picapau Amarelo”, como afirmam Márcia Camargo e Vladimir Sacchetta. As aventuras do Sítio de Lobato marcaram gerações de brasileiros. Em Felicidade Clandestina, de Clarice Lispector, a narradora descreve a “tortura chinesa” a que se submeteu para conseguir Reinações de Narizinho. Parece que valeu a pena: “Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o”. Lobato inaugurou uma nova era na literatura infantojuvenil. Reinações é uma espécie de Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll. Ambos são protagonizados por meninas sonhadoras; no entanto, no livro de Carroll, quando Alice desperta, a fantasia termina; já em Lobato, a fantasia inunda a vida real. Em sonho, Emília, a boneca de Narizinho, começa a falar desenfreadamente depois de ingerir algumas pílulas. Findo o sonho, a boneca segue falando: realidade e fantasia passam a caminhar lado a lado. Revista no século 21, a linguagem usada por Monteiro Lobato nas aventuras do Sítio do Picapau Amarelo se revelou racista. Cabe destacar que Lobato escreveu na primeira metade do século 20 e usava as expressões coloquiais da época. Todavia, não se pode desconsiderar que o escritor fez parte de uma sociedade eugenista, da qual participaram outros grandes nomes da época. Essa tomada de posição de Lobato é discutida, por exemplo, nos livros Raça Pura, de Pietra Diwan, e O Cosmopolitismo do Pobre, de Silviano Santiago. Não é tão fácil quanto parece falar dessas questões na obra de Lobato, pois há nela algo de paradoxal no tocante à raça, à cultura, etc. Se por um lado tia Nastácia é “a negra beiçuda e ignorante”, como o escritor a descreve, por outro lado, ela é uma das protagonistas da obra de Lobato e ganhou destaque num livro que recebeu o seu nome: Histórias de Tia Nastácia. Na tradução para o espanhol chileno, essas marcas “racistas” e outras “politicamente incorretas” foram adaptadas com o intuito de dar atualidade ao texto. Segundo os tradutores, se a linguagem e as palavras usadas por Lobato, “naquele momento, 1920, estavam naturalizadas”, hoje “não podem ser aceitas de maneira nenhuma”. Desse modo, tia Nastácia, descrita em Reinações como “negra de estimação”, na tradução se tornou “una señora negra muy querida por la família” (uma senhora negra muito querida pela família). Já o “anãozinho” que se candidata a bobo da corte, no Reino das Águas Claras, se transforma em “duendecito” (duendezinho). Mas os tradutores e a organizadora do volume são honestos com o leitor e esse tema polêmico é tratado tanto no ensaio que assinam, quanto em outro ensaio, de autoria de Alessandra Harden, que também compõe a edição chilena. A tradução pode dar nova vida ao texto ao atualizá-lo ou adaptá-lo à cultura de chegada. Em português, o texto de Lobato também pode ser adaptado, como já o foi, mas ninguém pode apagar o que Lobato de fato escreveu em língua portuguesa. ESCRITORA, TRADUTORA, ENSAÍSTA E PROFESSORA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA TRADUÇÃO