Trauma coletivo do nazismo guia 'A Consulta' de Katharina Vockmer


Estreia da alemã foi comparada ao consagrado ‘Complexo de Portnoy’, do americano Philip Roth

Por Mateus Baldi
Atualização:

Diferentes línguas flutuam na cabeça de Katharina Volckmer. Nascida na Alemanha e vivendo em Londres, ela fala italiano e inglês em casa – além de ler em francês e estar aprendendo russo. Essa mistura sem nada de Babel ajuda a engrossar o caldo de A Consulta, seu primeiro romance, publicado pela Fósforo em tradução de Angélica Freitas. Nas 104 páginas do monólogo, uma mulher está no consultório do dr. Seligman para um procedimento que, a princípio, não sabemos qual. As palavras saem rápidas, como num jorro de alívio, porém tudo que existe pela frente é seu humor corrosivo, que pretende examinar a história alemã e suas próprias fantasias sexuais envolvendo Hitler. Em entrevista realizada por e-mail, Volckmer, que é agente literária, conta que costuma escrever na hora do almoço. Comparado a O Complexo de Portnoy, de Philip Roth, A Consulta nasceu como um conto. Segundo sua autora, é o resultado de pensamentos e sentimentos que teve por muitos anos.

Montagem da peça 'A Consulta", baseada no livro da alemãKatharina Volckmer Foto: Volkstheater Wien

Ao discutir temas como corpo – “ponto de referência da nossa realidade” – e trauma coletivo – “precisamos ser honestos com nós mesmos a respeito de quem somos e as responsabilidades que resultam disso” –, o livro gerou tanta polêmica quanto elogios. Para Volckmer, trata-se de uma obra sobre “as alegrias da libertação”. Na conversa a seguir, entre outros temas, ela reflete sobre a construção literária, a inspiração na música e nas artes visuais e a força que a vulnerabilidade pode dar a um texto.

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Uma das muitas chaves de leitura de A Consulta é o trauma coletivo, especialmente o alemão. Essa também é uma questão no Brasil, com a ditadura militar e todos os horrores que a América Latina encarou nos anos 1960 e 1970 – com as devidas proporções. O que você acha que é tão difícil a respeito do passado que as pessoas não conseguem encará-lo? E como a literatura pode – deveria? – ajudar?

É muito interessante ouvir sobre esses paralelos entre Brasil e Alemanha. Confrontar o passado é tão difícil porque significa que você precisa se confrontar – independentemente de você ter vivido na época ou se você é descendente das vítimas ou dos criminosos. Significa que precisamos ser honestos com nós mesmos a respeito de quem somos e as responsabilidades que resultam disso. A literatura pode nos ensinar sobre empatia e nos ajudar a encontrar a linguagem para nos expressarmos. Também pode nos ajudar a pensar de formas diferentes e nos preparar para esses confrontos com nossa própria história.

 

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A narradora é algo neurótica, mas também muito consciente dos perigos escondidos em certa quietude coletiva – de modo que acabam colidindo. Como essa personagem surgiu e como você moldou seu discurso?

Eu realmente não construo minhas vozes, especialmente a da narradora de

A Consulta

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. Pode soar muito estranho, mas essa voz simplesmente apareceu um dia na minha cabeça. Primeiro era só um conto, mas então senti que podia ser mais do que uma história curta. Com certeza ela é o resultado de pensamentos e sentimentos que tive por muitos anos, mas a escrita em si aconteceu rapidamente ao longo de alguns meses. Não sou muito consciente a respeito do que estou escrevendo enquanto estou no processo, mas acho que o equilíbrio a que você se refere é também parte do desenvolvimento da narradora. O movimento do texto, em que ela vai de afrontosa a vulnerável, e ao fim encontra força em sua própria vulnerabilidade. Esse é o equilíbrio que estive procurando.

Retrato da escritora Katharina Volckmer, autora de 'A Consulta', comparadaa Philip Roth Foto: Fósforo

 

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Como seu trabalho de agente literária interfere na sua escrita? Você se cobra muito ou os separa?

Tem sido, de muitas formas, um aprendizado sobre a indústria do livro, e agora sou uma daquelas autoras chatas que sabem demais. Mas sou grata por conseguir fazer ambos, porque muitos artistas publicam sem saber o bastante sobre indústria com a qual precisam lidar como parte do trabalho. E não acho difícil separar ambos – me acostumei a escrever durante o horário de almoço.

A Consulta foi comparado a O Complexo de Portnoy, de Philip Roth. Quais foram suas referências durante o processo de escrita? Você tentou escapar de algum tipo de escrita ou só deixou fluir?

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Me inspiro em muitas coisas, na música e nas artes visuais (se não mais) tanto quanto na literatura. Sempre me interessei por trabalhar com diferentes mídias e formatos de arte, e também, é claro, me inspiro nas diferentes línguas que flutuam na minha cabeça. Elas estão todas presentes na minha escrita, mesmo que eu escreva em inglês. Não acho, no entanto, que escrever seja uma forma de escapismo, é mais o ato de construir algo para poder dar conta do mundo. Porém, para mim, escrever não é uma forma de escape, é um ato de construir algo de modo a ser capaz de lidar com o mundo. Minhas referências artísticas vão de qualquer coisa entre Gustav Mahler a Ingeborg Bachmann, a George Michael e Tracey Emin. Estou sempre tentando estar aberta para o mundo e absorver o máximo possível. No fim das contas, um artista nada mais é do que um filtro pelo qual o mundo passa.

Há uma entrevista em que você diz pensar que “algumas coisas se tornaram “inutilmente binárias”. O corpo e suas políticas são um dos temas principais de A Consulta. Como você pensou nele enquanto escrevia?

Sempre começo pelo corpo quando escrevo. Para mim é o primeiro ponto de referência da nossa realidade, algo de que nunca podemos escapar e que devemos sempre levar em consideração. O que me interessava nesse livro era pensar os corpos em conexão com a nacionalidade. O que significa ter nascido em um corpo que pertence a certa nacionalidade, e o que isso significa se quisermos tentar mudar isso? Romper com o que nascemos. É um livro sobre identidade e o que acontece se questionarmos as normas de gênero existentes. Também é um livro sobre o grande sentimento de libertação que experimentei quando parei de separar o mundo entre masculino e feminino. É, em muitos aspectos, um livro sobre as alegrias da libertação.

Diferentes línguas flutuam na cabeça de Katharina Volckmer. Nascida na Alemanha e vivendo em Londres, ela fala italiano e inglês em casa – além de ler em francês e estar aprendendo russo. Essa mistura sem nada de Babel ajuda a engrossar o caldo de A Consulta, seu primeiro romance, publicado pela Fósforo em tradução de Angélica Freitas. Nas 104 páginas do monólogo, uma mulher está no consultório do dr. Seligman para um procedimento que, a princípio, não sabemos qual. As palavras saem rápidas, como num jorro de alívio, porém tudo que existe pela frente é seu humor corrosivo, que pretende examinar a história alemã e suas próprias fantasias sexuais envolvendo Hitler. Em entrevista realizada por e-mail, Volckmer, que é agente literária, conta que costuma escrever na hora do almoço. Comparado a O Complexo de Portnoy, de Philip Roth, A Consulta nasceu como um conto. Segundo sua autora, é o resultado de pensamentos e sentimentos que teve por muitos anos.

Montagem da peça 'A Consulta", baseada no livro da alemãKatharina Volckmer Foto: Volkstheater Wien

Ao discutir temas como corpo – “ponto de referência da nossa realidade” – e trauma coletivo – “precisamos ser honestos com nós mesmos a respeito de quem somos e as responsabilidades que resultam disso” –, o livro gerou tanta polêmica quanto elogios. Para Volckmer, trata-se de uma obra sobre “as alegrias da libertação”. Na conversa a seguir, entre outros temas, ela reflete sobre a construção literária, a inspiração na música e nas artes visuais e a força que a vulnerabilidade pode dar a um texto.

Uma das muitas chaves de leitura de A Consulta é o trauma coletivo, especialmente o alemão. Essa também é uma questão no Brasil, com a ditadura militar e todos os horrores que a América Latina encarou nos anos 1960 e 1970 – com as devidas proporções. O que você acha que é tão difícil a respeito do passado que as pessoas não conseguem encará-lo? E como a literatura pode – deveria? – ajudar?

É muito interessante ouvir sobre esses paralelos entre Brasil e Alemanha. Confrontar o passado é tão difícil porque significa que você precisa se confrontar – independentemente de você ter vivido na época ou se você é descendente das vítimas ou dos criminosos. Significa que precisamos ser honestos com nós mesmos a respeito de quem somos e as responsabilidades que resultam disso. A literatura pode nos ensinar sobre empatia e nos ajudar a encontrar a linguagem para nos expressarmos. Também pode nos ajudar a pensar de formas diferentes e nos preparar para esses confrontos com nossa própria história.

 

A narradora é algo neurótica, mas também muito consciente dos perigos escondidos em certa quietude coletiva – de modo que acabam colidindo. Como essa personagem surgiu e como você moldou seu discurso?

Eu realmente não construo minhas vozes, especialmente a da narradora de

A Consulta

. Pode soar muito estranho, mas essa voz simplesmente apareceu um dia na minha cabeça. Primeiro era só um conto, mas então senti que podia ser mais do que uma história curta. Com certeza ela é o resultado de pensamentos e sentimentos que tive por muitos anos, mas a escrita em si aconteceu rapidamente ao longo de alguns meses. Não sou muito consciente a respeito do que estou escrevendo enquanto estou no processo, mas acho que o equilíbrio a que você se refere é também parte do desenvolvimento da narradora. O movimento do texto, em que ela vai de afrontosa a vulnerável, e ao fim encontra força em sua própria vulnerabilidade. Esse é o equilíbrio que estive procurando.

Retrato da escritora Katharina Volckmer, autora de 'A Consulta', comparadaa Philip Roth Foto: Fósforo

 

Como seu trabalho de agente literária interfere na sua escrita? Você se cobra muito ou os separa?

Tem sido, de muitas formas, um aprendizado sobre a indústria do livro, e agora sou uma daquelas autoras chatas que sabem demais. Mas sou grata por conseguir fazer ambos, porque muitos artistas publicam sem saber o bastante sobre indústria com a qual precisam lidar como parte do trabalho. E não acho difícil separar ambos – me acostumei a escrever durante o horário de almoço.

A Consulta foi comparado a O Complexo de Portnoy, de Philip Roth. Quais foram suas referências durante o processo de escrita? Você tentou escapar de algum tipo de escrita ou só deixou fluir?

Me inspiro em muitas coisas, na música e nas artes visuais (se não mais) tanto quanto na literatura. Sempre me interessei por trabalhar com diferentes mídias e formatos de arte, e também, é claro, me inspiro nas diferentes línguas que flutuam na minha cabeça. Elas estão todas presentes na minha escrita, mesmo que eu escreva em inglês. Não acho, no entanto, que escrever seja uma forma de escapismo, é mais o ato de construir algo para poder dar conta do mundo. Porém, para mim, escrever não é uma forma de escape, é um ato de construir algo de modo a ser capaz de lidar com o mundo. Minhas referências artísticas vão de qualquer coisa entre Gustav Mahler a Ingeborg Bachmann, a George Michael e Tracey Emin. Estou sempre tentando estar aberta para o mundo e absorver o máximo possível. No fim das contas, um artista nada mais é do que um filtro pelo qual o mundo passa.

Há uma entrevista em que você diz pensar que “algumas coisas se tornaram “inutilmente binárias”. O corpo e suas políticas são um dos temas principais de A Consulta. Como você pensou nele enquanto escrevia?

Sempre começo pelo corpo quando escrevo. Para mim é o primeiro ponto de referência da nossa realidade, algo de que nunca podemos escapar e que devemos sempre levar em consideração. O que me interessava nesse livro era pensar os corpos em conexão com a nacionalidade. O que significa ter nascido em um corpo que pertence a certa nacionalidade, e o que isso significa se quisermos tentar mudar isso? Romper com o que nascemos. É um livro sobre identidade e o que acontece se questionarmos as normas de gênero existentes. Também é um livro sobre o grande sentimento de libertação que experimentei quando parei de separar o mundo entre masculino e feminino. É, em muitos aspectos, um livro sobre as alegrias da libertação.

Diferentes línguas flutuam na cabeça de Katharina Volckmer. Nascida na Alemanha e vivendo em Londres, ela fala italiano e inglês em casa – além de ler em francês e estar aprendendo russo. Essa mistura sem nada de Babel ajuda a engrossar o caldo de A Consulta, seu primeiro romance, publicado pela Fósforo em tradução de Angélica Freitas. Nas 104 páginas do monólogo, uma mulher está no consultório do dr. Seligman para um procedimento que, a princípio, não sabemos qual. As palavras saem rápidas, como num jorro de alívio, porém tudo que existe pela frente é seu humor corrosivo, que pretende examinar a história alemã e suas próprias fantasias sexuais envolvendo Hitler. Em entrevista realizada por e-mail, Volckmer, que é agente literária, conta que costuma escrever na hora do almoço. Comparado a O Complexo de Portnoy, de Philip Roth, A Consulta nasceu como um conto. Segundo sua autora, é o resultado de pensamentos e sentimentos que teve por muitos anos.

Montagem da peça 'A Consulta", baseada no livro da alemãKatharina Volckmer Foto: Volkstheater Wien

Ao discutir temas como corpo – “ponto de referência da nossa realidade” – e trauma coletivo – “precisamos ser honestos com nós mesmos a respeito de quem somos e as responsabilidades que resultam disso” –, o livro gerou tanta polêmica quanto elogios. Para Volckmer, trata-se de uma obra sobre “as alegrias da libertação”. Na conversa a seguir, entre outros temas, ela reflete sobre a construção literária, a inspiração na música e nas artes visuais e a força que a vulnerabilidade pode dar a um texto.

Uma das muitas chaves de leitura de A Consulta é o trauma coletivo, especialmente o alemão. Essa também é uma questão no Brasil, com a ditadura militar e todos os horrores que a América Latina encarou nos anos 1960 e 1970 – com as devidas proporções. O que você acha que é tão difícil a respeito do passado que as pessoas não conseguem encará-lo? E como a literatura pode – deveria? – ajudar?

É muito interessante ouvir sobre esses paralelos entre Brasil e Alemanha. Confrontar o passado é tão difícil porque significa que você precisa se confrontar – independentemente de você ter vivido na época ou se você é descendente das vítimas ou dos criminosos. Significa que precisamos ser honestos com nós mesmos a respeito de quem somos e as responsabilidades que resultam disso. A literatura pode nos ensinar sobre empatia e nos ajudar a encontrar a linguagem para nos expressarmos. Também pode nos ajudar a pensar de formas diferentes e nos preparar para esses confrontos com nossa própria história.

 

A narradora é algo neurótica, mas também muito consciente dos perigos escondidos em certa quietude coletiva – de modo que acabam colidindo. Como essa personagem surgiu e como você moldou seu discurso?

Eu realmente não construo minhas vozes, especialmente a da narradora de

A Consulta

. Pode soar muito estranho, mas essa voz simplesmente apareceu um dia na minha cabeça. Primeiro era só um conto, mas então senti que podia ser mais do que uma história curta. Com certeza ela é o resultado de pensamentos e sentimentos que tive por muitos anos, mas a escrita em si aconteceu rapidamente ao longo de alguns meses. Não sou muito consciente a respeito do que estou escrevendo enquanto estou no processo, mas acho que o equilíbrio a que você se refere é também parte do desenvolvimento da narradora. O movimento do texto, em que ela vai de afrontosa a vulnerável, e ao fim encontra força em sua própria vulnerabilidade. Esse é o equilíbrio que estive procurando.

Retrato da escritora Katharina Volckmer, autora de 'A Consulta', comparadaa Philip Roth Foto: Fósforo

 

Como seu trabalho de agente literária interfere na sua escrita? Você se cobra muito ou os separa?

Tem sido, de muitas formas, um aprendizado sobre a indústria do livro, e agora sou uma daquelas autoras chatas que sabem demais. Mas sou grata por conseguir fazer ambos, porque muitos artistas publicam sem saber o bastante sobre indústria com a qual precisam lidar como parte do trabalho. E não acho difícil separar ambos – me acostumei a escrever durante o horário de almoço.

A Consulta foi comparado a O Complexo de Portnoy, de Philip Roth. Quais foram suas referências durante o processo de escrita? Você tentou escapar de algum tipo de escrita ou só deixou fluir?

Me inspiro em muitas coisas, na música e nas artes visuais (se não mais) tanto quanto na literatura. Sempre me interessei por trabalhar com diferentes mídias e formatos de arte, e também, é claro, me inspiro nas diferentes línguas que flutuam na minha cabeça. Elas estão todas presentes na minha escrita, mesmo que eu escreva em inglês. Não acho, no entanto, que escrever seja uma forma de escapismo, é mais o ato de construir algo para poder dar conta do mundo. Porém, para mim, escrever não é uma forma de escape, é um ato de construir algo de modo a ser capaz de lidar com o mundo. Minhas referências artísticas vão de qualquer coisa entre Gustav Mahler a Ingeborg Bachmann, a George Michael e Tracey Emin. Estou sempre tentando estar aberta para o mundo e absorver o máximo possível. No fim das contas, um artista nada mais é do que um filtro pelo qual o mundo passa.

Há uma entrevista em que você diz pensar que “algumas coisas se tornaram “inutilmente binárias”. O corpo e suas políticas são um dos temas principais de A Consulta. Como você pensou nele enquanto escrevia?

Sempre começo pelo corpo quando escrevo. Para mim é o primeiro ponto de referência da nossa realidade, algo de que nunca podemos escapar e que devemos sempre levar em consideração. O que me interessava nesse livro era pensar os corpos em conexão com a nacionalidade. O que significa ter nascido em um corpo que pertence a certa nacionalidade, e o que isso significa se quisermos tentar mudar isso? Romper com o que nascemos. É um livro sobre identidade e o que acontece se questionarmos as normas de gênero existentes. Também é um livro sobre o grande sentimento de libertação que experimentei quando parei de separar o mundo entre masculino e feminino. É, em muitos aspectos, um livro sobre as alegrias da libertação.

Diferentes línguas flutuam na cabeça de Katharina Volckmer. Nascida na Alemanha e vivendo em Londres, ela fala italiano e inglês em casa – além de ler em francês e estar aprendendo russo. Essa mistura sem nada de Babel ajuda a engrossar o caldo de A Consulta, seu primeiro romance, publicado pela Fósforo em tradução de Angélica Freitas. Nas 104 páginas do monólogo, uma mulher está no consultório do dr. Seligman para um procedimento que, a princípio, não sabemos qual. As palavras saem rápidas, como num jorro de alívio, porém tudo que existe pela frente é seu humor corrosivo, que pretende examinar a história alemã e suas próprias fantasias sexuais envolvendo Hitler. Em entrevista realizada por e-mail, Volckmer, que é agente literária, conta que costuma escrever na hora do almoço. Comparado a O Complexo de Portnoy, de Philip Roth, A Consulta nasceu como um conto. Segundo sua autora, é o resultado de pensamentos e sentimentos que teve por muitos anos.

Montagem da peça 'A Consulta", baseada no livro da alemãKatharina Volckmer Foto: Volkstheater Wien

Ao discutir temas como corpo – “ponto de referência da nossa realidade” – e trauma coletivo – “precisamos ser honestos com nós mesmos a respeito de quem somos e as responsabilidades que resultam disso” –, o livro gerou tanta polêmica quanto elogios. Para Volckmer, trata-se de uma obra sobre “as alegrias da libertação”. Na conversa a seguir, entre outros temas, ela reflete sobre a construção literária, a inspiração na música e nas artes visuais e a força que a vulnerabilidade pode dar a um texto.

Uma das muitas chaves de leitura de A Consulta é o trauma coletivo, especialmente o alemão. Essa também é uma questão no Brasil, com a ditadura militar e todos os horrores que a América Latina encarou nos anos 1960 e 1970 – com as devidas proporções. O que você acha que é tão difícil a respeito do passado que as pessoas não conseguem encará-lo? E como a literatura pode – deveria? – ajudar?

É muito interessante ouvir sobre esses paralelos entre Brasil e Alemanha. Confrontar o passado é tão difícil porque significa que você precisa se confrontar – independentemente de você ter vivido na época ou se você é descendente das vítimas ou dos criminosos. Significa que precisamos ser honestos com nós mesmos a respeito de quem somos e as responsabilidades que resultam disso. A literatura pode nos ensinar sobre empatia e nos ajudar a encontrar a linguagem para nos expressarmos. Também pode nos ajudar a pensar de formas diferentes e nos preparar para esses confrontos com nossa própria história.

 

A narradora é algo neurótica, mas também muito consciente dos perigos escondidos em certa quietude coletiva – de modo que acabam colidindo. Como essa personagem surgiu e como você moldou seu discurso?

Eu realmente não construo minhas vozes, especialmente a da narradora de

A Consulta

. Pode soar muito estranho, mas essa voz simplesmente apareceu um dia na minha cabeça. Primeiro era só um conto, mas então senti que podia ser mais do que uma história curta. Com certeza ela é o resultado de pensamentos e sentimentos que tive por muitos anos, mas a escrita em si aconteceu rapidamente ao longo de alguns meses. Não sou muito consciente a respeito do que estou escrevendo enquanto estou no processo, mas acho que o equilíbrio a que você se refere é também parte do desenvolvimento da narradora. O movimento do texto, em que ela vai de afrontosa a vulnerável, e ao fim encontra força em sua própria vulnerabilidade. Esse é o equilíbrio que estive procurando.

Retrato da escritora Katharina Volckmer, autora de 'A Consulta', comparadaa Philip Roth Foto: Fósforo

 

Como seu trabalho de agente literária interfere na sua escrita? Você se cobra muito ou os separa?

Tem sido, de muitas formas, um aprendizado sobre a indústria do livro, e agora sou uma daquelas autoras chatas que sabem demais. Mas sou grata por conseguir fazer ambos, porque muitos artistas publicam sem saber o bastante sobre indústria com a qual precisam lidar como parte do trabalho. E não acho difícil separar ambos – me acostumei a escrever durante o horário de almoço.

A Consulta foi comparado a O Complexo de Portnoy, de Philip Roth. Quais foram suas referências durante o processo de escrita? Você tentou escapar de algum tipo de escrita ou só deixou fluir?

Me inspiro em muitas coisas, na música e nas artes visuais (se não mais) tanto quanto na literatura. Sempre me interessei por trabalhar com diferentes mídias e formatos de arte, e também, é claro, me inspiro nas diferentes línguas que flutuam na minha cabeça. Elas estão todas presentes na minha escrita, mesmo que eu escreva em inglês. Não acho, no entanto, que escrever seja uma forma de escapismo, é mais o ato de construir algo para poder dar conta do mundo. Porém, para mim, escrever não é uma forma de escape, é um ato de construir algo de modo a ser capaz de lidar com o mundo. Minhas referências artísticas vão de qualquer coisa entre Gustav Mahler a Ingeborg Bachmann, a George Michael e Tracey Emin. Estou sempre tentando estar aberta para o mundo e absorver o máximo possível. No fim das contas, um artista nada mais é do que um filtro pelo qual o mundo passa.

Há uma entrevista em que você diz pensar que “algumas coisas se tornaram “inutilmente binárias”. O corpo e suas políticas são um dos temas principais de A Consulta. Como você pensou nele enquanto escrevia?

Sempre começo pelo corpo quando escrevo. Para mim é o primeiro ponto de referência da nossa realidade, algo de que nunca podemos escapar e que devemos sempre levar em consideração. O que me interessava nesse livro era pensar os corpos em conexão com a nacionalidade. O que significa ter nascido em um corpo que pertence a certa nacionalidade, e o que isso significa se quisermos tentar mudar isso? Romper com o que nascemos. É um livro sobre identidade e o que acontece se questionarmos as normas de gênero existentes. Também é um livro sobre o grande sentimento de libertação que experimentei quando parei de separar o mundo entre masculino e feminino. É, em muitos aspectos, um livro sobre as alegrias da libertação.

Diferentes línguas flutuam na cabeça de Katharina Volckmer. Nascida na Alemanha e vivendo em Londres, ela fala italiano e inglês em casa – além de ler em francês e estar aprendendo russo. Essa mistura sem nada de Babel ajuda a engrossar o caldo de A Consulta, seu primeiro romance, publicado pela Fósforo em tradução de Angélica Freitas. Nas 104 páginas do monólogo, uma mulher está no consultório do dr. Seligman para um procedimento que, a princípio, não sabemos qual. As palavras saem rápidas, como num jorro de alívio, porém tudo que existe pela frente é seu humor corrosivo, que pretende examinar a história alemã e suas próprias fantasias sexuais envolvendo Hitler. Em entrevista realizada por e-mail, Volckmer, que é agente literária, conta que costuma escrever na hora do almoço. Comparado a O Complexo de Portnoy, de Philip Roth, A Consulta nasceu como um conto. Segundo sua autora, é o resultado de pensamentos e sentimentos que teve por muitos anos.

Montagem da peça 'A Consulta", baseada no livro da alemãKatharina Volckmer Foto: Volkstheater Wien

Ao discutir temas como corpo – “ponto de referência da nossa realidade” – e trauma coletivo – “precisamos ser honestos com nós mesmos a respeito de quem somos e as responsabilidades que resultam disso” –, o livro gerou tanta polêmica quanto elogios. Para Volckmer, trata-se de uma obra sobre “as alegrias da libertação”. Na conversa a seguir, entre outros temas, ela reflete sobre a construção literária, a inspiração na música e nas artes visuais e a força que a vulnerabilidade pode dar a um texto.

Uma das muitas chaves de leitura de A Consulta é o trauma coletivo, especialmente o alemão. Essa também é uma questão no Brasil, com a ditadura militar e todos os horrores que a América Latina encarou nos anos 1960 e 1970 – com as devidas proporções. O que você acha que é tão difícil a respeito do passado que as pessoas não conseguem encará-lo? E como a literatura pode – deveria? – ajudar?

É muito interessante ouvir sobre esses paralelos entre Brasil e Alemanha. Confrontar o passado é tão difícil porque significa que você precisa se confrontar – independentemente de você ter vivido na época ou se você é descendente das vítimas ou dos criminosos. Significa que precisamos ser honestos com nós mesmos a respeito de quem somos e as responsabilidades que resultam disso. A literatura pode nos ensinar sobre empatia e nos ajudar a encontrar a linguagem para nos expressarmos. Também pode nos ajudar a pensar de formas diferentes e nos preparar para esses confrontos com nossa própria história.

 

A narradora é algo neurótica, mas também muito consciente dos perigos escondidos em certa quietude coletiva – de modo que acabam colidindo. Como essa personagem surgiu e como você moldou seu discurso?

Eu realmente não construo minhas vozes, especialmente a da narradora de

A Consulta

. Pode soar muito estranho, mas essa voz simplesmente apareceu um dia na minha cabeça. Primeiro era só um conto, mas então senti que podia ser mais do que uma história curta. Com certeza ela é o resultado de pensamentos e sentimentos que tive por muitos anos, mas a escrita em si aconteceu rapidamente ao longo de alguns meses. Não sou muito consciente a respeito do que estou escrevendo enquanto estou no processo, mas acho que o equilíbrio a que você se refere é também parte do desenvolvimento da narradora. O movimento do texto, em que ela vai de afrontosa a vulnerável, e ao fim encontra força em sua própria vulnerabilidade. Esse é o equilíbrio que estive procurando.

Retrato da escritora Katharina Volckmer, autora de 'A Consulta', comparadaa Philip Roth Foto: Fósforo

 

Como seu trabalho de agente literária interfere na sua escrita? Você se cobra muito ou os separa?

Tem sido, de muitas formas, um aprendizado sobre a indústria do livro, e agora sou uma daquelas autoras chatas que sabem demais. Mas sou grata por conseguir fazer ambos, porque muitos artistas publicam sem saber o bastante sobre indústria com a qual precisam lidar como parte do trabalho. E não acho difícil separar ambos – me acostumei a escrever durante o horário de almoço.

A Consulta foi comparado a O Complexo de Portnoy, de Philip Roth. Quais foram suas referências durante o processo de escrita? Você tentou escapar de algum tipo de escrita ou só deixou fluir?

Me inspiro em muitas coisas, na música e nas artes visuais (se não mais) tanto quanto na literatura. Sempre me interessei por trabalhar com diferentes mídias e formatos de arte, e também, é claro, me inspiro nas diferentes línguas que flutuam na minha cabeça. Elas estão todas presentes na minha escrita, mesmo que eu escreva em inglês. Não acho, no entanto, que escrever seja uma forma de escapismo, é mais o ato de construir algo para poder dar conta do mundo. Porém, para mim, escrever não é uma forma de escape, é um ato de construir algo de modo a ser capaz de lidar com o mundo. Minhas referências artísticas vão de qualquer coisa entre Gustav Mahler a Ingeborg Bachmann, a George Michael e Tracey Emin. Estou sempre tentando estar aberta para o mundo e absorver o máximo possível. No fim das contas, um artista nada mais é do que um filtro pelo qual o mundo passa.

Há uma entrevista em que você diz pensar que “algumas coisas se tornaram “inutilmente binárias”. O corpo e suas políticas são um dos temas principais de A Consulta. Como você pensou nele enquanto escrevia?

Sempre começo pelo corpo quando escrevo. Para mim é o primeiro ponto de referência da nossa realidade, algo de que nunca podemos escapar e que devemos sempre levar em consideração. O que me interessava nesse livro era pensar os corpos em conexão com a nacionalidade. O que significa ter nascido em um corpo que pertence a certa nacionalidade, e o que isso significa se quisermos tentar mudar isso? Romper com o que nascemos. É um livro sobre identidade e o que acontece se questionarmos as normas de gênero existentes. Também é um livro sobre o grande sentimento de libertação que experimentei quando parei de separar o mundo entre masculino e feminino. É, em muitos aspectos, um livro sobre as alegrias da libertação.

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