A proximidade da morte fez com que o polêmico escritor inglês Christopher Hitchens (1949-2011) reexaminasse um princípio que guiou boa parte de sua vida, baseado num dito atribuído ao filósofo alemão Friedrich Nietzsche (e por vezes a Goethe): Was mich nicht umbringt macht mich stärker (O que não me mata me fortalece). Como, então, poderia Hitchens ainda acreditar nisso após uma sessão de quimioterapia, ele que disse a seus leitores, ao descobrir um câncer no esôfago, em 2010, que desejaria ver a morte com uma lupa, consciente e desperto até o fim para estar frente a frente com a "indesejável das gentes"? Hitchens, obviamente, sucumbiu - como todos, aliás. Lembrou do poeta Kingsley Amis, pai de seu amigo Martin Amis, quando chegou sua hora e ele disse para Philip, irmão de Martin: "Mate-me, seu maldito idiota".
O filho não obedeceu. Kingsley, vítima de um derrame, teve de esperar passivamente pelo fim. Hitchens, idem. Antes, fez sua última provocação, citando uma frase de Alan Lightman (de seu romance Sonhos de Einstein, 1933) no oitavo, último e incompleto capítulo de seu derradeiro livro, Últimas Palavras, que chega às livrarias dia 15: "Os filhos nunca escapam das sombras dos pais. Nenhuma pessoa é completa. Nenhuma pessoa é livre."
Nem mesmo Hitchens, que descartou a santidade de madre Teresa de Calcutá - classificada por ele como uma fundamentalista representante do lado mais reacionário da Igreja -, ou disse que Deus não era grande, conseguiu ter forças suficientes para imprecar contra a presença da morte em seu leito de hospital. E é dessa impotência que trata Últimas Palavras. Seus detratores ficaram contentes com a rendição. Houve até uns perversos que colocaram mensagens na internet desejando que o câncer chegasse à boca de Hitchens para o manter calado e levá-lo ao inferno.
Hitchens pergunta, no livro, que tipo de "primata desgraçado" é esse que deseja expor na internet seus pontos de vista para atingir seus filhos inocentes - passando, como o pai, por maus momentos. Se alguém sustenta que Deus concede cânceres sob medida, escreveu Hitchens, então deve estar preparado para ter um filho com leucemia. Esses infortúnios nada têm a ver com Deus. São "medonhamente aleatórios", não uma "punição" contra as "blasfêmias" de Hitchens - mais desabafos contra a intolerância de fundamentalistas do que raiva contra a divindade.
O homem que cunhou a expressão "fascismo com face islâmica" para se referir a fanáticos muçulmanos que derrubaram as torres gêmeas em setembro de 2001, defendeu a Guerra do Iraque e a política intervencionista do presidente Bush no Afeganistão, tinha uma única certeza moral: não foi Deus quem criou o homem, mas o contrário. É o que defende em Deus Não É Grande, seu mais notável best-seller. Pode-se até discordar dele, mas é impossível não levar em consideração seus argumentos, defendidos com tal paixão que fez Gore Vidal nomear Hitchens seu sucessor. Este, contrário à tese conspiratória de Gore, que associou os ataques terroristas a um acordo com Bush para intervir no Iraque, declinou da coroa de herdeiro e investiu contra Vidal num artigo debochado da revista Vanity Fair, para a qual escreveu seu diário de morte agora publicado.
Em Hitch 22 (Nova Fronteira), autobiografia nada precoce, publicada há dois anos, Hitchens não se vê como um sucessor de Vidal, mas um seguidor da herança intelectual de George Orwell, a quem dedicou o livro A Vitória de Orwell, publicado em 2010 pela Companhia das Letras. É certo que o volume esbarra numa hagiografia do autor de 1984 e A Revolução dos Bichos, tratando-o como um pós-colonialista libertário e engajado em defesa dos humilhados e ofendidos. Como Hitchens decepcionou seus amigos de esquerda ao defender a Guerra do Iraque, ele se viu, de alguma forma, espelhado no drama de Orwell, que dedurou 84 militantes comunistas durante a Guerra Fria, ele que defendeu a ira dos militantes contra o colonialismo inglês (Dias na Birmânia) e denunciou a condição de vida dos mineiros de Lancashire (em Wigan Pier).
A desilusão de Hitchens com o comunismo começou bem antes, ao visitar Cuba, em 1968, e confrontar um cineasta do regime. O inglês, questionando como podia o cinema ser livre e ao mesmo tempo bater continência para o comandante Castro, recebeu uma cara feia de resposta e foi chamado de contra-revolucionário. Foi seu primeiro atrito com a esquerda. E Hitchens tinha apenas 19 anos, como conta em Hitch 22. Sua independência ideológica pode ser igualmente atestada em O Julgamento de Kissinger (2002, Boitempo Editorial), que acusa o ex-secretário de Estado de Nixon de ser cúmplice de milhares de assassinatos de civis na Guerra do Vietnã, sugerindo que ele, como encarregado de supervisionar as ações militares dos EUA, deveria ser julgado como o ex-presidente Milosevic pela Corte Internacional de Haia.
Menos centrado em sua atividade intelectual, Últimas Palavras não deixa, porém, de revelar a angústia de Hitchens ao ouvir sua voz de barítono transformada num agudo guincho infantil - ou talvez suíno, como diz - quando o câncer se tornou mais agressivo. Hitchens sempre teve orgulho dela. Era com a voz (que lembrava a de Richard Burton) que conquistava o público em debates com outras figuras públicas - por exemplo, como o ator Charlton Heston, representante da direita americana, que sucumbiu logo à primeira pergunta de Hitchens, uma bem simples: que países fazem fronteira com o Iraque? Heston foi reprovado no quiz show. Hitchens, amigo de Salman Rushdie, Ian McEwan e Martin Amis, só não suportava mesmo uma coisa: a arrogância dos ignorantes, que parece crescer a cada dia.
ÚLTIMAS PALAVRASAutor: Christopher HitchensTradução: Alexandre MartinsEditora: Globo(96 páginas, R$ 24,90; nas
livrarias a partir do dia 15)