Uma descoberta iluminista do país


O francês Gilles Lapouge, correspondente do 'Estado' em Paris, faz viagem amorosa ao Brasil na forma de verbetes

Por Leda Tenório da Motta

Apresentar o Dictionnaire Amoureux du Brésil, de Gilles Lapouge, é pô-lo numa bela e longa tradição francesa. Sabemos que viajar é uma virtude iluminista, inseparável da prerrogativa dos filósofos escritores do século 18 de ver o mundo também com os próprios olhos. Nesta ambiência, tanto importa cercar o conhecimento pela via dos livros - ideal inscrito no étimo da palavra enciclopédia, que remete ao círculo e deve ser tomada como o encadeamento dos saberes - quanto pela via da experimentação sensível. É assim que Montesquieu instala-se em Londres e Voltaire, em Potsdam, enquanto Diderot continua, imaginariamente, numa de suas obras mais conhecidas, o périplo em volta do globo do marinheiro francês Bougainville, e Rousseau entrega-se às caminhadas. Tudo o que é de consequências não apenas para o avanço geral da ciência, mas para uma particular revolução política, que passa pela renaturalização da vida factícia, mediante a remoção do preconceito, até daqueles consistentes nos valores nacionais. Trata-se de uma tradição que remonta à Renascença francesa, embora os primeiros modernos observem mais com o olho do espírito. De sorte que, se é da torre de marfim de sua biblioteca que Montaigne tudo considera, nem por isso escapa-lhe a questão do outro, nem, principalmente, a questão do conhecimento de si pelo outro. Tanto assim que, tendo lido as histórias do Novo Mundo e ouvido testemunhos sobre a França Antártica, ele não hesitará em aconselhar a Europa a remeter-se ao Brasil, no conhecido capítulo Os Canibais do primeiro livro dos Ensaios. Sem que possamos devolver-lhe a suspeita de que já nos envolve na "visão do paraíso", pois seria fazer pouco da perfeita instabilidade de seus relances contemplativos, avessos à fixação de qualquer ponto de vista, embora não à vertigem do deslocamento.A toda essa movimentação, nós, brasileiros, devemos ser descobertos, volta e meia, pelos franceses, para que possamos nos descobrir. Nesse sentido, há momentos particularmente heroicos a assinalar. Um deles é o do ano de 1552, quando uma embaixada de tupinambás é apresentada a Henrique II e Catarina de Médicis, na cidade normanda de Rouen. É muito do impacto dessa operação de reconhecimento que parte Montaigne. Um outro é o do ano de 1844, já em plena era da fotografia, quando índios botocudos são também levados à França, para serem daguerreotipados. Preciosíssimas, essas pranchas são espelhos não apenas de nós mesmos, mas do Homem, que estão hoje num museu de Paris e na internet. Um outro ainda, datado dos anos 1930, é a chegada à recém-criada Universidade de São Paulo daquele famoso grupo de professores - Fernand Braudel, Jean Maügué, Pierre Monbeig, Roger Bastide, Claude Lévi-Strauss - que, paradoxalmente, veio nos tirar de nosso afrancesamento, apontando o Brasil ao Brasil. Por justo retorno das coisas, o estranhamento ensejado pela fase brasileira faria de Braudel um dos mais importantes novos historiadores do século 20, e de Lévi-Strauss o sênior da escola estruturalista, a que pertenceram Foucault, Lacan e Barthes.Sem exaurir o ponto, poder-se-ia ainda assinalar a estação entre nós do fotógrafo e africanista Pierre Verger, ou a do poeta Blaise Cendras, ou a do compositor Darius Milhaud. Ou simplesmente lembrar que o despaisamento também está no horizonte de Baudelaire. Para melhor emendar que é daí que procedem não apenas este, mas todos os muitos livros de viagem ao Brasil de Lapouge, este jornalista escritor que aqui chegou, em 1951, para ser o correspondente de economia do Estado. Há 60 anos ele está nestas páginas e nos divisa. Mas justamente porque de uma tradição francesa se trata, mais irresistível ainda seria contrapor esse olhar amoroso - que não é de modo nenhum piedoso, ressalte-se, é apenas compreensivo, no sentido espacial da palavra -, com o olhar atravessado da poeta norte-americana Elisabeth Bishop. Até porque ela aqui desembarca no exato mesmo ano que Lapouge, começando pela mesma porta de entrada do Rio. Mas principalmente porque são experiências antitéticas que falam, no fundo, de experiências de si mesmo. O estrangeiro sendo, num dos casos, e pelos motivos expostos, o estranho familiar, e no outro, o corpo estranho, em meio a fronteiras identitárias menos ou mais defendidas. Com efeito, é igualmente conhecido o episódio pelo qual começam as relações de Bishop conosco: uma violenta reação alérgica ao caju, numa escala do navio em que viajava pelo hemisfério, que a põe de cama e a obriga a ficar no Rio, esticando a temporada e o mal-entendido por 15 anos. Desta outra dialética entre o dentro e o fora, o similar e o diferente, o próximo e o distante também sairia um livro-reportagem, feito para a revista Time Life, além de uma obra poética. Os melhores comentadores brasileiros da poeta falam em sentimentos misturados, entre os quais predominam os negativos, que vão até a repulsa. Já os críticos desconstrucionistas, que põem as relações agonísticas entre os textos e os autores em termos de devoração, lembram-nos que toda a trajetória etimológica da palavra "hóspede", que é parente da palavra "hóstia" e da palavra "hostil", acusa uma interessante duplicidade: um hospedeiro é um hóspede e um hóspede é um hospedeiro. O próprio da linha francesa é sabê-lo, desde sempre. É por isso que, afora nos dizer, cruelmente, que "o carnaval é uma máscara para quem sente a dificuldade de ser" e que "o Brasil é um país violento", no verbete Cozinha, Lapouge pode encarar a feijoada como a madeleine de Proust.LEDA TENÓRIO DA MOTTA, PROFESSORA DA PUC-SP, É AUTORA, ENTRE OUTROS, DE PROUST - A VIOLÊNCIA SUTIL DO RISO (PERSPECTIVA)

Apresentar o Dictionnaire Amoureux du Brésil, de Gilles Lapouge, é pô-lo numa bela e longa tradição francesa. Sabemos que viajar é uma virtude iluminista, inseparável da prerrogativa dos filósofos escritores do século 18 de ver o mundo também com os próprios olhos. Nesta ambiência, tanto importa cercar o conhecimento pela via dos livros - ideal inscrito no étimo da palavra enciclopédia, que remete ao círculo e deve ser tomada como o encadeamento dos saberes - quanto pela via da experimentação sensível. É assim que Montesquieu instala-se em Londres e Voltaire, em Potsdam, enquanto Diderot continua, imaginariamente, numa de suas obras mais conhecidas, o périplo em volta do globo do marinheiro francês Bougainville, e Rousseau entrega-se às caminhadas. Tudo o que é de consequências não apenas para o avanço geral da ciência, mas para uma particular revolução política, que passa pela renaturalização da vida factícia, mediante a remoção do preconceito, até daqueles consistentes nos valores nacionais. Trata-se de uma tradição que remonta à Renascença francesa, embora os primeiros modernos observem mais com o olho do espírito. De sorte que, se é da torre de marfim de sua biblioteca que Montaigne tudo considera, nem por isso escapa-lhe a questão do outro, nem, principalmente, a questão do conhecimento de si pelo outro. Tanto assim que, tendo lido as histórias do Novo Mundo e ouvido testemunhos sobre a França Antártica, ele não hesitará em aconselhar a Europa a remeter-se ao Brasil, no conhecido capítulo Os Canibais do primeiro livro dos Ensaios. Sem que possamos devolver-lhe a suspeita de que já nos envolve na "visão do paraíso", pois seria fazer pouco da perfeita instabilidade de seus relances contemplativos, avessos à fixação de qualquer ponto de vista, embora não à vertigem do deslocamento.A toda essa movimentação, nós, brasileiros, devemos ser descobertos, volta e meia, pelos franceses, para que possamos nos descobrir. Nesse sentido, há momentos particularmente heroicos a assinalar. Um deles é o do ano de 1552, quando uma embaixada de tupinambás é apresentada a Henrique II e Catarina de Médicis, na cidade normanda de Rouen. É muito do impacto dessa operação de reconhecimento que parte Montaigne. Um outro é o do ano de 1844, já em plena era da fotografia, quando índios botocudos são também levados à França, para serem daguerreotipados. Preciosíssimas, essas pranchas são espelhos não apenas de nós mesmos, mas do Homem, que estão hoje num museu de Paris e na internet. Um outro ainda, datado dos anos 1930, é a chegada à recém-criada Universidade de São Paulo daquele famoso grupo de professores - Fernand Braudel, Jean Maügué, Pierre Monbeig, Roger Bastide, Claude Lévi-Strauss - que, paradoxalmente, veio nos tirar de nosso afrancesamento, apontando o Brasil ao Brasil. Por justo retorno das coisas, o estranhamento ensejado pela fase brasileira faria de Braudel um dos mais importantes novos historiadores do século 20, e de Lévi-Strauss o sênior da escola estruturalista, a que pertenceram Foucault, Lacan e Barthes.Sem exaurir o ponto, poder-se-ia ainda assinalar a estação entre nós do fotógrafo e africanista Pierre Verger, ou a do poeta Blaise Cendras, ou a do compositor Darius Milhaud. Ou simplesmente lembrar que o despaisamento também está no horizonte de Baudelaire. Para melhor emendar que é daí que procedem não apenas este, mas todos os muitos livros de viagem ao Brasil de Lapouge, este jornalista escritor que aqui chegou, em 1951, para ser o correspondente de economia do Estado. Há 60 anos ele está nestas páginas e nos divisa. Mas justamente porque de uma tradição francesa se trata, mais irresistível ainda seria contrapor esse olhar amoroso - que não é de modo nenhum piedoso, ressalte-se, é apenas compreensivo, no sentido espacial da palavra -, com o olhar atravessado da poeta norte-americana Elisabeth Bishop. Até porque ela aqui desembarca no exato mesmo ano que Lapouge, começando pela mesma porta de entrada do Rio. Mas principalmente porque são experiências antitéticas que falam, no fundo, de experiências de si mesmo. O estrangeiro sendo, num dos casos, e pelos motivos expostos, o estranho familiar, e no outro, o corpo estranho, em meio a fronteiras identitárias menos ou mais defendidas. Com efeito, é igualmente conhecido o episódio pelo qual começam as relações de Bishop conosco: uma violenta reação alérgica ao caju, numa escala do navio em que viajava pelo hemisfério, que a põe de cama e a obriga a ficar no Rio, esticando a temporada e o mal-entendido por 15 anos. Desta outra dialética entre o dentro e o fora, o similar e o diferente, o próximo e o distante também sairia um livro-reportagem, feito para a revista Time Life, além de uma obra poética. Os melhores comentadores brasileiros da poeta falam em sentimentos misturados, entre os quais predominam os negativos, que vão até a repulsa. Já os críticos desconstrucionistas, que põem as relações agonísticas entre os textos e os autores em termos de devoração, lembram-nos que toda a trajetória etimológica da palavra "hóspede", que é parente da palavra "hóstia" e da palavra "hostil", acusa uma interessante duplicidade: um hospedeiro é um hóspede e um hóspede é um hospedeiro. O próprio da linha francesa é sabê-lo, desde sempre. É por isso que, afora nos dizer, cruelmente, que "o carnaval é uma máscara para quem sente a dificuldade de ser" e que "o Brasil é um país violento", no verbete Cozinha, Lapouge pode encarar a feijoada como a madeleine de Proust.LEDA TENÓRIO DA MOTTA, PROFESSORA DA PUC-SP, É AUTORA, ENTRE OUTROS, DE PROUST - A VIOLÊNCIA SUTIL DO RISO (PERSPECTIVA)

Apresentar o Dictionnaire Amoureux du Brésil, de Gilles Lapouge, é pô-lo numa bela e longa tradição francesa. Sabemos que viajar é uma virtude iluminista, inseparável da prerrogativa dos filósofos escritores do século 18 de ver o mundo também com os próprios olhos. Nesta ambiência, tanto importa cercar o conhecimento pela via dos livros - ideal inscrito no étimo da palavra enciclopédia, que remete ao círculo e deve ser tomada como o encadeamento dos saberes - quanto pela via da experimentação sensível. É assim que Montesquieu instala-se em Londres e Voltaire, em Potsdam, enquanto Diderot continua, imaginariamente, numa de suas obras mais conhecidas, o périplo em volta do globo do marinheiro francês Bougainville, e Rousseau entrega-se às caminhadas. Tudo o que é de consequências não apenas para o avanço geral da ciência, mas para uma particular revolução política, que passa pela renaturalização da vida factícia, mediante a remoção do preconceito, até daqueles consistentes nos valores nacionais. Trata-se de uma tradição que remonta à Renascença francesa, embora os primeiros modernos observem mais com o olho do espírito. De sorte que, se é da torre de marfim de sua biblioteca que Montaigne tudo considera, nem por isso escapa-lhe a questão do outro, nem, principalmente, a questão do conhecimento de si pelo outro. Tanto assim que, tendo lido as histórias do Novo Mundo e ouvido testemunhos sobre a França Antártica, ele não hesitará em aconselhar a Europa a remeter-se ao Brasil, no conhecido capítulo Os Canibais do primeiro livro dos Ensaios. Sem que possamos devolver-lhe a suspeita de que já nos envolve na "visão do paraíso", pois seria fazer pouco da perfeita instabilidade de seus relances contemplativos, avessos à fixação de qualquer ponto de vista, embora não à vertigem do deslocamento.A toda essa movimentação, nós, brasileiros, devemos ser descobertos, volta e meia, pelos franceses, para que possamos nos descobrir. Nesse sentido, há momentos particularmente heroicos a assinalar. Um deles é o do ano de 1552, quando uma embaixada de tupinambás é apresentada a Henrique II e Catarina de Médicis, na cidade normanda de Rouen. É muito do impacto dessa operação de reconhecimento que parte Montaigne. Um outro é o do ano de 1844, já em plena era da fotografia, quando índios botocudos são também levados à França, para serem daguerreotipados. Preciosíssimas, essas pranchas são espelhos não apenas de nós mesmos, mas do Homem, que estão hoje num museu de Paris e na internet. Um outro ainda, datado dos anos 1930, é a chegada à recém-criada Universidade de São Paulo daquele famoso grupo de professores - Fernand Braudel, Jean Maügué, Pierre Monbeig, Roger Bastide, Claude Lévi-Strauss - que, paradoxalmente, veio nos tirar de nosso afrancesamento, apontando o Brasil ao Brasil. Por justo retorno das coisas, o estranhamento ensejado pela fase brasileira faria de Braudel um dos mais importantes novos historiadores do século 20, e de Lévi-Strauss o sênior da escola estruturalista, a que pertenceram Foucault, Lacan e Barthes.Sem exaurir o ponto, poder-se-ia ainda assinalar a estação entre nós do fotógrafo e africanista Pierre Verger, ou a do poeta Blaise Cendras, ou a do compositor Darius Milhaud. Ou simplesmente lembrar que o despaisamento também está no horizonte de Baudelaire. Para melhor emendar que é daí que procedem não apenas este, mas todos os muitos livros de viagem ao Brasil de Lapouge, este jornalista escritor que aqui chegou, em 1951, para ser o correspondente de economia do Estado. Há 60 anos ele está nestas páginas e nos divisa. Mas justamente porque de uma tradição francesa se trata, mais irresistível ainda seria contrapor esse olhar amoroso - que não é de modo nenhum piedoso, ressalte-se, é apenas compreensivo, no sentido espacial da palavra -, com o olhar atravessado da poeta norte-americana Elisabeth Bishop. Até porque ela aqui desembarca no exato mesmo ano que Lapouge, começando pela mesma porta de entrada do Rio. Mas principalmente porque são experiências antitéticas que falam, no fundo, de experiências de si mesmo. O estrangeiro sendo, num dos casos, e pelos motivos expostos, o estranho familiar, e no outro, o corpo estranho, em meio a fronteiras identitárias menos ou mais defendidas. Com efeito, é igualmente conhecido o episódio pelo qual começam as relações de Bishop conosco: uma violenta reação alérgica ao caju, numa escala do navio em que viajava pelo hemisfério, que a põe de cama e a obriga a ficar no Rio, esticando a temporada e o mal-entendido por 15 anos. Desta outra dialética entre o dentro e o fora, o similar e o diferente, o próximo e o distante também sairia um livro-reportagem, feito para a revista Time Life, além de uma obra poética. Os melhores comentadores brasileiros da poeta falam em sentimentos misturados, entre os quais predominam os negativos, que vão até a repulsa. Já os críticos desconstrucionistas, que põem as relações agonísticas entre os textos e os autores em termos de devoração, lembram-nos que toda a trajetória etimológica da palavra "hóspede", que é parente da palavra "hóstia" e da palavra "hostil", acusa uma interessante duplicidade: um hospedeiro é um hóspede e um hóspede é um hospedeiro. O próprio da linha francesa é sabê-lo, desde sempre. É por isso que, afora nos dizer, cruelmente, que "o carnaval é uma máscara para quem sente a dificuldade de ser" e que "o Brasil é um país violento", no verbete Cozinha, Lapouge pode encarar a feijoada como a madeleine de Proust.LEDA TENÓRIO DA MOTTA, PROFESSORA DA PUC-SP, É AUTORA, ENTRE OUTROS, DE PROUST - A VIOLÊNCIA SUTIL DO RISO (PERSPECTIVA)

Apresentar o Dictionnaire Amoureux du Brésil, de Gilles Lapouge, é pô-lo numa bela e longa tradição francesa. Sabemos que viajar é uma virtude iluminista, inseparável da prerrogativa dos filósofos escritores do século 18 de ver o mundo também com os próprios olhos. Nesta ambiência, tanto importa cercar o conhecimento pela via dos livros - ideal inscrito no étimo da palavra enciclopédia, que remete ao círculo e deve ser tomada como o encadeamento dos saberes - quanto pela via da experimentação sensível. É assim que Montesquieu instala-se em Londres e Voltaire, em Potsdam, enquanto Diderot continua, imaginariamente, numa de suas obras mais conhecidas, o périplo em volta do globo do marinheiro francês Bougainville, e Rousseau entrega-se às caminhadas. Tudo o que é de consequências não apenas para o avanço geral da ciência, mas para uma particular revolução política, que passa pela renaturalização da vida factícia, mediante a remoção do preconceito, até daqueles consistentes nos valores nacionais. Trata-se de uma tradição que remonta à Renascença francesa, embora os primeiros modernos observem mais com o olho do espírito. De sorte que, se é da torre de marfim de sua biblioteca que Montaigne tudo considera, nem por isso escapa-lhe a questão do outro, nem, principalmente, a questão do conhecimento de si pelo outro. Tanto assim que, tendo lido as histórias do Novo Mundo e ouvido testemunhos sobre a França Antártica, ele não hesitará em aconselhar a Europa a remeter-se ao Brasil, no conhecido capítulo Os Canibais do primeiro livro dos Ensaios. Sem que possamos devolver-lhe a suspeita de que já nos envolve na "visão do paraíso", pois seria fazer pouco da perfeita instabilidade de seus relances contemplativos, avessos à fixação de qualquer ponto de vista, embora não à vertigem do deslocamento.A toda essa movimentação, nós, brasileiros, devemos ser descobertos, volta e meia, pelos franceses, para que possamos nos descobrir. Nesse sentido, há momentos particularmente heroicos a assinalar. Um deles é o do ano de 1552, quando uma embaixada de tupinambás é apresentada a Henrique II e Catarina de Médicis, na cidade normanda de Rouen. É muito do impacto dessa operação de reconhecimento que parte Montaigne. Um outro é o do ano de 1844, já em plena era da fotografia, quando índios botocudos são também levados à França, para serem daguerreotipados. Preciosíssimas, essas pranchas são espelhos não apenas de nós mesmos, mas do Homem, que estão hoje num museu de Paris e na internet. Um outro ainda, datado dos anos 1930, é a chegada à recém-criada Universidade de São Paulo daquele famoso grupo de professores - Fernand Braudel, Jean Maügué, Pierre Monbeig, Roger Bastide, Claude Lévi-Strauss - que, paradoxalmente, veio nos tirar de nosso afrancesamento, apontando o Brasil ao Brasil. Por justo retorno das coisas, o estranhamento ensejado pela fase brasileira faria de Braudel um dos mais importantes novos historiadores do século 20, e de Lévi-Strauss o sênior da escola estruturalista, a que pertenceram Foucault, Lacan e Barthes.Sem exaurir o ponto, poder-se-ia ainda assinalar a estação entre nós do fotógrafo e africanista Pierre Verger, ou a do poeta Blaise Cendras, ou a do compositor Darius Milhaud. Ou simplesmente lembrar que o despaisamento também está no horizonte de Baudelaire. Para melhor emendar que é daí que procedem não apenas este, mas todos os muitos livros de viagem ao Brasil de Lapouge, este jornalista escritor que aqui chegou, em 1951, para ser o correspondente de economia do Estado. Há 60 anos ele está nestas páginas e nos divisa. Mas justamente porque de uma tradição francesa se trata, mais irresistível ainda seria contrapor esse olhar amoroso - que não é de modo nenhum piedoso, ressalte-se, é apenas compreensivo, no sentido espacial da palavra -, com o olhar atravessado da poeta norte-americana Elisabeth Bishop. Até porque ela aqui desembarca no exato mesmo ano que Lapouge, começando pela mesma porta de entrada do Rio. Mas principalmente porque são experiências antitéticas que falam, no fundo, de experiências de si mesmo. O estrangeiro sendo, num dos casos, e pelos motivos expostos, o estranho familiar, e no outro, o corpo estranho, em meio a fronteiras identitárias menos ou mais defendidas. Com efeito, é igualmente conhecido o episódio pelo qual começam as relações de Bishop conosco: uma violenta reação alérgica ao caju, numa escala do navio em que viajava pelo hemisfério, que a põe de cama e a obriga a ficar no Rio, esticando a temporada e o mal-entendido por 15 anos. Desta outra dialética entre o dentro e o fora, o similar e o diferente, o próximo e o distante também sairia um livro-reportagem, feito para a revista Time Life, além de uma obra poética. Os melhores comentadores brasileiros da poeta falam em sentimentos misturados, entre os quais predominam os negativos, que vão até a repulsa. Já os críticos desconstrucionistas, que põem as relações agonísticas entre os textos e os autores em termos de devoração, lembram-nos que toda a trajetória etimológica da palavra "hóspede", que é parente da palavra "hóstia" e da palavra "hostil", acusa uma interessante duplicidade: um hospedeiro é um hóspede e um hóspede é um hospedeiro. O próprio da linha francesa é sabê-lo, desde sempre. É por isso que, afora nos dizer, cruelmente, que "o carnaval é uma máscara para quem sente a dificuldade de ser" e que "o Brasil é um país violento", no verbete Cozinha, Lapouge pode encarar a feijoada como a madeleine de Proust.LEDA TENÓRIO DA MOTTA, PROFESSORA DA PUC-SP, É AUTORA, ENTRE OUTROS, DE PROUST - A VIOLÊNCIA SUTIL DO RISO (PERSPECTIVA)

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