Um homem de teatro


‘Teatro não é a vida’, dizia Joan Ollé, ‘embora se assemelhe a ela em sua percepção e pureza’

Por Mario Vargas Llosa

Conheci Joan Ollé graças a Juan Cruz, há 20 anos, na minha casa em Madri. Eu acabara de estar em Turim, dando aulas na escola de contadores de histórias que o escritor italiano Alessandro Baricco tinha naquela cidade, e me entusiasmara com uma produção teatral desse autor, que, acompanhado de uma atriz, contava histórias atuais, conversando em um palco. Algo assim não poderia ser feito com clássicos espanhóis e latino-americanos nos teatros da Espanha?

O diretor espanhol de teatro Joan Ollé: para ele, teatro e rádio tinham uma ligação a ser descoberta. Foto: Arquivo ACN

Sem me consultar, Juan Cruz havia inspirado a Câmara Municipal de Barcelona com esse projeto, obtendo seu apoio e financiamento. Joan Ollé, em boa hora, foi o diretor escolhido por essa instituição, e ele aceitou, acompanhado por uma excelente atriz, Aitana Sánchez Gijón, que eu havia escolhido para o projeto por sua esplêndida atuação, que acabara de ver no Teatro Espanhol, em Gata em Teto de Zinco Quente, de Tennessee Williams, motivo pelo qual estavam lá. Quem diria que esses três se tornariam amigos íntimos.

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Expliquei meu projeto para eles, disse que escreveria os roteiros e leria alguns para eles. “São sensacionais”, disse-me Joan Ollé ao ouvi-los. “Por que não tenta contá-los, antes, sem escrevê-los?” Assim o fiz, e assim nasceu A Verdade das Mentiras, que durante alguns anos consumiu todo o meu tempo e trabalho dramático.

Joan Ollé era um homem cheio de ideias, referindo-se quase exclusivamente ao teatro. “O teatro não é a vida” - costumava dizer -, “embora se assemelhe a ela em sua percepção e pureza, proporcionada em todas as línguas do mundo”. As mil e uma aventuras podem ser expressas ali, como fizeram os grandes autores, principalmente os clássicos. A atuação dos atores serve às obras, mas não faz uso delas. Não há outra maneira de servir ao teatro que não sendo humilde e esforçado. O teatro não tem nada a ver com o cinema ou com os musicais, essas bajulações que o desfiguram e pervertem, mas com o próprio teatro. Portanto, é preciso ler as peças clássicas e aprender com elas o essencial do teatro.

Tudo está lá, concentrado, e nosso dever é descobri-lo. As ideias chegam no texto e devem ser defendidas com paixão, em sua totalidade, porque a melhor montagem será aquela que for mais fiel a esses textos. É interessante que um dos autores mais famosos por suas brincadeiras fosse tão fiel aos textos clássicos.

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Morreu aos 66 anos, de um enfarte do miocárdio que o surpreendeu em casa, cercado pela mulher e pelo filho, e por Esther, que havia sido sua assistente em várias produções.

Ele era muito exigente com seus atores em cada montagem, pois trabalhava muito em todas elas, e lembro, por exemplo, que em uma versão dos contos de Boccaccio ele fez uma viagem a Florença, preparando-se, consultou os originais e muita bibliografia, e voltou animado para nos dizer: “Já consegui”. Sempre conseguia, e da mesma forma, viajando para os lugares que inspiraram aquelas obras, consultando os livros e o ambiente, vendo as paisagens e mergulhando nelas. O fim de tudo sempre começou no começo. Ele refazia desde os primeiros passos as obras que dirigia.

Também tinha feito programas de rádio com Joan Barril, que admirava e respeitava, e acreditava que o teatro e o rádio tinham uma ligação secreta que tinha de ser descoberta, cada vez mais através do trabalho. Ele e Joan Barril ganharam um prêmio de televisão em 2005. É curioso, e uma das suas grandes contradições, que este homem do teatro, tão respeitoso com os clássicos, fosse, ao mesmo tempo, um entusiasta do rádio. Não da televisão e do cinema.

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Ele era muito perfeccionista e não deixava nada ao acaso. Ele se reunia com os atores separadamente e dava conselhos que eram ordens. Era preciso encobrir a voz, para que soasse natural, como alguém falando com um amigo ou conhecido, e outras vezes, ao contrário, levantá-la e falar como alguém discursando em praça pública diante de milhares de pessoas. Aquele disfarce ou exibicionismo frenético era o que ele procurava para acentuar uma personalidade ou reduzi-la ao invisível.

Cada instrução era uma aula a ser retida porque tudo nela era significativo, uma versão que se aproximava de sua obsessão pela montagem perfeita. Era preciso vê-lo e ouvi-lo nos jantares, nos quais, depois de beber um uísque, ele se lembrava dos grandes espetáculos que tinha visto e que nem sempre eram os que o grande público entronizava, mas os que ele próprio valorizava, devido às afinidades que surgiam e que tinham a ver com aquele amor ao teatro que ele professava acima de todas as coisas. Nunca conheci alguém que se identificasse tanto com sua profissão. Os defensores da independência catalã não o queriam e tenho a sensação de que o escândalo que o acompanhou nos últimos meses de sua vida estava relacionado à sua independência, essa atitude corajosa que sempre o fez depender de si mesmo acima ou abaixo das coisas às quais indiferentemente veio a servir. Também por sua independência e coragem, Joan Ollé era admirado por todos nós que o conhecíamos e passamos a amá-lo.

Como a todos os verdadeiros artistas, o azar o seguiu. Sua obra, reconhecida na juventude, não o acompanhou até o final, embora ele sempre fosse original e talentoso. Soube que, há alguns meses, foi alvo de uma denúncia na Academia de Teatro de Barcelona, na qual foi professor durante vários anos. Algumas estudantes o denunciaram por ter ido longe demais com elas e um jornal de Barcelona aproveitou esse pequeno escândalo para censurá-lo e pedir seu cancelamento.

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A instituição o aposentou por falta de provas. “Nesse país, a presunção de inocência não existe mais”, declarou. Mas esse escândalo o deixou muito amargurado e ele sempre pensou que seus advogados seriam capazes de combatê-lo e que seu nome seria limpo novamente. A morte o surpreendeu sem a resolução dos acontecimentos, Aitana Sánchez Gijón me informou dessa situação, banhada em lágrimas. Eu também me senti tão mal quanto ela com essa morte que veio antes daquela ação pela qual ele esperou com tanta impaciência. E sem que ela interrompesse seu trabalho, já que ele havia planejado, para esse retorno à vida teatral, muitas novas aventuras nas quais mostraria mais uma vez sua inteligência e multiplicidade. Ele esperava voltar a ser a celebridade que tinha sido na juventude, nos anos em que criou o Dagoll Dagom, que o tornou muito famoso. E ele era indiferente a sua idade, parecia condenado a ser eternamente jovem, até que a vida o levou.

A última vez que nos falamos, ao telefone, ele estava animado com um lugar que havia descoberto em sua Barcelona natal, que pretendia transformar em um local que atraísse jovens talentosos que compartilhassem seu amor pelo teatro. Ele tinha muitos projetos nesse sentido que, segundo me disse, seriam objeto de uma longa palestra, como as que tivemos muitas vezes em Madri. A vida não lhe permitiu realizá-la, mas os amigos que o acompanharam até o fim sabem que ela estava lá, prestes a ser proferida na próxima vez que nos encontrássemos, e com a mesma seriedade que ele sempre teve para comunicar seus projetos. Ele era um homem do teatro e sempre foi, até o fim. Caro Joan Ollé: descanse em paz.

Conheci Joan Ollé graças a Juan Cruz, há 20 anos, na minha casa em Madri. Eu acabara de estar em Turim, dando aulas na escola de contadores de histórias que o escritor italiano Alessandro Baricco tinha naquela cidade, e me entusiasmara com uma produção teatral desse autor, que, acompanhado de uma atriz, contava histórias atuais, conversando em um palco. Algo assim não poderia ser feito com clássicos espanhóis e latino-americanos nos teatros da Espanha?

O diretor espanhol de teatro Joan Ollé: para ele, teatro e rádio tinham uma ligação a ser descoberta. Foto: Arquivo ACN

Sem me consultar, Juan Cruz havia inspirado a Câmara Municipal de Barcelona com esse projeto, obtendo seu apoio e financiamento. Joan Ollé, em boa hora, foi o diretor escolhido por essa instituição, e ele aceitou, acompanhado por uma excelente atriz, Aitana Sánchez Gijón, que eu havia escolhido para o projeto por sua esplêndida atuação, que acabara de ver no Teatro Espanhol, em Gata em Teto de Zinco Quente, de Tennessee Williams, motivo pelo qual estavam lá. Quem diria que esses três se tornariam amigos íntimos.

Expliquei meu projeto para eles, disse que escreveria os roteiros e leria alguns para eles. “São sensacionais”, disse-me Joan Ollé ao ouvi-los. “Por que não tenta contá-los, antes, sem escrevê-los?” Assim o fiz, e assim nasceu A Verdade das Mentiras, que durante alguns anos consumiu todo o meu tempo e trabalho dramático.

Joan Ollé era um homem cheio de ideias, referindo-se quase exclusivamente ao teatro. “O teatro não é a vida” - costumava dizer -, “embora se assemelhe a ela em sua percepção e pureza, proporcionada em todas as línguas do mundo”. As mil e uma aventuras podem ser expressas ali, como fizeram os grandes autores, principalmente os clássicos. A atuação dos atores serve às obras, mas não faz uso delas. Não há outra maneira de servir ao teatro que não sendo humilde e esforçado. O teatro não tem nada a ver com o cinema ou com os musicais, essas bajulações que o desfiguram e pervertem, mas com o próprio teatro. Portanto, é preciso ler as peças clássicas e aprender com elas o essencial do teatro.

Tudo está lá, concentrado, e nosso dever é descobri-lo. As ideias chegam no texto e devem ser defendidas com paixão, em sua totalidade, porque a melhor montagem será aquela que for mais fiel a esses textos. É interessante que um dos autores mais famosos por suas brincadeiras fosse tão fiel aos textos clássicos.

Morreu aos 66 anos, de um enfarte do miocárdio que o surpreendeu em casa, cercado pela mulher e pelo filho, e por Esther, que havia sido sua assistente em várias produções.

Ele era muito exigente com seus atores em cada montagem, pois trabalhava muito em todas elas, e lembro, por exemplo, que em uma versão dos contos de Boccaccio ele fez uma viagem a Florença, preparando-se, consultou os originais e muita bibliografia, e voltou animado para nos dizer: “Já consegui”. Sempre conseguia, e da mesma forma, viajando para os lugares que inspiraram aquelas obras, consultando os livros e o ambiente, vendo as paisagens e mergulhando nelas. O fim de tudo sempre começou no começo. Ele refazia desde os primeiros passos as obras que dirigia.

Também tinha feito programas de rádio com Joan Barril, que admirava e respeitava, e acreditava que o teatro e o rádio tinham uma ligação secreta que tinha de ser descoberta, cada vez mais através do trabalho. Ele e Joan Barril ganharam um prêmio de televisão em 2005. É curioso, e uma das suas grandes contradições, que este homem do teatro, tão respeitoso com os clássicos, fosse, ao mesmo tempo, um entusiasta do rádio. Não da televisão e do cinema.

Ele era muito perfeccionista e não deixava nada ao acaso. Ele se reunia com os atores separadamente e dava conselhos que eram ordens. Era preciso encobrir a voz, para que soasse natural, como alguém falando com um amigo ou conhecido, e outras vezes, ao contrário, levantá-la e falar como alguém discursando em praça pública diante de milhares de pessoas. Aquele disfarce ou exibicionismo frenético era o que ele procurava para acentuar uma personalidade ou reduzi-la ao invisível.

Cada instrução era uma aula a ser retida porque tudo nela era significativo, uma versão que se aproximava de sua obsessão pela montagem perfeita. Era preciso vê-lo e ouvi-lo nos jantares, nos quais, depois de beber um uísque, ele se lembrava dos grandes espetáculos que tinha visto e que nem sempre eram os que o grande público entronizava, mas os que ele próprio valorizava, devido às afinidades que surgiam e que tinham a ver com aquele amor ao teatro que ele professava acima de todas as coisas. Nunca conheci alguém que se identificasse tanto com sua profissão. Os defensores da independência catalã não o queriam e tenho a sensação de que o escândalo que o acompanhou nos últimos meses de sua vida estava relacionado à sua independência, essa atitude corajosa que sempre o fez depender de si mesmo acima ou abaixo das coisas às quais indiferentemente veio a servir. Também por sua independência e coragem, Joan Ollé era admirado por todos nós que o conhecíamos e passamos a amá-lo.

Como a todos os verdadeiros artistas, o azar o seguiu. Sua obra, reconhecida na juventude, não o acompanhou até o final, embora ele sempre fosse original e talentoso. Soube que, há alguns meses, foi alvo de uma denúncia na Academia de Teatro de Barcelona, na qual foi professor durante vários anos. Algumas estudantes o denunciaram por ter ido longe demais com elas e um jornal de Barcelona aproveitou esse pequeno escândalo para censurá-lo e pedir seu cancelamento.

A instituição o aposentou por falta de provas. “Nesse país, a presunção de inocência não existe mais”, declarou. Mas esse escândalo o deixou muito amargurado e ele sempre pensou que seus advogados seriam capazes de combatê-lo e que seu nome seria limpo novamente. A morte o surpreendeu sem a resolução dos acontecimentos, Aitana Sánchez Gijón me informou dessa situação, banhada em lágrimas. Eu também me senti tão mal quanto ela com essa morte que veio antes daquela ação pela qual ele esperou com tanta impaciência. E sem que ela interrompesse seu trabalho, já que ele havia planejado, para esse retorno à vida teatral, muitas novas aventuras nas quais mostraria mais uma vez sua inteligência e multiplicidade. Ele esperava voltar a ser a celebridade que tinha sido na juventude, nos anos em que criou o Dagoll Dagom, que o tornou muito famoso. E ele era indiferente a sua idade, parecia condenado a ser eternamente jovem, até que a vida o levou.

A última vez que nos falamos, ao telefone, ele estava animado com um lugar que havia descoberto em sua Barcelona natal, que pretendia transformar em um local que atraísse jovens talentosos que compartilhassem seu amor pelo teatro. Ele tinha muitos projetos nesse sentido que, segundo me disse, seriam objeto de uma longa palestra, como as que tivemos muitas vezes em Madri. A vida não lhe permitiu realizá-la, mas os amigos que o acompanharam até o fim sabem que ela estava lá, prestes a ser proferida na próxima vez que nos encontrássemos, e com a mesma seriedade que ele sempre teve para comunicar seus projetos. Ele era um homem do teatro e sempre foi, até o fim. Caro Joan Ollé: descanse em paz.

Conheci Joan Ollé graças a Juan Cruz, há 20 anos, na minha casa em Madri. Eu acabara de estar em Turim, dando aulas na escola de contadores de histórias que o escritor italiano Alessandro Baricco tinha naquela cidade, e me entusiasmara com uma produção teatral desse autor, que, acompanhado de uma atriz, contava histórias atuais, conversando em um palco. Algo assim não poderia ser feito com clássicos espanhóis e latino-americanos nos teatros da Espanha?

O diretor espanhol de teatro Joan Ollé: para ele, teatro e rádio tinham uma ligação a ser descoberta. Foto: Arquivo ACN

Sem me consultar, Juan Cruz havia inspirado a Câmara Municipal de Barcelona com esse projeto, obtendo seu apoio e financiamento. Joan Ollé, em boa hora, foi o diretor escolhido por essa instituição, e ele aceitou, acompanhado por uma excelente atriz, Aitana Sánchez Gijón, que eu havia escolhido para o projeto por sua esplêndida atuação, que acabara de ver no Teatro Espanhol, em Gata em Teto de Zinco Quente, de Tennessee Williams, motivo pelo qual estavam lá. Quem diria que esses três se tornariam amigos íntimos.

Expliquei meu projeto para eles, disse que escreveria os roteiros e leria alguns para eles. “São sensacionais”, disse-me Joan Ollé ao ouvi-los. “Por que não tenta contá-los, antes, sem escrevê-los?” Assim o fiz, e assim nasceu A Verdade das Mentiras, que durante alguns anos consumiu todo o meu tempo e trabalho dramático.

Joan Ollé era um homem cheio de ideias, referindo-se quase exclusivamente ao teatro. “O teatro não é a vida” - costumava dizer -, “embora se assemelhe a ela em sua percepção e pureza, proporcionada em todas as línguas do mundo”. As mil e uma aventuras podem ser expressas ali, como fizeram os grandes autores, principalmente os clássicos. A atuação dos atores serve às obras, mas não faz uso delas. Não há outra maneira de servir ao teatro que não sendo humilde e esforçado. O teatro não tem nada a ver com o cinema ou com os musicais, essas bajulações que o desfiguram e pervertem, mas com o próprio teatro. Portanto, é preciso ler as peças clássicas e aprender com elas o essencial do teatro.

Tudo está lá, concentrado, e nosso dever é descobri-lo. As ideias chegam no texto e devem ser defendidas com paixão, em sua totalidade, porque a melhor montagem será aquela que for mais fiel a esses textos. É interessante que um dos autores mais famosos por suas brincadeiras fosse tão fiel aos textos clássicos.

Morreu aos 66 anos, de um enfarte do miocárdio que o surpreendeu em casa, cercado pela mulher e pelo filho, e por Esther, que havia sido sua assistente em várias produções.

Ele era muito exigente com seus atores em cada montagem, pois trabalhava muito em todas elas, e lembro, por exemplo, que em uma versão dos contos de Boccaccio ele fez uma viagem a Florença, preparando-se, consultou os originais e muita bibliografia, e voltou animado para nos dizer: “Já consegui”. Sempre conseguia, e da mesma forma, viajando para os lugares que inspiraram aquelas obras, consultando os livros e o ambiente, vendo as paisagens e mergulhando nelas. O fim de tudo sempre começou no começo. Ele refazia desde os primeiros passos as obras que dirigia.

Também tinha feito programas de rádio com Joan Barril, que admirava e respeitava, e acreditava que o teatro e o rádio tinham uma ligação secreta que tinha de ser descoberta, cada vez mais através do trabalho. Ele e Joan Barril ganharam um prêmio de televisão em 2005. É curioso, e uma das suas grandes contradições, que este homem do teatro, tão respeitoso com os clássicos, fosse, ao mesmo tempo, um entusiasta do rádio. Não da televisão e do cinema.

Ele era muito perfeccionista e não deixava nada ao acaso. Ele se reunia com os atores separadamente e dava conselhos que eram ordens. Era preciso encobrir a voz, para que soasse natural, como alguém falando com um amigo ou conhecido, e outras vezes, ao contrário, levantá-la e falar como alguém discursando em praça pública diante de milhares de pessoas. Aquele disfarce ou exibicionismo frenético era o que ele procurava para acentuar uma personalidade ou reduzi-la ao invisível.

Cada instrução era uma aula a ser retida porque tudo nela era significativo, uma versão que se aproximava de sua obsessão pela montagem perfeita. Era preciso vê-lo e ouvi-lo nos jantares, nos quais, depois de beber um uísque, ele se lembrava dos grandes espetáculos que tinha visto e que nem sempre eram os que o grande público entronizava, mas os que ele próprio valorizava, devido às afinidades que surgiam e que tinham a ver com aquele amor ao teatro que ele professava acima de todas as coisas. Nunca conheci alguém que se identificasse tanto com sua profissão. Os defensores da independência catalã não o queriam e tenho a sensação de que o escândalo que o acompanhou nos últimos meses de sua vida estava relacionado à sua independência, essa atitude corajosa que sempre o fez depender de si mesmo acima ou abaixo das coisas às quais indiferentemente veio a servir. Também por sua independência e coragem, Joan Ollé era admirado por todos nós que o conhecíamos e passamos a amá-lo.

Como a todos os verdadeiros artistas, o azar o seguiu. Sua obra, reconhecida na juventude, não o acompanhou até o final, embora ele sempre fosse original e talentoso. Soube que, há alguns meses, foi alvo de uma denúncia na Academia de Teatro de Barcelona, na qual foi professor durante vários anos. Algumas estudantes o denunciaram por ter ido longe demais com elas e um jornal de Barcelona aproveitou esse pequeno escândalo para censurá-lo e pedir seu cancelamento.

A instituição o aposentou por falta de provas. “Nesse país, a presunção de inocência não existe mais”, declarou. Mas esse escândalo o deixou muito amargurado e ele sempre pensou que seus advogados seriam capazes de combatê-lo e que seu nome seria limpo novamente. A morte o surpreendeu sem a resolução dos acontecimentos, Aitana Sánchez Gijón me informou dessa situação, banhada em lágrimas. Eu também me senti tão mal quanto ela com essa morte que veio antes daquela ação pela qual ele esperou com tanta impaciência. E sem que ela interrompesse seu trabalho, já que ele havia planejado, para esse retorno à vida teatral, muitas novas aventuras nas quais mostraria mais uma vez sua inteligência e multiplicidade. Ele esperava voltar a ser a celebridade que tinha sido na juventude, nos anos em que criou o Dagoll Dagom, que o tornou muito famoso. E ele era indiferente a sua idade, parecia condenado a ser eternamente jovem, até que a vida o levou.

A última vez que nos falamos, ao telefone, ele estava animado com um lugar que havia descoberto em sua Barcelona natal, que pretendia transformar em um local que atraísse jovens talentosos que compartilhassem seu amor pelo teatro. Ele tinha muitos projetos nesse sentido que, segundo me disse, seriam objeto de uma longa palestra, como as que tivemos muitas vezes em Madri. A vida não lhe permitiu realizá-la, mas os amigos que o acompanharam até o fim sabem que ela estava lá, prestes a ser proferida na próxima vez que nos encontrássemos, e com a mesma seriedade que ele sempre teve para comunicar seus projetos. Ele era um homem do teatro e sempre foi, até o fim. Caro Joan Ollé: descanse em paz.

Conheci Joan Ollé graças a Juan Cruz, há 20 anos, na minha casa em Madri. Eu acabara de estar em Turim, dando aulas na escola de contadores de histórias que o escritor italiano Alessandro Baricco tinha naquela cidade, e me entusiasmara com uma produção teatral desse autor, que, acompanhado de uma atriz, contava histórias atuais, conversando em um palco. Algo assim não poderia ser feito com clássicos espanhóis e latino-americanos nos teatros da Espanha?

O diretor espanhol de teatro Joan Ollé: para ele, teatro e rádio tinham uma ligação a ser descoberta. Foto: Arquivo ACN

Sem me consultar, Juan Cruz havia inspirado a Câmara Municipal de Barcelona com esse projeto, obtendo seu apoio e financiamento. Joan Ollé, em boa hora, foi o diretor escolhido por essa instituição, e ele aceitou, acompanhado por uma excelente atriz, Aitana Sánchez Gijón, que eu havia escolhido para o projeto por sua esplêndida atuação, que acabara de ver no Teatro Espanhol, em Gata em Teto de Zinco Quente, de Tennessee Williams, motivo pelo qual estavam lá. Quem diria que esses três se tornariam amigos íntimos.

Expliquei meu projeto para eles, disse que escreveria os roteiros e leria alguns para eles. “São sensacionais”, disse-me Joan Ollé ao ouvi-los. “Por que não tenta contá-los, antes, sem escrevê-los?” Assim o fiz, e assim nasceu A Verdade das Mentiras, que durante alguns anos consumiu todo o meu tempo e trabalho dramático.

Joan Ollé era um homem cheio de ideias, referindo-se quase exclusivamente ao teatro. “O teatro não é a vida” - costumava dizer -, “embora se assemelhe a ela em sua percepção e pureza, proporcionada em todas as línguas do mundo”. As mil e uma aventuras podem ser expressas ali, como fizeram os grandes autores, principalmente os clássicos. A atuação dos atores serve às obras, mas não faz uso delas. Não há outra maneira de servir ao teatro que não sendo humilde e esforçado. O teatro não tem nada a ver com o cinema ou com os musicais, essas bajulações que o desfiguram e pervertem, mas com o próprio teatro. Portanto, é preciso ler as peças clássicas e aprender com elas o essencial do teatro.

Tudo está lá, concentrado, e nosso dever é descobri-lo. As ideias chegam no texto e devem ser defendidas com paixão, em sua totalidade, porque a melhor montagem será aquela que for mais fiel a esses textos. É interessante que um dos autores mais famosos por suas brincadeiras fosse tão fiel aos textos clássicos.

Morreu aos 66 anos, de um enfarte do miocárdio que o surpreendeu em casa, cercado pela mulher e pelo filho, e por Esther, que havia sido sua assistente em várias produções.

Ele era muito exigente com seus atores em cada montagem, pois trabalhava muito em todas elas, e lembro, por exemplo, que em uma versão dos contos de Boccaccio ele fez uma viagem a Florença, preparando-se, consultou os originais e muita bibliografia, e voltou animado para nos dizer: “Já consegui”. Sempre conseguia, e da mesma forma, viajando para os lugares que inspiraram aquelas obras, consultando os livros e o ambiente, vendo as paisagens e mergulhando nelas. O fim de tudo sempre começou no começo. Ele refazia desde os primeiros passos as obras que dirigia.

Também tinha feito programas de rádio com Joan Barril, que admirava e respeitava, e acreditava que o teatro e o rádio tinham uma ligação secreta que tinha de ser descoberta, cada vez mais através do trabalho. Ele e Joan Barril ganharam um prêmio de televisão em 2005. É curioso, e uma das suas grandes contradições, que este homem do teatro, tão respeitoso com os clássicos, fosse, ao mesmo tempo, um entusiasta do rádio. Não da televisão e do cinema.

Ele era muito perfeccionista e não deixava nada ao acaso. Ele se reunia com os atores separadamente e dava conselhos que eram ordens. Era preciso encobrir a voz, para que soasse natural, como alguém falando com um amigo ou conhecido, e outras vezes, ao contrário, levantá-la e falar como alguém discursando em praça pública diante de milhares de pessoas. Aquele disfarce ou exibicionismo frenético era o que ele procurava para acentuar uma personalidade ou reduzi-la ao invisível.

Cada instrução era uma aula a ser retida porque tudo nela era significativo, uma versão que se aproximava de sua obsessão pela montagem perfeita. Era preciso vê-lo e ouvi-lo nos jantares, nos quais, depois de beber um uísque, ele se lembrava dos grandes espetáculos que tinha visto e que nem sempre eram os que o grande público entronizava, mas os que ele próprio valorizava, devido às afinidades que surgiam e que tinham a ver com aquele amor ao teatro que ele professava acima de todas as coisas. Nunca conheci alguém que se identificasse tanto com sua profissão. Os defensores da independência catalã não o queriam e tenho a sensação de que o escândalo que o acompanhou nos últimos meses de sua vida estava relacionado à sua independência, essa atitude corajosa que sempre o fez depender de si mesmo acima ou abaixo das coisas às quais indiferentemente veio a servir. Também por sua independência e coragem, Joan Ollé era admirado por todos nós que o conhecíamos e passamos a amá-lo.

Como a todos os verdadeiros artistas, o azar o seguiu. Sua obra, reconhecida na juventude, não o acompanhou até o final, embora ele sempre fosse original e talentoso. Soube que, há alguns meses, foi alvo de uma denúncia na Academia de Teatro de Barcelona, na qual foi professor durante vários anos. Algumas estudantes o denunciaram por ter ido longe demais com elas e um jornal de Barcelona aproveitou esse pequeno escândalo para censurá-lo e pedir seu cancelamento.

A instituição o aposentou por falta de provas. “Nesse país, a presunção de inocência não existe mais”, declarou. Mas esse escândalo o deixou muito amargurado e ele sempre pensou que seus advogados seriam capazes de combatê-lo e que seu nome seria limpo novamente. A morte o surpreendeu sem a resolução dos acontecimentos, Aitana Sánchez Gijón me informou dessa situação, banhada em lágrimas. Eu também me senti tão mal quanto ela com essa morte que veio antes daquela ação pela qual ele esperou com tanta impaciência. E sem que ela interrompesse seu trabalho, já que ele havia planejado, para esse retorno à vida teatral, muitas novas aventuras nas quais mostraria mais uma vez sua inteligência e multiplicidade. Ele esperava voltar a ser a celebridade que tinha sido na juventude, nos anos em que criou o Dagoll Dagom, que o tornou muito famoso. E ele era indiferente a sua idade, parecia condenado a ser eternamente jovem, até que a vida o levou.

A última vez que nos falamos, ao telefone, ele estava animado com um lugar que havia descoberto em sua Barcelona natal, que pretendia transformar em um local que atraísse jovens talentosos que compartilhassem seu amor pelo teatro. Ele tinha muitos projetos nesse sentido que, segundo me disse, seriam objeto de uma longa palestra, como as que tivemos muitas vezes em Madri. A vida não lhe permitiu realizá-la, mas os amigos que o acompanharam até o fim sabem que ela estava lá, prestes a ser proferida na próxima vez que nos encontrássemos, e com a mesma seriedade que ele sempre teve para comunicar seus projetos. Ele era um homem do teatro e sempre foi, até o fim. Caro Joan Ollé: descanse em paz.

Conheci Joan Ollé graças a Juan Cruz, há 20 anos, na minha casa em Madri. Eu acabara de estar em Turim, dando aulas na escola de contadores de histórias que o escritor italiano Alessandro Baricco tinha naquela cidade, e me entusiasmara com uma produção teatral desse autor, que, acompanhado de uma atriz, contava histórias atuais, conversando em um palco. Algo assim não poderia ser feito com clássicos espanhóis e latino-americanos nos teatros da Espanha?

O diretor espanhol de teatro Joan Ollé: para ele, teatro e rádio tinham uma ligação a ser descoberta. Foto: Arquivo ACN

Sem me consultar, Juan Cruz havia inspirado a Câmara Municipal de Barcelona com esse projeto, obtendo seu apoio e financiamento. Joan Ollé, em boa hora, foi o diretor escolhido por essa instituição, e ele aceitou, acompanhado por uma excelente atriz, Aitana Sánchez Gijón, que eu havia escolhido para o projeto por sua esplêndida atuação, que acabara de ver no Teatro Espanhol, em Gata em Teto de Zinco Quente, de Tennessee Williams, motivo pelo qual estavam lá. Quem diria que esses três se tornariam amigos íntimos.

Expliquei meu projeto para eles, disse que escreveria os roteiros e leria alguns para eles. “São sensacionais”, disse-me Joan Ollé ao ouvi-los. “Por que não tenta contá-los, antes, sem escrevê-los?” Assim o fiz, e assim nasceu A Verdade das Mentiras, que durante alguns anos consumiu todo o meu tempo e trabalho dramático.

Joan Ollé era um homem cheio de ideias, referindo-se quase exclusivamente ao teatro. “O teatro não é a vida” - costumava dizer -, “embora se assemelhe a ela em sua percepção e pureza, proporcionada em todas as línguas do mundo”. As mil e uma aventuras podem ser expressas ali, como fizeram os grandes autores, principalmente os clássicos. A atuação dos atores serve às obras, mas não faz uso delas. Não há outra maneira de servir ao teatro que não sendo humilde e esforçado. O teatro não tem nada a ver com o cinema ou com os musicais, essas bajulações que o desfiguram e pervertem, mas com o próprio teatro. Portanto, é preciso ler as peças clássicas e aprender com elas o essencial do teatro.

Tudo está lá, concentrado, e nosso dever é descobri-lo. As ideias chegam no texto e devem ser defendidas com paixão, em sua totalidade, porque a melhor montagem será aquela que for mais fiel a esses textos. É interessante que um dos autores mais famosos por suas brincadeiras fosse tão fiel aos textos clássicos.

Morreu aos 66 anos, de um enfarte do miocárdio que o surpreendeu em casa, cercado pela mulher e pelo filho, e por Esther, que havia sido sua assistente em várias produções.

Ele era muito exigente com seus atores em cada montagem, pois trabalhava muito em todas elas, e lembro, por exemplo, que em uma versão dos contos de Boccaccio ele fez uma viagem a Florença, preparando-se, consultou os originais e muita bibliografia, e voltou animado para nos dizer: “Já consegui”. Sempre conseguia, e da mesma forma, viajando para os lugares que inspiraram aquelas obras, consultando os livros e o ambiente, vendo as paisagens e mergulhando nelas. O fim de tudo sempre começou no começo. Ele refazia desde os primeiros passos as obras que dirigia.

Também tinha feito programas de rádio com Joan Barril, que admirava e respeitava, e acreditava que o teatro e o rádio tinham uma ligação secreta que tinha de ser descoberta, cada vez mais através do trabalho. Ele e Joan Barril ganharam um prêmio de televisão em 2005. É curioso, e uma das suas grandes contradições, que este homem do teatro, tão respeitoso com os clássicos, fosse, ao mesmo tempo, um entusiasta do rádio. Não da televisão e do cinema.

Ele era muito perfeccionista e não deixava nada ao acaso. Ele se reunia com os atores separadamente e dava conselhos que eram ordens. Era preciso encobrir a voz, para que soasse natural, como alguém falando com um amigo ou conhecido, e outras vezes, ao contrário, levantá-la e falar como alguém discursando em praça pública diante de milhares de pessoas. Aquele disfarce ou exibicionismo frenético era o que ele procurava para acentuar uma personalidade ou reduzi-la ao invisível.

Cada instrução era uma aula a ser retida porque tudo nela era significativo, uma versão que se aproximava de sua obsessão pela montagem perfeita. Era preciso vê-lo e ouvi-lo nos jantares, nos quais, depois de beber um uísque, ele se lembrava dos grandes espetáculos que tinha visto e que nem sempre eram os que o grande público entronizava, mas os que ele próprio valorizava, devido às afinidades que surgiam e que tinham a ver com aquele amor ao teatro que ele professava acima de todas as coisas. Nunca conheci alguém que se identificasse tanto com sua profissão. Os defensores da independência catalã não o queriam e tenho a sensação de que o escândalo que o acompanhou nos últimos meses de sua vida estava relacionado à sua independência, essa atitude corajosa que sempre o fez depender de si mesmo acima ou abaixo das coisas às quais indiferentemente veio a servir. Também por sua independência e coragem, Joan Ollé era admirado por todos nós que o conhecíamos e passamos a amá-lo.

Como a todos os verdadeiros artistas, o azar o seguiu. Sua obra, reconhecida na juventude, não o acompanhou até o final, embora ele sempre fosse original e talentoso. Soube que, há alguns meses, foi alvo de uma denúncia na Academia de Teatro de Barcelona, na qual foi professor durante vários anos. Algumas estudantes o denunciaram por ter ido longe demais com elas e um jornal de Barcelona aproveitou esse pequeno escândalo para censurá-lo e pedir seu cancelamento.

A instituição o aposentou por falta de provas. “Nesse país, a presunção de inocência não existe mais”, declarou. Mas esse escândalo o deixou muito amargurado e ele sempre pensou que seus advogados seriam capazes de combatê-lo e que seu nome seria limpo novamente. A morte o surpreendeu sem a resolução dos acontecimentos, Aitana Sánchez Gijón me informou dessa situação, banhada em lágrimas. Eu também me senti tão mal quanto ela com essa morte que veio antes daquela ação pela qual ele esperou com tanta impaciência. E sem que ela interrompesse seu trabalho, já que ele havia planejado, para esse retorno à vida teatral, muitas novas aventuras nas quais mostraria mais uma vez sua inteligência e multiplicidade. Ele esperava voltar a ser a celebridade que tinha sido na juventude, nos anos em que criou o Dagoll Dagom, que o tornou muito famoso. E ele era indiferente a sua idade, parecia condenado a ser eternamente jovem, até que a vida o levou.

A última vez que nos falamos, ao telefone, ele estava animado com um lugar que havia descoberto em sua Barcelona natal, que pretendia transformar em um local que atraísse jovens talentosos que compartilhassem seu amor pelo teatro. Ele tinha muitos projetos nesse sentido que, segundo me disse, seriam objeto de uma longa palestra, como as que tivemos muitas vezes em Madri. A vida não lhe permitiu realizá-la, mas os amigos que o acompanharam até o fim sabem que ela estava lá, prestes a ser proferida na próxima vez que nos encontrássemos, e com a mesma seriedade que ele sempre teve para comunicar seus projetos. Ele era um homem do teatro e sempre foi, até o fim. Caro Joan Ollé: descanse em paz.

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