Uma obra de ficção pode ser invasão de privacidade?


O romance mais recente de Emmanuel Carrère, 'Yoga', gerou um debate na França depois de a sua mulher, Hélène Devynck acusá-lo de escrever sobre ela sem o seu consentimento

Por Laura Cappelle

Quando escritores se defrontam com uma forte reação contrária por parte de pessoas amadas, em geral a disputa se centraliza na questão de até onde as suas indiscrições podem chegar. Mas o que acontece quando uma pessoa não deseja mais aparecer na obra de um antigo parceiro?

O escritor francês Emmanuel Carrere Foto: Alex Cretey-Systermans/The New York Times

O mundo literário francês está às voltas com essa questão desde o lançamento, em agosto, do último romance de Emmanuel Carrère, Yoga. Carrère, 62 anos, é um dos mais celebrados escritores da França e havia sugestões de que o livro, publicado pelas Éditions POL, seria um dos indicados ao prêmio Goncourt, um dos mais cobiçados prêmios literários franceses. Mas depois surgiram controvérsias envolvendo lacunas nessa sua narrativa essencialmente autobiográfica e a revelação feita pela ex-mulher do autor, a jornalista Hélène Devynck, de que ele estava legalmente impedido de escrever sobre ela sem o consentimento dela - um acordo que, segundo afirmou, foi violado por ele.

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Esta disputa provocou uma divisão na França onde a liberdade artística é sagrada. Alguns afirmam que Hélène mal aparece no livro, que já vendeu 210 mil exemplares. Outros consideram o inusitado acordo um sinal de como as mulheres vêm encontrando novas maneiras de retomar o controle das suas próprias narrativas, especialmente depois de uma separação contenciosa.

À parte o divórcio, concluído em março, Carrère havia concordado que o consentimento da ex-esposa para ser usada como personagem de um livro não mais poderia ser considerado tácito. O escritor estava obrigado a submeter à avaliação da jornalista quaisquer passagens do livro em que ela aparece, antes da sua publicação, e realizar os cortes exigidos. E as razões não precisavam ser dadas.

No campo da literatura, tem se observado muitas disputas legais envolvendo obras de não ficção ou autobiográficas. Na França, o escritor Raphaël Enthoven foi processado por seu ex-sogro pela descrição nada camuflada que o escritor fez dele no romance Le Temps Gagné (Tempo Salvo). Na Noruega, a autobiografia épica de Karl Ove Knausgaard, Minha Luta, provocou debates em todo o país sobre o que foi considerado um retrato degradante de parentes dele, incluindo seu pai alcoólatra.

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Quando Carrère surgiu na cena literária foi considerado um escritor de envergadura. Ele começou a escrever livros de não ficção desde que lançou, em 2000, seu livro O Adversário. Hélène Devynk, com quem manteve uma relação de 2003 a 2018 e se casou em 2011, apareceu com destaque em vários livros dele. Outras Vidas que não a Minha, por exemplo, inicia com o casal em Sri Lanka durante o tsunami ocorrido em 2004, e conta detalhes da morte da irmã de Hèlène, Juliette, de câncer.

Yoga narra a queda do escritor numa depressão que começou em 2015, como também sua permanência num hospital psiquiátrico e o posterior diagnóstico de bipolaridade. Durante esses anos, disse ele numa entrevista no mês passado, Hélène “foi a personagem mais importante em minha vida”. Embora ela tenha praticamente quase desaparecido no livro depois dos cortes exigidos, um capítulo do livro continuou a gerar conflito entre eles.

Quase no final do livro de 392 páginas, Carrière insere uma página e meia do seu romance Outras Vidas que Não a Minha em que credita sua crença de que sua vida “foi bem-sucedida” à sua relação com Hélène”, um trecho que é acompanhado por um breve comentário: “Sabia que um amor assim era raro e quem permite que ele morra está condenado ao arrependimento”.

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“Eu exigi que esse capítulo fosse removido desde o início”, disse Hélène em uma entrevista por telefone. Carrère entende que está dentro dos seus direitos. “Posso ser proibido de escrever coisas, mas não de já tê-las escrito. É uma rejeição excessiva”.

Em seguida à publicação do livro, Hélène pensou entrar com uma ação legal antes de desistir: “uma vez publicado, o que posso fazer? Ganhou a má fé”, disse ela.

Os leitores americanos terão de esperar pelo livro. Embora a editora Farrar, Straus and Giroux planeje publicar uma versão inglesa de Yoga nos Estados Unidos, não há ainda uma data para a publicação.

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Hélène Devynck disse ter exigido a cláusula no divórcio depois de ver que havia precedentes legais na França favorecendo muito os autores quando descrevem parentes ou amigos que não querem se ver retratados em seus livros. Segundo o advogado Laurent Merlet, os autores de uma ação desse tipo “têm de provar que foram gravemente prejudicados”. E acrescentou que não conhecia nenhum caso anterior na França de um acordo como o firmado por Emmanuel Carrère e Hélène Devynck.

Hélène afirmou que só ficou sabendo da existência e da planejada publicação de Yoga alguns dias depois de concluído o divórcio. Quando recebeu o manuscrito não reconheceu a cronologia nem os detalhes dos eventos descritos pelo escritor. “A história relatada no livro é totalmente falsa - não tem nada a ver com o que minha família e eu passamos”, disse.

Em Yoga, Carrère descreve uma estadia de dois meses com imigrantes afegãos na Grécia, dizendo ter sido um período de recuperação da sua doença. Na realidade, disse a ex-mulher, a viagem durou apenas dois dias e foi realizada antes da sua permanência no hospital.

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Em março ela requereu que todas as menções feitas a ela e sua filha de 14 anos (a lei francesa exige o consentimento dos pais para que menores sejam retratados numa obra) fossem removidas. Segundo disse, o escritor resistiu. Numa segunda versão do manuscrito que lhe foi enviada havia ainda mais alusões a ela, o que desencadeou, nas suas palavras, “uma feroz batalha legal para conseguir que ele eliminasse meu personagem. “Não havia nenhum respeito, nenhuma boa vontade”.

Emmanuel Carrère foi surpreendido pela extensão dos cortes. "Achei que ela pediria para cortar apenas uma ou outra coisa. Era o seu direito. Não ia discutir”. Ele fez mudanças importantes no livro, acrescentando ou mesmo modificando outros personagens e escreveu: “Não posso dizer sobre este o que disse presunçosamente sobre vários outros: “tudo aqui é verdadeiro”.

Ele se reconcilia consigo mesmo no formato final de Yoga: “Talvez o fato de o luto deste amor existir apenas como um espaço em branco seja uma maneira eloquente de expressá-lo”. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

Quando escritores se defrontam com uma forte reação contrária por parte de pessoas amadas, em geral a disputa se centraliza na questão de até onde as suas indiscrições podem chegar. Mas o que acontece quando uma pessoa não deseja mais aparecer na obra de um antigo parceiro?

O escritor francês Emmanuel Carrere Foto: Alex Cretey-Systermans/The New York Times

O mundo literário francês está às voltas com essa questão desde o lançamento, em agosto, do último romance de Emmanuel Carrère, Yoga. Carrère, 62 anos, é um dos mais celebrados escritores da França e havia sugestões de que o livro, publicado pelas Éditions POL, seria um dos indicados ao prêmio Goncourt, um dos mais cobiçados prêmios literários franceses. Mas depois surgiram controvérsias envolvendo lacunas nessa sua narrativa essencialmente autobiográfica e a revelação feita pela ex-mulher do autor, a jornalista Hélène Devynck, de que ele estava legalmente impedido de escrever sobre ela sem o consentimento dela - um acordo que, segundo afirmou, foi violado por ele.

Esta disputa provocou uma divisão na França onde a liberdade artística é sagrada. Alguns afirmam que Hélène mal aparece no livro, que já vendeu 210 mil exemplares. Outros consideram o inusitado acordo um sinal de como as mulheres vêm encontrando novas maneiras de retomar o controle das suas próprias narrativas, especialmente depois de uma separação contenciosa.

À parte o divórcio, concluído em março, Carrère havia concordado que o consentimento da ex-esposa para ser usada como personagem de um livro não mais poderia ser considerado tácito. O escritor estava obrigado a submeter à avaliação da jornalista quaisquer passagens do livro em que ela aparece, antes da sua publicação, e realizar os cortes exigidos. E as razões não precisavam ser dadas.

No campo da literatura, tem se observado muitas disputas legais envolvendo obras de não ficção ou autobiográficas. Na França, o escritor Raphaël Enthoven foi processado por seu ex-sogro pela descrição nada camuflada que o escritor fez dele no romance Le Temps Gagné (Tempo Salvo). Na Noruega, a autobiografia épica de Karl Ove Knausgaard, Minha Luta, provocou debates em todo o país sobre o que foi considerado um retrato degradante de parentes dele, incluindo seu pai alcoólatra.

Quando Carrère surgiu na cena literária foi considerado um escritor de envergadura. Ele começou a escrever livros de não ficção desde que lançou, em 2000, seu livro O Adversário. Hélène Devynk, com quem manteve uma relação de 2003 a 2018 e se casou em 2011, apareceu com destaque em vários livros dele. Outras Vidas que não a Minha, por exemplo, inicia com o casal em Sri Lanka durante o tsunami ocorrido em 2004, e conta detalhes da morte da irmã de Hèlène, Juliette, de câncer.

Yoga narra a queda do escritor numa depressão que começou em 2015, como também sua permanência num hospital psiquiátrico e o posterior diagnóstico de bipolaridade. Durante esses anos, disse ele numa entrevista no mês passado, Hélène “foi a personagem mais importante em minha vida”. Embora ela tenha praticamente quase desaparecido no livro depois dos cortes exigidos, um capítulo do livro continuou a gerar conflito entre eles.

Quase no final do livro de 392 páginas, Carrière insere uma página e meia do seu romance Outras Vidas que Não a Minha em que credita sua crença de que sua vida “foi bem-sucedida” à sua relação com Hélène”, um trecho que é acompanhado por um breve comentário: “Sabia que um amor assim era raro e quem permite que ele morra está condenado ao arrependimento”.

“Eu exigi que esse capítulo fosse removido desde o início”, disse Hélène em uma entrevista por telefone. Carrère entende que está dentro dos seus direitos. “Posso ser proibido de escrever coisas, mas não de já tê-las escrito. É uma rejeição excessiva”.

Em seguida à publicação do livro, Hélène pensou entrar com uma ação legal antes de desistir: “uma vez publicado, o que posso fazer? Ganhou a má fé”, disse ela.

Os leitores americanos terão de esperar pelo livro. Embora a editora Farrar, Straus and Giroux planeje publicar uma versão inglesa de Yoga nos Estados Unidos, não há ainda uma data para a publicação.

Hélène Devynck disse ter exigido a cláusula no divórcio depois de ver que havia precedentes legais na França favorecendo muito os autores quando descrevem parentes ou amigos que não querem se ver retratados em seus livros. Segundo o advogado Laurent Merlet, os autores de uma ação desse tipo “têm de provar que foram gravemente prejudicados”. E acrescentou que não conhecia nenhum caso anterior na França de um acordo como o firmado por Emmanuel Carrère e Hélène Devynck.

Hélène afirmou que só ficou sabendo da existência e da planejada publicação de Yoga alguns dias depois de concluído o divórcio. Quando recebeu o manuscrito não reconheceu a cronologia nem os detalhes dos eventos descritos pelo escritor. “A história relatada no livro é totalmente falsa - não tem nada a ver com o que minha família e eu passamos”, disse.

Em Yoga, Carrère descreve uma estadia de dois meses com imigrantes afegãos na Grécia, dizendo ter sido um período de recuperação da sua doença. Na realidade, disse a ex-mulher, a viagem durou apenas dois dias e foi realizada antes da sua permanência no hospital.

Em março ela requereu que todas as menções feitas a ela e sua filha de 14 anos (a lei francesa exige o consentimento dos pais para que menores sejam retratados numa obra) fossem removidas. Segundo disse, o escritor resistiu. Numa segunda versão do manuscrito que lhe foi enviada havia ainda mais alusões a ela, o que desencadeou, nas suas palavras, “uma feroz batalha legal para conseguir que ele eliminasse meu personagem. “Não havia nenhum respeito, nenhuma boa vontade”.

Emmanuel Carrère foi surpreendido pela extensão dos cortes. "Achei que ela pediria para cortar apenas uma ou outra coisa. Era o seu direito. Não ia discutir”. Ele fez mudanças importantes no livro, acrescentando ou mesmo modificando outros personagens e escreveu: “Não posso dizer sobre este o que disse presunçosamente sobre vários outros: “tudo aqui é verdadeiro”.

Ele se reconcilia consigo mesmo no formato final de Yoga: “Talvez o fato de o luto deste amor existir apenas como um espaço em branco seja uma maneira eloquente de expressá-lo”. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

Quando escritores se defrontam com uma forte reação contrária por parte de pessoas amadas, em geral a disputa se centraliza na questão de até onde as suas indiscrições podem chegar. Mas o que acontece quando uma pessoa não deseja mais aparecer na obra de um antigo parceiro?

O escritor francês Emmanuel Carrere Foto: Alex Cretey-Systermans/The New York Times

O mundo literário francês está às voltas com essa questão desde o lançamento, em agosto, do último romance de Emmanuel Carrère, Yoga. Carrère, 62 anos, é um dos mais celebrados escritores da França e havia sugestões de que o livro, publicado pelas Éditions POL, seria um dos indicados ao prêmio Goncourt, um dos mais cobiçados prêmios literários franceses. Mas depois surgiram controvérsias envolvendo lacunas nessa sua narrativa essencialmente autobiográfica e a revelação feita pela ex-mulher do autor, a jornalista Hélène Devynck, de que ele estava legalmente impedido de escrever sobre ela sem o consentimento dela - um acordo que, segundo afirmou, foi violado por ele.

Esta disputa provocou uma divisão na França onde a liberdade artística é sagrada. Alguns afirmam que Hélène mal aparece no livro, que já vendeu 210 mil exemplares. Outros consideram o inusitado acordo um sinal de como as mulheres vêm encontrando novas maneiras de retomar o controle das suas próprias narrativas, especialmente depois de uma separação contenciosa.

À parte o divórcio, concluído em março, Carrère havia concordado que o consentimento da ex-esposa para ser usada como personagem de um livro não mais poderia ser considerado tácito. O escritor estava obrigado a submeter à avaliação da jornalista quaisquer passagens do livro em que ela aparece, antes da sua publicação, e realizar os cortes exigidos. E as razões não precisavam ser dadas.

No campo da literatura, tem se observado muitas disputas legais envolvendo obras de não ficção ou autobiográficas. Na França, o escritor Raphaël Enthoven foi processado por seu ex-sogro pela descrição nada camuflada que o escritor fez dele no romance Le Temps Gagné (Tempo Salvo). Na Noruega, a autobiografia épica de Karl Ove Knausgaard, Minha Luta, provocou debates em todo o país sobre o que foi considerado um retrato degradante de parentes dele, incluindo seu pai alcoólatra.

Quando Carrère surgiu na cena literária foi considerado um escritor de envergadura. Ele começou a escrever livros de não ficção desde que lançou, em 2000, seu livro O Adversário. Hélène Devynk, com quem manteve uma relação de 2003 a 2018 e se casou em 2011, apareceu com destaque em vários livros dele. Outras Vidas que não a Minha, por exemplo, inicia com o casal em Sri Lanka durante o tsunami ocorrido em 2004, e conta detalhes da morte da irmã de Hèlène, Juliette, de câncer.

Yoga narra a queda do escritor numa depressão que começou em 2015, como também sua permanência num hospital psiquiátrico e o posterior diagnóstico de bipolaridade. Durante esses anos, disse ele numa entrevista no mês passado, Hélène “foi a personagem mais importante em minha vida”. Embora ela tenha praticamente quase desaparecido no livro depois dos cortes exigidos, um capítulo do livro continuou a gerar conflito entre eles.

Quase no final do livro de 392 páginas, Carrière insere uma página e meia do seu romance Outras Vidas que Não a Minha em que credita sua crença de que sua vida “foi bem-sucedida” à sua relação com Hélène”, um trecho que é acompanhado por um breve comentário: “Sabia que um amor assim era raro e quem permite que ele morra está condenado ao arrependimento”.

“Eu exigi que esse capítulo fosse removido desde o início”, disse Hélène em uma entrevista por telefone. Carrère entende que está dentro dos seus direitos. “Posso ser proibido de escrever coisas, mas não de já tê-las escrito. É uma rejeição excessiva”.

Em seguida à publicação do livro, Hélène pensou entrar com uma ação legal antes de desistir: “uma vez publicado, o que posso fazer? Ganhou a má fé”, disse ela.

Os leitores americanos terão de esperar pelo livro. Embora a editora Farrar, Straus and Giroux planeje publicar uma versão inglesa de Yoga nos Estados Unidos, não há ainda uma data para a publicação.

Hélène Devynck disse ter exigido a cláusula no divórcio depois de ver que havia precedentes legais na França favorecendo muito os autores quando descrevem parentes ou amigos que não querem se ver retratados em seus livros. Segundo o advogado Laurent Merlet, os autores de uma ação desse tipo “têm de provar que foram gravemente prejudicados”. E acrescentou que não conhecia nenhum caso anterior na França de um acordo como o firmado por Emmanuel Carrère e Hélène Devynck.

Hélène afirmou que só ficou sabendo da existência e da planejada publicação de Yoga alguns dias depois de concluído o divórcio. Quando recebeu o manuscrito não reconheceu a cronologia nem os detalhes dos eventos descritos pelo escritor. “A história relatada no livro é totalmente falsa - não tem nada a ver com o que minha família e eu passamos”, disse.

Em Yoga, Carrère descreve uma estadia de dois meses com imigrantes afegãos na Grécia, dizendo ter sido um período de recuperação da sua doença. Na realidade, disse a ex-mulher, a viagem durou apenas dois dias e foi realizada antes da sua permanência no hospital.

Em março ela requereu que todas as menções feitas a ela e sua filha de 14 anos (a lei francesa exige o consentimento dos pais para que menores sejam retratados numa obra) fossem removidas. Segundo disse, o escritor resistiu. Numa segunda versão do manuscrito que lhe foi enviada havia ainda mais alusões a ela, o que desencadeou, nas suas palavras, “uma feroz batalha legal para conseguir que ele eliminasse meu personagem. “Não havia nenhum respeito, nenhuma boa vontade”.

Emmanuel Carrère foi surpreendido pela extensão dos cortes. "Achei que ela pediria para cortar apenas uma ou outra coisa. Era o seu direito. Não ia discutir”. Ele fez mudanças importantes no livro, acrescentando ou mesmo modificando outros personagens e escreveu: “Não posso dizer sobre este o que disse presunçosamente sobre vários outros: “tudo aqui é verdadeiro”.

Ele se reconcilia consigo mesmo no formato final de Yoga: “Talvez o fato de o luto deste amor existir apenas como um espaço em branco seja uma maneira eloquente de expressá-lo”. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

Quando escritores se defrontam com uma forte reação contrária por parte de pessoas amadas, em geral a disputa se centraliza na questão de até onde as suas indiscrições podem chegar. Mas o que acontece quando uma pessoa não deseja mais aparecer na obra de um antigo parceiro?

O escritor francês Emmanuel Carrere Foto: Alex Cretey-Systermans/The New York Times

O mundo literário francês está às voltas com essa questão desde o lançamento, em agosto, do último romance de Emmanuel Carrère, Yoga. Carrère, 62 anos, é um dos mais celebrados escritores da França e havia sugestões de que o livro, publicado pelas Éditions POL, seria um dos indicados ao prêmio Goncourt, um dos mais cobiçados prêmios literários franceses. Mas depois surgiram controvérsias envolvendo lacunas nessa sua narrativa essencialmente autobiográfica e a revelação feita pela ex-mulher do autor, a jornalista Hélène Devynck, de que ele estava legalmente impedido de escrever sobre ela sem o consentimento dela - um acordo que, segundo afirmou, foi violado por ele.

Esta disputa provocou uma divisão na França onde a liberdade artística é sagrada. Alguns afirmam que Hélène mal aparece no livro, que já vendeu 210 mil exemplares. Outros consideram o inusitado acordo um sinal de como as mulheres vêm encontrando novas maneiras de retomar o controle das suas próprias narrativas, especialmente depois de uma separação contenciosa.

À parte o divórcio, concluído em março, Carrère havia concordado que o consentimento da ex-esposa para ser usada como personagem de um livro não mais poderia ser considerado tácito. O escritor estava obrigado a submeter à avaliação da jornalista quaisquer passagens do livro em que ela aparece, antes da sua publicação, e realizar os cortes exigidos. E as razões não precisavam ser dadas.

No campo da literatura, tem se observado muitas disputas legais envolvendo obras de não ficção ou autobiográficas. Na França, o escritor Raphaël Enthoven foi processado por seu ex-sogro pela descrição nada camuflada que o escritor fez dele no romance Le Temps Gagné (Tempo Salvo). Na Noruega, a autobiografia épica de Karl Ove Knausgaard, Minha Luta, provocou debates em todo o país sobre o que foi considerado um retrato degradante de parentes dele, incluindo seu pai alcoólatra.

Quando Carrère surgiu na cena literária foi considerado um escritor de envergadura. Ele começou a escrever livros de não ficção desde que lançou, em 2000, seu livro O Adversário. Hélène Devynk, com quem manteve uma relação de 2003 a 2018 e se casou em 2011, apareceu com destaque em vários livros dele. Outras Vidas que não a Minha, por exemplo, inicia com o casal em Sri Lanka durante o tsunami ocorrido em 2004, e conta detalhes da morte da irmã de Hèlène, Juliette, de câncer.

Yoga narra a queda do escritor numa depressão que começou em 2015, como também sua permanência num hospital psiquiátrico e o posterior diagnóstico de bipolaridade. Durante esses anos, disse ele numa entrevista no mês passado, Hélène “foi a personagem mais importante em minha vida”. Embora ela tenha praticamente quase desaparecido no livro depois dos cortes exigidos, um capítulo do livro continuou a gerar conflito entre eles.

Quase no final do livro de 392 páginas, Carrière insere uma página e meia do seu romance Outras Vidas que Não a Minha em que credita sua crença de que sua vida “foi bem-sucedida” à sua relação com Hélène”, um trecho que é acompanhado por um breve comentário: “Sabia que um amor assim era raro e quem permite que ele morra está condenado ao arrependimento”.

“Eu exigi que esse capítulo fosse removido desde o início”, disse Hélène em uma entrevista por telefone. Carrère entende que está dentro dos seus direitos. “Posso ser proibido de escrever coisas, mas não de já tê-las escrito. É uma rejeição excessiva”.

Em seguida à publicação do livro, Hélène pensou entrar com uma ação legal antes de desistir: “uma vez publicado, o que posso fazer? Ganhou a má fé”, disse ela.

Os leitores americanos terão de esperar pelo livro. Embora a editora Farrar, Straus and Giroux planeje publicar uma versão inglesa de Yoga nos Estados Unidos, não há ainda uma data para a publicação.

Hélène Devynck disse ter exigido a cláusula no divórcio depois de ver que havia precedentes legais na França favorecendo muito os autores quando descrevem parentes ou amigos que não querem se ver retratados em seus livros. Segundo o advogado Laurent Merlet, os autores de uma ação desse tipo “têm de provar que foram gravemente prejudicados”. E acrescentou que não conhecia nenhum caso anterior na França de um acordo como o firmado por Emmanuel Carrère e Hélène Devynck.

Hélène afirmou que só ficou sabendo da existência e da planejada publicação de Yoga alguns dias depois de concluído o divórcio. Quando recebeu o manuscrito não reconheceu a cronologia nem os detalhes dos eventos descritos pelo escritor. “A história relatada no livro é totalmente falsa - não tem nada a ver com o que minha família e eu passamos”, disse.

Em Yoga, Carrère descreve uma estadia de dois meses com imigrantes afegãos na Grécia, dizendo ter sido um período de recuperação da sua doença. Na realidade, disse a ex-mulher, a viagem durou apenas dois dias e foi realizada antes da sua permanência no hospital.

Em março ela requereu que todas as menções feitas a ela e sua filha de 14 anos (a lei francesa exige o consentimento dos pais para que menores sejam retratados numa obra) fossem removidas. Segundo disse, o escritor resistiu. Numa segunda versão do manuscrito que lhe foi enviada havia ainda mais alusões a ela, o que desencadeou, nas suas palavras, “uma feroz batalha legal para conseguir que ele eliminasse meu personagem. “Não havia nenhum respeito, nenhuma boa vontade”.

Emmanuel Carrère foi surpreendido pela extensão dos cortes. "Achei que ela pediria para cortar apenas uma ou outra coisa. Era o seu direito. Não ia discutir”. Ele fez mudanças importantes no livro, acrescentando ou mesmo modificando outros personagens e escreveu: “Não posso dizer sobre este o que disse presunçosamente sobre vários outros: “tudo aqui é verdadeiro”.

Ele se reconcilia consigo mesmo no formato final de Yoga: “Talvez o fato de o luto deste amor existir apenas como um espaço em branco seja uma maneira eloquente de expressá-lo”. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

Quando escritores se defrontam com uma forte reação contrária por parte de pessoas amadas, em geral a disputa se centraliza na questão de até onde as suas indiscrições podem chegar. Mas o que acontece quando uma pessoa não deseja mais aparecer na obra de um antigo parceiro?

O escritor francês Emmanuel Carrere Foto: Alex Cretey-Systermans/The New York Times

O mundo literário francês está às voltas com essa questão desde o lançamento, em agosto, do último romance de Emmanuel Carrère, Yoga. Carrère, 62 anos, é um dos mais celebrados escritores da França e havia sugestões de que o livro, publicado pelas Éditions POL, seria um dos indicados ao prêmio Goncourt, um dos mais cobiçados prêmios literários franceses. Mas depois surgiram controvérsias envolvendo lacunas nessa sua narrativa essencialmente autobiográfica e a revelação feita pela ex-mulher do autor, a jornalista Hélène Devynck, de que ele estava legalmente impedido de escrever sobre ela sem o consentimento dela - um acordo que, segundo afirmou, foi violado por ele.

Esta disputa provocou uma divisão na França onde a liberdade artística é sagrada. Alguns afirmam que Hélène mal aparece no livro, que já vendeu 210 mil exemplares. Outros consideram o inusitado acordo um sinal de como as mulheres vêm encontrando novas maneiras de retomar o controle das suas próprias narrativas, especialmente depois de uma separação contenciosa.

À parte o divórcio, concluído em março, Carrère havia concordado que o consentimento da ex-esposa para ser usada como personagem de um livro não mais poderia ser considerado tácito. O escritor estava obrigado a submeter à avaliação da jornalista quaisquer passagens do livro em que ela aparece, antes da sua publicação, e realizar os cortes exigidos. E as razões não precisavam ser dadas.

No campo da literatura, tem se observado muitas disputas legais envolvendo obras de não ficção ou autobiográficas. Na França, o escritor Raphaël Enthoven foi processado por seu ex-sogro pela descrição nada camuflada que o escritor fez dele no romance Le Temps Gagné (Tempo Salvo). Na Noruega, a autobiografia épica de Karl Ove Knausgaard, Minha Luta, provocou debates em todo o país sobre o que foi considerado um retrato degradante de parentes dele, incluindo seu pai alcoólatra.

Quando Carrère surgiu na cena literária foi considerado um escritor de envergadura. Ele começou a escrever livros de não ficção desde que lançou, em 2000, seu livro O Adversário. Hélène Devynk, com quem manteve uma relação de 2003 a 2018 e se casou em 2011, apareceu com destaque em vários livros dele. Outras Vidas que não a Minha, por exemplo, inicia com o casal em Sri Lanka durante o tsunami ocorrido em 2004, e conta detalhes da morte da irmã de Hèlène, Juliette, de câncer.

Yoga narra a queda do escritor numa depressão que começou em 2015, como também sua permanência num hospital psiquiátrico e o posterior diagnóstico de bipolaridade. Durante esses anos, disse ele numa entrevista no mês passado, Hélène “foi a personagem mais importante em minha vida”. Embora ela tenha praticamente quase desaparecido no livro depois dos cortes exigidos, um capítulo do livro continuou a gerar conflito entre eles.

Quase no final do livro de 392 páginas, Carrière insere uma página e meia do seu romance Outras Vidas que Não a Minha em que credita sua crença de que sua vida “foi bem-sucedida” à sua relação com Hélène”, um trecho que é acompanhado por um breve comentário: “Sabia que um amor assim era raro e quem permite que ele morra está condenado ao arrependimento”.

“Eu exigi que esse capítulo fosse removido desde o início”, disse Hélène em uma entrevista por telefone. Carrère entende que está dentro dos seus direitos. “Posso ser proibido de escrever coisas, mas não de já tê-las escrito. É uma rejeição excessiva”.

Em seguida à publicação do livro, Hélène pensou entrar com uma ação legal antes de desistir: “uma vez publicado, o que posso fazer? Ganhou a má fé”, disse ela.

Os leitores americanos terão de esperar pelo livro. Embora a editora Farrar, Straus and Giroux planeje publicar uma versão inglesa de Yoga nos Estados Unidos, não há ainda uma data para a publicação.

Hélène Devynck disse ter exigido a cláusula no divórcio depois de ver que havia precedentes legais na França favorecendo muito os autores quando descrevem parentes ou amigos que não querem se ver retratados em seus livros. Segundo o advogado Laurent Merlet, os autores de uma ação desse tipo “têm de provar que foram gravemente prejudicados”. E acrescentou que não conhecia nenhum caso anterior na França de um acordo como o firmado por Emmanuel Carrère e Hélène Devynck.

Hélène afirmou que só ficou sabendo da existência e da planejada publicação de Yoga alguns dias depois de concluído o divórcio. Quando recebeu o manuscrito não reconheceu a cronologia nem os detalhes dos eventos descritos pelo escritor. “A história relatada no livro é totalmente falsa - não tem nada a ver com o que minha família e eu passamos”, disse.

Em Yoga, Carrère descreve uma estadia de dois meses com imigrantes afegãos na Grécia, dizendo ter sido um período de recuperação da sua doença. Na realidade, disse a ex-mulher, a viagem durou apenas dois dias e foi realizada antes da sua permanência no hospital.

Em março ela requereu que todas as menções feitas a ela e sua filha de 14 anos (a lei francesa exige o consentimento dos pais para que menores sejam retratados numa obra) fossem removidas. Segundo disse, o escritor resistiu. Numa segunda versão do manuscrito que lhe foi enviada havia ainda mais alusões a ela, o que desencadeou, nas suas palavras, “uma feroz batalha legal para conseguir que ele eliminasse meu personagem. “Não havia nenhum respeito, nenhuma boa vontade”.

Emmanuel Carrère foi surpreendido pela extensão dos cortes. "Achei que ela pediria para cortar apenas uma ou outra coisa. Era o seu direito. Não ia discutir”. Ele fez mudanças importantes no livro, acrescentando ou mesmo modificando outros personagens e escreveu: “Não posso dizer sobre este o que disse presunçosamente sobre vários outros: “tudo aqui é verdadeiro”.

Ele se reconcilia consigo mesmo no formato final de Yoga: “Talvez o fato de o luto deste amor existir apenas como um espaço em branco seja uma maneira eloquente de expressá-lo”. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

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