Não causam surpresa as especulações despertadas pelo estado de saúde de Kate Middleton, mulher do Príncipe William da Inglaterra, após sua cirurgia e desaparecimento do espaço público que ocupava.
Frente à crescente curiosidade popular, o Palácio de Buckingham tentou afirmar que estava tudo bem, divulgando uma foto com a sorridente Kate cercada de seus também sorridentes filhos. Mas logo verificou-se que tal foto fora retocada, era uma contrafação forjada. Frente ao vexame, o palácio foi forçado a se retratar e a finalmente revelar a “verdade” – seu câncer e os pedidos para que fosse respeitada sua “privacidade”.
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Esse acontecimento levanta algumas questões.
Verdade oficial e verdade provisória
A primeira é a da “verdade” apregoada nos depoimentos “oficiais”. Ingenuamente o público pensa que as informações que lhe são fornecidas com a chancela do poder vigente são verídicas e merecem crédito total. Ignora ele que, na maioria das vezes, o que lhe é oferecido não é necessariamente a “verdade”, mesmo porque configurar o que seja “verdade” é um problema de magna complexidade filosófica.
O que ele recebe como tal é apenas o que atende circunstancialmente a suas exigências e aos interesses dos detentores do poder. Como ilustra o caso de Kate, o Palácio, ao ser pressionado, dá uma falsa informação. Somente ao ser pego em flagrante mentira, entrega uma “verdade” provisória, ad hoc.
Direito à privacidade
A segunda diz respeito à “privacidade”. Vivemos numa sociedade em que os limites entre o público e o privado são muito tênues. Celebridades de diferentes matizes e calibres se exibem deliberadamente ao olhar público, alimentando o imaginário coletivo, que as vê como pessoas idealizadas ou demonizadas, sobre as quais são feitas projeções que ajudam o simples mortal a levar sua pobre vidinha, longe das paragens olímpicas onde supostamente vivem aqueles privilegiados.
Mais recentemente, mirando-se no exemplo dessas figuras, as pessoas comuns passaram a se expor com semelhante desembaraço, o que foi possibilitado pela tecnologia digital e as redes sociais, em que cada pessoa se transformou num cronista social de si mesmo, publicando fotos e dando notícias de suas andanças e feitos, por mais modestos e constrangedores que sejam.
Entre as celebridades, a família real britânica sempre ocupou um lugar especial. A doença grave de Kate, futura rainha da Inglaterra, transcende a esfera pessoal e tem reflexos na política. Assim, a cobrança por informações sobre seu estado não se configura como uma quebra da privacidade.
É legítimo que o público inglês (e não apenas) exija informações fidedignas, assim como é necessário fazer uma discriminação entre essa exigência de divulgação e a dimensão íntima e familiar do drama, que deve, este sim, ser respeitado e resguardado.
De qualquer forma, é paradoxal a busca por “privacidade” num mundo em que o exibicionismo ostensivo é a norma, compatível que é com a sociedade do espetáculo descrita por Guy Debord.
A morte no centro do palco
A terceira questão, talvez a mais importante, se evidencia na já mencionada forma atabalhoada com a qual o Palácio de Buckingham lidou com a doença de Kate. É que ela, a doença, traz a presença da morte para o centro do palco, tirando-a dos bastidores, para onde ela é costumeiramente enxotada.
Não é de bom tom falar de doenças e mortes. São assuntos evitados de maneira geral, quer seja na mídia – tomada pelo entretenimento e estímulo ao consumo – quer seja nas relações sociais. Ela só é tolerada nas relações pessoais mais intimas e próximas.
Um bom exemplo literário é Mrs Dolloway, personagem de Virginia Woolf, que fica chocada quando um convidado menciona “morte”, palavra aziaga que poderia estragar definitivamente sua festa, introduzindo o mau agouro em sua casa.
Kate – mulher bonita, jovem, situada no topo do mundo, para quem parecia garantido um futuro de crescente glória e poder - repentinamente se depara com a inquietante majestade da morte, que a confronta com a limitação e a fragilidade humanas.
Esperemos que, nesse combate, as forças da vida prevaleçam e Kate saia vitoriosa. Mas o fato é que, assustados, somos forçados a lembrar que o que acontece com Kate – esse encontro fatal - pode acontecer, vai acontecer com todos nós. “Tu és pó e ao pó voltarás”. Duras e belas palavras que devíamos não esquecer e, sim, ter como a mais importante bússola para nos orientar na vida.