René Magritte adorava histórias de mistério, e a melhor abordagem para entender a vida do icônico artista é mesmo como um mistério. Ou pelo menos é o que argumenta uma nova biografia perspicaz e abrangente, escrita pelo falecido Alex Danchev, que, no entanto, deixa algumas pistas importantes pouco exploradas.
Magritte (1898-1967) é uma presa fugidia. Assim como seu amado Fantômas, o mascarado gênio do mal da popular série de romances policiais, Magritte estava em toda parte e em parte alguma.
O mesmo se pode dizer de suas criações: vultos recortados que se tornam vazios cheios de céu, rostos escondidos atrás de maçãs, vislumbrados por trás de janelas e fechaduras. Quando visíveis, os rostos são genéricos, geralmente de chapéu-coco, repetitivos como se tivessem saído de uma fábrica. Uma locomotiva emerge da lareira. Um nu frontal feminino vira um rosto. Corpos são objetos e objetos são corpos. O mundo de Magritte é uma sala de espelhos, mas até mesmo seus espelhos são distorcidos. Sua obra seduz com sua literalidade limpa e competente, depois rejeita o sentido, levando-nos simultaneamente à dúvida e à descoberta.
O polímata Danchev estava bem preparado para investigar a mente singular de Magritte. O autor traz para sua missão um conjunto impressionante de ferramentas estéticas, políticas e filosóficas. Todas são úteis para explicar um artista que se considerava menos um pintor do que um pensador cujas ideias se concretizavam em imagens. Não importa a pincelada, insistia Magritte, que fazia pouco de seu prodigioso talento pictórico: o importante é o tema.
Danchev, que além de biógrafo de Georges Braque e Paul Cézanne era historiador e professor de relações internacionais na Universidade de St. Andrews, na Escócia, morreu em 2016, aos 60 anos, de ataque cardíaco. Sarah Whitfield, historiadora de arte, escritora e curadora que coeditou René Magritte: Catalog Raisonné, concluiu o projeto inacabado de Danchev.
Danchev está intimamente familiarizado com o círculo surrealista francês que Magritte e seu grupo de Bruxelas orbitavam. Mas se mostra igualmente propenso a contextualizar a vida e o trabalho de Magritte na política europeia ao longo de duas guerras mundiais e a explorar os labirintos literários de Franz Kafka, os filmes de Fritz Lang, a filosofia de Friedrich Nietzsche e Martin Heidegger, e assim por diante. Danchev também ilumina a vasta influência de Magritte em artistas posteriores, entre eles Jasper Johns e Robert Rauschenberg, bem como na cultura pop e na publicidade.
Mas, nessa busca de pistas para o mistério de Magritte, como se deve ponderar sua infância problemática? Danchev a descreve vividamente, mas evita o papel de freudiano amador. Ele tem confiança o bastante para intuir os movimentos da mente de Magritte, mas evita adivinhar o que há no coração do pintor. Essa relutância é compreensível, mas acaba deixando de fora algumas peças cruciais do quebra-cabeça.
O pai de Magritte era um comerciante distante e pomposo, ganhara e perdera várias fortunas. A mãe do artista ficava tão deprimida que certa vez seu pai a trancou para tentar evitar que ela se machucasse. Não conseguiu. Ela escapou e se afogou no rio Sambre quando Magritte tinha 13 anos.
Ele era um péssimo estudante e fazia várias estripulias com um bando que incluía seus irmãos. Danchev relata uma travessura típica: “Eles jogavam fermento nos banheiros do cinema, num dia em que a fossa séptica estivesse cheia, de modo que uma gosma nojenta e espumosa escorria pelo auditório e lambia os pés do velho pianista Constantin Petit”.
Ainda assim, Magritte, explica Danchev, “era um terror só em meio período. Durante sua adolescência, ele tinha um vício secreto: estava aprendendo a pintar”. Sua mente rodava entre a escatologia e as personagens de pulp fiction e do cinema. Encontrou o amor aos 14 anos, quando conheceu sua futura esposa, Georgette Berger, à época com 12 anos.
Mais tarde, já como casal, os Magritte viveram vários anos em Paris, e ele viajou para a Inglaterra a pedido de Edward James, um proeminente patrono surrealista. Na maior parte do tempo, porém, havia uma quietude externa e uma rotina quase implacável na vida dos Magritte em Bruxelas. Georgette era musa e modelo de René. Seu trabalho artístico e publicitário era interrompido por passeios com uma série de cães (lulus-da-pomerânia chamados Loulou ou Jackie), por refeições cuidadosamente planejadas e por encontros com amigos artistas e literatos.
O casamento não era tão plácido quanto parecia, muito menos a arte de Magritte. Seu pensamento, assim como a transmogrificação, liberação ou obliteração de suas figuras genéricas, era silenciosamente revolucionário. O surrealismo de Magritte não era uma erupção do inconsciente como, digamos, o de Salvador Dalí. Era uma provocação esquerdista, com partes iguais de “charme e ameaça”, como Magritte insistia com o líder dos surrealistas de Paris, André Breton. A intenção era provocar “uma grave crise de consciência”.
‘Le Modèle rouge’, por exemplo – uma pintura que mostra botas de trabalho que aos poucos vão virando pés descalços – revela, como disse Magritte, “que a união de um pé humano com um sapato de couro é na verdade um costume monstruoso”. Desse modo, Magritte, que era um leitor vastíssimo, inspirava-se na teoria marxista para pensar nas questões de exploração e desumanidade.
Mas o que o motivou a pintar imitações de companheiros surrealistas e de Ticiano e a se envolver com falsificação? Danchev só pode especular: travessura, ideologia ou simplesmente necessidade de dinheiro? Afinal, para os Magritte, o dinheiro ficou apertado até o final de sua carreira.
Depois, há o suicídio da mãe, tópico em torno do qual Magritte mantinha um silêncio de aço. Danchev peneirou diligentemente as evidências de quanto o jovem René vira e ouvira seu declínio e morte, mas depois permite que reine o silêncio de Magritte.
Alguns estudiosos tentaram entender suas portas para lugar nenhum, suas cabeças cobertas e corpos expostos, sua indefinição entre animado e inanimado, vivo e morto, pelo ponto de vista psicanalítico. Não parece ser uma abordagem com a qual Danchev se sentisse desconfortável, mas talvez fosse importante para o mistério de Magritte, que continua longe de ser resolvido.
E talvez nunca seja. “Ele não falava sobre as coisas que o tocavam profundamente”, disse Georgette. “Ele as pintava”.
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Alexander C. Kafka escreve sobre livros e artes para o Washington Post, Boston Globe e outras publicações. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU
Magritte: A Life
Alex Danchev, com Sarah Whitfield
Pantheon - 464 páginas - US $ 45