Distante da “Rainha das Estradas” da Roma Antiga, a Via Ápia de Geovani Martins é o coração da Rocinha, a maior favela da América Latina. Não apenas um mundo, com seus becos e vielas, a Rocinha é também - no romance - o mundo. E nele vivem cinco jovens em seus anos de formação: os irmãos Washington e Wesley e os amigos Murilo, Douglas e Biel. Nos cruzamentos da Via Ápia, o cotidiano dos rapazes se entrelaça, entre as experiências da juventude e a violência da repressão. Contudo, eles têm a rotina irremediavelmente rompida com a instalação das UPPs, as Unidades Pacificadoras.
Em 2018, Geovani Martins estreou na literatura com o volume O Sol na Cabeça, irradiando sucesso. O conto parecia ser a forma apropriada para a matéria de Martins: a violência que se alastra pela vida dos moradores das favelas, em meio à década de 2010 – marcada pelo aprofundamento de questões e agitações sociais. No histórico brasileiro, a narrativa breve já havia servido ao realismo cru de autores distintos, como Rubem Fonseca e Marcelino Freire. Mais do que isso, a oralidade que serve às origens do conto poderia explicar porque a linguagem de Martins, que transita entre o canônico e o “papo reto”, cai tão bem às narrativas de seu primeiro livro.
No romance, forma tão diversa e fluida quanto permeável aos diferentes discursos, a marca de Geovani Martins está em sua potência máxima: não é apenas na fala de suas personagens, cujos diálogos tornam-se críveis pela incorporação da oralidade das ruas cariocas, que o vocabulário ganha força. Até porque, se percebemos, é fato que este falar já penetrou diferentes esferas sociais. Assim, é no narrador que a retórica brilha.
Se a linguagem organiza e expressa o mundo que nos rodeia, a enunciação por meio da prosa dos morros evidencia toda a lógica do romance e, em especial, a sua perspectiva. É este narrador, que espera que o leitor “pegue a visão”, que nos fala diretamente. Com acesso à interioridade de suas personagens, essa força central nos comunica a realidade como apreendida pelos cinco protagonistas. Temos, portanto, uma mudança significativa em quem comanda a retórica desta ficção e de que modo ela é manifestada.
Em Via Ápia, não há como fugir do realismo, que ronda os episódios do livro. Somos, a cada capítulo, lembrados que estamos em 2011, ano que marca as atividades conhecidas como Pacificadoras. Sob o Sol extenuante do Rio de Janeiro, Washington, Wesley, Murilo, Douglas e Biel tentam ganhar a vida. Nas horas de lazer, sempre têm as partidas de videogame e, o narrador não esconde, as drogas recreativas. Pensam, com preocupação, no futuro e temem o que será do morro após a pacificação.
Eventos como a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016 causam, inicialmente, um êxtase nos jovens, clássicos amantes do futebol. Mas, logo eles percebem, o fluxo de turistas é uma das causas para as operações. A violência aparece nua e crua. O medo passa a ser rotina. Washington alimenta as esperanças de ser promovido no trabalho, com alívio pela carteira assinada. Já o irmão, Wesley, se perde na ilusão do uso de drogas. Douglas começa um estúdio de tatuagem improvisado. Murilo, que serve como soldado, teme o momento que terá que combater sua própria gente. Já Biel, jovem branco, se aproxima do tráfico pela facilidade de transitar entre a classe média alta.
Nem tudo está perdido. A amizade fortalecida entre os jovens traz ternura ao romance. Em meio ao terror, brotam momentos de alegria. Nos seus vinte anos, os rapazes experimentam as vivências da idade, peças fundamentais para a profunda humanização presente no livro, o que com frequência falta no retrato das favelas. A violência, contudo, não dá trégua. Não chega a ser um spoiler, na construção da trama, que não há outra saída dentro do cenário retratado: os tiros, que rondam o cotidiano, atingem um dos personagens.
Se em 2018, com o lançamento de O Sol na Cabeça, Geovani Martins se tornou um dos mais populares autores do ano, estando entre os mais vendidos da FLIP (Festa Literária Internacional de Paraty), ele deixa a visão clara: “e era a vida – sempre ela e nunca a morte – o que fazia aquele chão tremer”, escreve. Martins entrega, em seu romance, mais do que o realismo de denúncia, pois o que vemos é também uma carta de afeto à resistência e à história da Rocinha. Resta esperar que ela chegue aos seus destinatários.
Em meio a duas presenças, a violência e a vivacidade da Via Ápia, uma coisa é certa: com a ocupação, a vida de todos mudou, sem possibilidade de retorno aos tempos de antes.