Três autores discutem a natureza e a curiosidade humana


Livros do filósofo Feyerabend, do astrofísico Mario Livio e do professor Pedro Paulo Pimenta analisam duas obsessões da filosofia moderna

Por Martim Vasques da Cunha

Em 1632, o holandês Rembrandt Van Rjin pintou o quadro A Lição de Anatomia do Dr. Tulp. Ele dramatizou o momento verídico no qual o doutor do título mostrava, aos seus companheiros de profissão, o que acontecia com os nervos expostos de uma mão do meliante Aris Kindt. Naquela época, a dissecação pública do corpo humano era semelhante à descoberta de que havia um mecanismo extremamente preciso dentro de nós. Não à toa que, diz a lenda – divulgada por W.G. Sebald em Os Anéis de Saturno –, ninguém menos que René Descartes passeava naquele mesmo dia da autópsia de Kindt nos arredores de Waagebouw, o bairro onde ocorria este grande evento na alta sociedade holandesa.

'A Lição de Anatomia do Dr. Tulp', de Rembrandt: o natural e o curioso Foto: Mauritshuis/Haia

O quadro de Rembrandt é magistral não só por sua qualidade plástica, mas também pela reflexão que nos obriga a fazer sobre duas obsessões na história da filosofia moderna – o da natureza como um enigma a ser decifrado e o da curiosidade como motivo que incita a sua pesquisa sistemática. São também os assuntos de três livros lançados no Brasil e nos EUA: A Trama da Natureza – Organismo e Finalidade na Época da Ilustração, do professor Pedro Paulo Pimenta (Unesp); Philosophy of Nature, do filósofo e cientista austríaco Paul Feyerabend (Polity Press); e Por Quê? – O que nos Torna Curiosos, do astrofísico israelense (naturalizado americano) Mario Livio (Record).

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Em A Trama da Natureza, Pedro Paulo Pimenta faz um tratado meticuloso de como a Biologia moderna e a Filosofia iluminista (tanto a inglesa como a francesa) convergiram no estudo do organismo que, pouco a pouco, foi decomposto igual a uma máquina, dissecado pela razão humana e, ao ser articulado em escritos, foi distorcido pelas figuras retóricas de linguagem, em especial a analogia. Parece complicado, e é mesmo. Mas Pimenta faz isso com tal seriedade de rigor analítico e com tamanha abrangência na pesquisa bibliográfica que a sua explicação histórica torna-se evidente para quem quiser acompanhá-la.

Graças a um estilo elegante e cristalino, ele mostra ao leitor como essa convergência foi desenvolvida sem cair na tentação de ser um sistema fechado, algo que sempre foi um perigo no Iluminismo, de Diderot a Kant, passando por Adam Smith. Assim, vemos um drama das ideias que ainda tem sérias consequências no nosso cotidiano, como prova o impacto destas teorias nas descobertas revolucionárias de Charles Darwin ou na atual Economia Política, cujo “modelo conceitual nascente” foi tomado da Biologia, no qual “o sistema das relações econômicas é concebido tal como uma máquina que se regula a si mesma e adapta-se às circunstâncias”.

Segundo Pimenta, o que dá unidade a toda essa variedade de experimentos é a imaginação conceitual de cada filósofo ou cientista, possuídos pela certeza de que há um padrão na natureza – uma “trama” que teria ou não um fim externo (o telos aristotélico) e que explicaria o seu sentido aparentemente caótico. 

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Ora, para Paul Feyerabend isto era justamente o problema de toda a ciência moderna, como deixa claro em sua instigante obra, em especial no póstumo Philosophy of Nature (Filosofia da Natureza). Este livro é um documento de pesquisa que anteciparia as polêmicas explícitas do seu livro mais famoso, Contra o Método (1975), cujo “anarquismo epistemológico” nunca foi o produto de um provocateur – como alguns tentaram catalogar Feyerabend após sua morte –, e sim o resultado de anos de estudo e de prática, exclusivamente científicas, sobre dois assuntos que preocupavam o austríaco, considerado um scholar entre seus pares (foi orientando de ninguém menos que Karl Popper na juventude). O primeiro tópico era a respeito do processo de descoberta na pesquisa e o segundo era sobre a forma como ele é articulado em palavras, ambos culminando no conflito que entre epistemologia e hermenêutica, sem o intermédio da retórica e da abstração conceitual (por coincidência, a tensão descrita em A Trama da Natureza).

A procura de Feyerabend era por um método que não devia ser petrificado em uma perspectiva excessivamente racionalista, pois, se esta fosse aplicada em qualquer descoberta histórica, nunca teria sido bem-sucedida (o que de fato aconteceu no decorrer da Revolução Científica). Jamais foi um ataque contra o método da ciência, mas sim ao que o racionalismo, defendido por cientistas e intelectuais como uma visão de mundo que mantinha seus privilégios, fez contra a metodologia apropriada para realizar a verdadeira descoberta científica. Aqui, o racionalismo criticado pelo austríaco é similar ao diagnóstico feito pelo britânico Michael Oakeshott, uma vez que não se trata apenas dos resultados de um Descartes ou um Hume, mas de toda uma fé religiosa que dominou a maioria da opinião na sociedade democrática.

Contudo, este tipo de racionalismo não é apenas um problema filosófico, mas sobretudo ético, que ataca diretamente o cotidiano do ser humano concreto. Feyerabend percebe que o artifício de uma retórica não atinge somente o ambiente científico – ou a Ciência como território isolado em uma “comunidade de estudiosos”. Este mesmo artifício tem efeitos duradouros para o próprio funcionamento da democracia, no que o austríaco, inspirado em Michael Polanyi, chamava de “sociedade livre”. O que ele anteviu, com rara agudeza de espírito, foi que essa “comunidade” concentrou cada vez mais, entre seus membros, o poder do conhecimento científico, apresentando-o não como uma autêntica experiência científica – repleta do caos, confusão e desordem que, de alguma forma inexplicável, acabam por provocar uma mudança efetiva no nosso modo de ver a natureza –, e sim como uma falsificação da ciência, depois ampliada para as instituições de pesquisa, as universidades, o público leigo e, por fim, as organizações governamentais.

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Infelizmente, temos este tipo de atitude no livro do astrofísico Mario Livio, Por quê? – O que nos Torna Curiosos. A partir dos modelos de dois personagens célebres por sua curiosidade – o artista renascentista Leonardo Da Vinci e o cientista norte-americano Richard Feynman –, o pesquisador quer descobrir as origens desse sentimento que nos instiga a ser impacientes, intransigentes e instáveis. Porém, o resultado da sua busca é pífio, apelando indiscriminadamente para outros dois fenômenos que infectam a nossa vida social, catalogados pelo cientista inglês Raymond Tallis como “darwinite” e “neuropornô”. Juntos, formam a crença de que o ser humano pode ser reduzido ao processo da evolução social, unido à tediosa necessidade de achar que o fundamento de toda e qualquer curiosidade é mensurado no registro mecânico das ondas cerebrais. Como se não bastasse, Livio ainda acredita que a Idade Média foi uma “época de trevas” no conhecimento – o que é uma afirmação bem patética para um importante cientista da “comunidade de estudiosos”, principalmente porque confunde a curiosidade como concupiscência (algo duramente criticado por Santo Agostinho e John Milton) com a curiosidade como a alegria de buscar a ordem do cosmos graças ao espanto filosófico (thaumazein) que Aristóteles afirmava ser, em sua Metafísica, uma das características mais nobres da humanidade.

É este espanto que vemos nas expressões dos doutores que examinam o cadáver do ladrão Aris Kindt no quadro de Rembrandt. Mas há um detalhe que poucos repararam, exceto W.G. Sebald no seu romance já citado. Trata-se do fato da mão exibida pelo Dr. Tulp estar “gritantemente invertida do ponto de vista anatômico”, pois “os tendões expostos” deveriam “ser os das costas da mão esquerda”, mas são “os das costas da direita”. Além disso, “os olhares dos colegas do dr. Tulp não se dirigem para aquele corpo como tal, mas, por fração de milímetros, passam além dele fixando o atlas anatômico aberto, em que a horrenda corporalidade é reduzida a um diagrama, um esquema de ser humano”.

Como todo gênio, Rembrandt não fez isso por acaso. Ele antecipou o minucioso drama do organismo transformado em máquina, dissecado no impecável livro de Pedro Paulo Pimenta, iluminou a tensão entre a razão e a realidade que marcou a vida do genial Paul Feyerabend, e deu-nos uma brilhante metáfora dos equívocos do especialista Mario Lívio. E tal como uma imagem que vale por mil palavras, o que o grande pintor holandês também nos ensinou é que, felizmente, o enigma da natureza jamais será solucionado pelo nosso conhecimento tão precário – e, sem dúvida, tão frágil.

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* Martim Vasques da Cunha é autor de 'Crise e Utopia - O Dilema de Thomas More' (Vide Editorial, 2012)

Em 1632, o holandês Rembrandt Van Rjin pintou o quadro A Lição de Anatomia do Dr. Tulp. Ele dramatizou o momento verídico no qual o doutor do título mostrava, aos seus companheiros de profissão, o que acontecia com os nervos expostos de uma mão do meliante Aris Kindt. Naquela época, a dissecação pública do corpo humano era semelhante à descoberta de que havia um mecanismo extremamente preciso dentro de nós. Não à toa que, diz a lenda – divulgada por W.G. Sebald em Os Anéis de Saturno –, ninguém menos que René Descartes passeava naquele mesmo dia da autópsia de Kindt nos arredores de Waagebouw, o bairro onde ocorria este grande evento na alta sociedade holandesa.

'A Lição de Anatomia do Dr. Tulp', de Rembrandt: o natural e o curioso Foto: Mauritshuis/Haia

O quadro de Rembrandt é magistral não só por sua qualidade plástica, mas também pela reflexão que nos obriga a fazer sobre duas obsessões na história da filosofia moderna – o da natureza como um enigma a ser decifrado e o da curiosidade como motivo que incita a sua pesquisa sistemática. São também os assuntos de três livros lançados no Brasil e nos EUA: A Trama da Natureza – Organismo e Finalidade na Época da Ilustração, do professor Pedro Paulo Pimenta (Unesp); Philosophy of Nature, do filósofo e cientista austríaco Paul Feyerabend (Polity Press); e Por Quê? – O que nos Torna Curiosos, do astrofísico israelense (naturalizado americano) Mario Livio (Record).

Em A Trama da Natureza, Pedro Paulo Pimenta faz um tratado meticuloso de como a Biologia moderna e a Filosofia iluminista (tanto a inglesa como a francesa) convergiram no estudo do organismo que, pouco a pouco, foi decomposto igual a uma máquina, dissecado pela razão humana e, ao ser articulado em escritos, foi distorcido pelas figuras retóricas de linguagem, em especial a analogia. Parece complicado, e é mesmo. Mas Pimenta faz isso com tal seriedade de rigor analítico e com tamanha abrangência na pesquisa bibliográfica que a sua explicação histórica torna-se evidente para quem quiser acompanhá-la.

Graças a um estilo elegante e cristalino, ele mostra ao leitor como essa convergência foi desenvolvida sem cair na tentação de ser um sistema fechado, algo que sempre foi um perigo no Iluminismo, de Diderot a Kant, passando por Adam Smith. Assim, vemos um drama das ideias que ainda tem sérias consequências no nosso cotidiano, como prova o impacto destas teorias nas descobertas revolucionárias de Charles Darwin ou na atual Economia Política, cujo “modelo conceitual nascente” foi tomado da Biologia, no qual “o sistema das relações econômicas é concebido tal como uma máquina que se regula a si mesma e adapta-se às circunstâncias”.

Segundo Pimenta, o que dá unidade a toda essa variedade de experimentos é a imaginação conceitual de cada filósofo ou cientista, possuídos pela certeza de que há um padrão na natureza – uma “trama” que teria ou não um fim externo (o telos aristotélico) e que explicaria o seu sentido aparentemente caótico. 

Ora, para Paul Feyerabend isto era justamente o problema de toda a ciência moderna, como deixa claro em sua instigante obra, em especial no póstumo Philosophy of Nature (Filosofia da Natureza). Este livro é um documento de pesquisa que anteciparia as polêmicas explícitas do seu livro mais famoso, Contra o Método (1975), cujo “anarquismo epistemológico” nunca foi o produto de um provocateur – como alguns tentaram catalogar Feyerabend após sua morte –, e sim o resultado de anos de estudo e de prática, exclusivamente científicas, sobre dois assuntos que preocupavam o austríaco, considerado um scholar entre seus pares (foi orientando de ninguém menos que Karl Popper na juventude). O primeiro tópico era a respeito do processo de descoberta na pesquisa e o segundo era sobre a forma como ele é articulado em palavras, ambos culminando no conflito que entre epistemologia e hermenêutica, sem o intermédio da retórica e da abstração conceitual (por coincidência, a tensão descrita em A Trama da Natureza).

A procura de Feyerabend era por um método que não devia ser petrificado em uma perspectiva excessivamente racionalista, pois, se esta fosse aplicada em qualquer descoberta histórica, nunca teria sido bem-sucedida (o que de fato aconteceu no decorrer da Revolução Científica). Jamais foi um ataque contra o método da ciência, mas sim ao que o racionalismo, defendido por cientistas e intelectuais como uma visão de mundo que mantinha seus privilégios, fez contra a metodologia apropriada para realizar a verdadeira descoberta científica. Aqui, o racionalismo criticado pelo austríaco é similar ao diagnóstico feito pelo britânico Michael Oakeshott, uma vez que não se trata apenas dos resultados de um Descartes ou um Hume, mas de toda uma fé religiosa que dominou a maioria da opinião na sociedade democrática.

Contudo, este tipo de racionalismo não é apenas um problema filosófico, mas sobretudo ético, que ataca diretamente o cotidiano do ser humano concreto. Feyerabend percebe que o artifício de uma retórica não atinge somente o ambiente científico – ou a Ciência como território isolado em uma “comunidade de estudiosos”. Este mesmo artifício tem efeitos duradouros para o próprio funcionamento da democracia, no que o austríaco, inspirado em Michael Polanyi, chamava de “sociedade livre”. O que ele anteviu, com rara agudeza de espírito, foi que essa “comunidade” concentrou cada vez mais, entre seus membros, o poder do conhecimento científico, apresentando-o não como uma autêntica experiência científica – repleta do caos, confusão e desordem que, de alguma forma inexplicável, acabam por provocar uma mudança efetiva no nosso modo de ver a natureza –, e sim como uma falsificação da ciência, depois ampliada para as instituições de pesquisa, as universidades, o público leigo e, por fim, as organizações governamentais.

Infelizmente, temos este tipo de atitude no livro do astrofísico Mario Livio, Por quê? – O que nos Torna Curiosos. A partir dos modelos de dois personagens célebres por sua curiosidade – o artista renascentista Leonardo Da Vinci e o cientista norte-americano Richard Feynman –, o pesquisador quer descobrir as origens desse sentimento que nos instiga a ser impacientes, intransigentes e instáveis. Porém, o resultado da sua busca é pífio, apelando indiscriminadamente para outros dois fenômenos que infectam a nossa vida social, catalogados pelo cientista inglês Raymond Tallis como “darwinite” e “neuropornô”. Juntos, formam a crença de que o ser humano pode ser reduzido ao processo da evolução social, unido à tediosa necessidade de achar que o fundamento de toda e qualquer curiosidade é mensurado no registro mecânico das ondas cerebrais. Como se não bastasse, Livio ainda acredita que a Idade Média foi uma “época de trevas” no conhecimento – o que é uma afirmação bem patética para um importante cientista da “comunidade de estudiosos”, principalmente porque confunde a curiosidade como concupiscência (algo duramente criticado por Santo Agostinho e John Milton) com a curiosidade como a alegria de buscar a ordem do cosmos graças ao espanto filosófico (thaumazein) que Aristóteles afirmava ser, em sua Metafísica, uma das características mais nobres da humanidade.

É este espanto que vemos nas expressões dos doutores que examinam o cadáver do ladrão Aris Kindt no quadro de Rembrandt. Mas há um detalhe que poucos repararam, exceto W.G. Sebald no seu romance já citado. Trata-se do fato da mão exibida pelo Dr. Tulp estar “gritantemente invertida do ponto de vista anatômico”, pois “os tendões expostos” deveriam “ser os das costas da mão esquerda”, mas são “os das costas da direita”. Além disso, “os olhares dos colegas do dr. Tulp não se dirigem para aquele corpo como tal, mas, por fração de milímetros, passam além dele fixando o atlas anatômico aberto, em que a horrenda corporalidade é reduzida a um diagrama, um esquema de ser humano”.

Como todo gênio, Rembrandt não fez isso por acaso. Ele antecipou o minucioso drama do organismo transformado em máquina, dissecado no impecável livro de Pedro Paulo Pimenta, iluminou a tensão entre a razão e a realidade que marcou a vida do genial Paul Feyerabend, e deu-nos uma brilhante metáfora dos equívocos do especialista Mario Lívio. E tal como uma imagem que vale por mil palavras, o que o grande pintor holandês também nos ensinou é que, felizmente, o enigma da natureza jamais será solucionado pelo nosso conhecimento tão precário – e, sem dúvida, tão frágil.

* Martim Vasques da Cunha é autor de 'Crise e Utopia - O Dilema de Thomas More' (Vide Editorial, 2012)

Em 1632, o holandês Rembrandt Van Rjin pintou o quadro A Lição de Anatomia do Dr. Tulp. Ele dramatizou o momento verídico no qual o doutor do título mostrava, aos seus companheiros de profissão, o que acontecia com os nervos expostos de uma mão do meliante Aris Kindt. Naquela época, a dissecação pública do corpo humano era semelhante à descoberta de que havia um mecanismo extremamente preciso dentro de nós. Não à toa que, diz a lenda – divulgada por W.G. Sebald em Os Anéis de Saturno –, ninguém menos que René Descartes passeava naquele mesmo dia da autópsia de Kindt nos arredores de Waagebouw, o bairro onde ocorria este grande evento na alta sociedade holandesa.

'A Lição de Anatomia do Dr. Tulp', de Rembrandt: o natural e o curioso Foto: Mauritshuis/Haia

O quadro de Rembrandt é magistral não só por sua qualidade plástica, mas também pela reflexão que nos obriga a fazer sobre duas obsessões na história da filosofia moderna – o da natureza como um enigma a ser decifrado e o da curiosidade como motivo que incita a sua pesquisa sistemática. São também os assuntos de três livros lançados no Brasil e nos EUA: A Trama da Natureza – Organismo e Finalidade na Época da Ilustração, do professor Pedro Paulo Pimenta (Unesp); Philosophy of Nature, do filósofo e cientista austríaco Paul Feyerabend (Polity Press); e Por Quê? – O que nos Torna Curiosos, do astrofísico israelense (naturalizado americano) Mario Livio (Record).

Em A Trama da Natureza, Pedro Paulo Pimenta faz um tratado meticuloso de como a Biologia moderna e a Filosofia iluminista (tanto a inglesa como a francesa) convergiram no estudo do organismo que, pouco a pouco, foi decomposto igual a uma máquina, dissecado pela razão humana e, ao ser articulado em escritos, foi distorcido pelas figuras retóricas de linguagem, em especial a analogia. Parece complicado, e é mesmo. Mas Pimenta faz isso com tal seriedade de rigor analítico e com tamanha abrangência na pesquisa bibliográfica que a sua explicação histórica torna-se evidente para quem quiser acompanhá-la.

Graças a um estilo elegante e cristalino, ele mostra ao leitor como essa convergência foi desenvolvida sem cair na tentação de ser um sistema fechado, algo que sempre foi um perigo no Iluminismo, de Diderot a Kant, passando por Adam Smith. Assim, vemos um drama das ideias que ainda tem sérias consequências no nosso cotidiano, como prova o impacto destas teorias nas descobertas revolucionárias de Charles Darwin ou na atual Economia Política, cujo “modelo conceitual nascente” foi tomado da Biologia, no qual “o sistema das relações econômicas é concebido tal como uma máquina que se regula a si mesma e adapta-se às circunstâncias”.

Segundo Pimenta, o que dá unidade a toda essa variedade de experimentos é a imaginação conceitual de cada filósofo ou cientista, possuídos pela certeza de que há um padrão na natureza – uma “trama” que teria ou não um fim externo (o telos aristotélico) e que explicaria o seu sentido aparentemente caótico. 

Ora, para Paul Feyerabend isto era justamente o problema de toda a ciência moderna, como deixa claro em sua instigante obra, em especial no póstumo Philosophy of Nature (Filosofia da Natureza). Este livro é um documento de pesquisa que anteciparia as polêmicas explícitas do seu livro mais famoso, Contra o Método (1975), cujo “anarquismo epistemológico” nunca foi o produto de um provocateur – como alguns tentaram catalogar Feyerabend após sua morte –, e sim o resultado de anos de estudo e de prática, exclusivamente científicas, sobre dois assuntos que preocupavam o austríaco, considerado um scholar entre seus pares (foi orientando de ninguém menos que Karl Popper na juventude). O primeiro tópico era a respeito do processo de descoberta na pesquisa e o segundo era sobre a forma como ele é articulado em palavras, ambos culminando no conflito que entre epistemologia e hermenêutica, sem o intermédio da retórica e da abstração conceitual (por coincidência, a tensão descrita em A Trama da Natureza).

A procura de Feyerabend era por um método que não devia ser petrificado em uma perspectiva excessivamente racionalista, pois, se esta fosse aplicada em qualquer descoberta histórica, nunca teria sido bem-sucedida (o que de fato aconteceu no decorrer da Revolução Científica). Jamais foi um ataque contra o método da ciência, mas sim ao que o racionalismo, defendido por cientistas e intelectuais como uma visão de mundo que mantinha seus privilégios, fez contra a metodologia apropriada para realizar a verdadeira descoberta científica. Aqui, o racionalismo criticado pelo austríaco é similar ao diagnóstico feito pelo britânico Michael Oakeshott, uma vez que não se trata apenas dos resultados de um Descartes ou um Hume, mas de toda uma fé religiosa que dominou a maioria da opinião na sociedade democrática.

Contudo, este tipo de racionalismo não é apenas um problema filosófico, mas sobretudo ético, que ataca diretamente o cotidiano do ser humano concreto. Feyerabend percebe que o artifício de uma retórica não atinge somente o ambiente científico – ou a Ciência como território isolado em uma “comunidade de estudiosos”. Este mesmo artifício tem efeitos duradouros para o próprio funcionamento da democracia, no que o austríaco, inspirado em Michael Polanyi, chamava de “sociedade livre”. O que ele anteviu, com rara agudeza de espírito, foi que essa “comunidade” concentrou cada vez mais, entre seus membros, o poder do conhecimento científico, apresentando-o não como uma autêntica experiência científica – repleta do caos, confusão e desordem que, de alguma forma inexplicável, acabam por provocar uma mudança efetiva no nosso modo de ver a natureza –, e sim como uma falsificação da ciência, depois ampliada para as instituições de pesquisa, as universidades, o público leigo e, por fim, as organizações governamentais.

Infelizmente, temos este tipo de atitude no livro do astrofísico Mario Livio, Por quê? – O que nos Torna Curiosos. A partir dos modelos de dois personagens célebres por sua curiosidade – o artista renascentista Leonardo Da Vinci e o cientista norte-americano Richard Feynman –, o pesquisador quer descobrir as origens desse sentimento que nos instiga a ser impacientes, intransigentes e instáveis. Porém, o resultado da sua busca é pífio, apelando indiscriminadamente para outros dois fenômenos que infectam a nossa vida social, catalogados pelo cientista inglês Raymond Tallis como “darwinite” e “neuropornô”. Juntos, formam a crença de que o ser humano pode ser reduzido ao processo da evolução social, unido à tediosa necessidade de achar que o fundamento de toda e qualquer curiosidade é mensurado no registro mecânico das ondas cerebrais. Como se não bastasse, Livio ainda acredita que a Idade Média foi uma “época de trevas” no conhecimento – o que é uma afirmação bem patética para um importante cientista da “comunidade de estudiosos”, principalmente porque confunde a curiosidade como concupiscência (algo duramente criticado por Santo Agostinho e John Milton) com a curiosidade como a alegria de buscar a ordem do cosmos graças ao espanto filosófico (thaumazein) que Aristóteles afirmava ser, em sua Metafísica, uma das características mais nobres da humanidade.

É este espanto que vemos nas expressões dos doutores que examinam o cadáver do ladrão Aris Kindt no quadro de Rembrandt. Mas há um detalhe que poucos repararam, exceto W.G. Sebald no seu romance já citado. Trata-se do fato da mão exibida pelo Dr. Tulp estar “gritantemente invertida do ponto de vista anatômico”, pois “os tendões expostos” deveriam “ser os das costas da mão esquerda”, mas são “os das costas da direita”. Além disso, “os olhares dos colegas do dr. Tulp não se dirigem para aquele corpo como tal, mas, por fração de milímetros, passam além dele fixando o atlas anatômico aberto, em que a horrenda corporalidade é reduzida a um diagrama, um esquema de ser humano”.

Como todo gênio, Rembrandt não fez isso por acaso. Ele antecipou o minucioso drama do organismo transformado em máquina, dissecado no impecável livro de Pedro Paulo Pimenta, iluminou a tensão entre a razão e a realidade que marcou a vida do genial Paul Feyerabend, e deu-nos uma brilhante metáfora dos equívocos do especialista Mario Lívio. E tal como uma imagem que vale por mil palavras, o que o grande pintor holandês também nos ensinou é que, felizmente, o enigma da natureza jamais será solucionado pelo nosso conhecimento tão precário – e, sem dúvida, tão frágil.

* Martim Vasques da Cunha é autor de 'Crise e Utopia - O Dilema de Thomas More' (Vide Editorial, 2012)

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