Viagens de Matuck


Como os pintores peregrinos do séc. 19, artista paulistano usa infinidade de técnicas para percorrer suas paisagens interiores

Por André de Oliveira

Chegou-se para junto do mesão em que um par de crianças brincava de rabiscar folhas de sulfite e puxou papo. Queria saber qual era o nome da letra que um dos meninos - uns 14 anos, boné de aba reta, piercing de argola no nariz - usava para escrever. “Chama tag, é a letra do pixo”, disse um outro garoto que ouvia a conversa, esclarecendo que se tratava da caligrafia usada pelos pichadores. “Essa eu não conhecia, e olha que eu gosto muito de letra”, respondeu Rubens Matuck, já emendando um convite para que eles fossem fazer um pequeno tour pela exposição Tudo É Semente, que ele inaugurara cinco dias antes, no Sesc Interlagos, em São Paulo. Depois de mostrar aos meninos suas obras como calígrafo, em que trabalha com letras tridimensionais esculpidas na madeira, escritas com nanquim, pintadas em aquarela e recortadas no papel, pediu de presente alguma coisa escrita com a tal da tag. Uns 20 minutos depois, quando ia embora, o garoto do piercing no nariz cutucou o ombro do Matuck e estendeu um papel em que estava escrito Mogadon.

Texturas: começo da carreira foi como ilustrador do 'Jornal da Tarde' Foto: GABRIELA BILO/ ESTADAO

Para os contemporâneos de Paulo Francis, pode parecer estranho um menino de 14 anos escrever Mogadon - apelido que o jornalista botou no ex-senador Eduardo Suplicy (PT), em referência a um medicamento contra insônia que deixava quem o usava um pouco sonolento. Contudo, no contexto da exposição, espécie de emulação do ateliê de Matuck e também antologia de sua obra, nada poderia fazer mais sentido. Mogadon, no universo do artista, é um personagem que, ao lado do Conde Euphrates, vive no mundo fantasioso de Damar. A história nasceu na sua infância, quando Nacib, seu pai médico, levava catálogos de remédio para casa e ele, impressionado com a qualidade da impressão das propagandas e fascinado com o nome exótico do medicamento, acabou criando o personagem que acompanha sua carreira desde então. As Aventuras de Euphrates e Mogadom, que viraram histórias em quadrinhos, também são tema de maquetes, quadros a óleo e não param de invadir outros assuntos de sua obra. Seu interesse por caligrafia, por exemplo, surgiu quando, ao fazer um dos quadrinhos, não ficou satisfeito com o título que escreveu e a partir daí resolveu estudar a origem de letras e palavras.

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“Acho que ele pode ser definido como um cara que não tem barreiras, ele conversa com qualquer pessoa, sobre qualquer assunto”, diz Rosely Nakagawa, curadora da exposição e companheira de Matuck desde seus 19 anos, quando cursaram a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) juntos. “Para ele, não interessa o nome do artista ou a qual corrente ele pertence; na realidade, não importa nem se ele é artista, o que importa é a técnica que a pessoa está usando.” Por isso, não seria de todo estranho se daqui dois ou três meses ele aparecesse com um trabalho em que investiga a origem e as possibilidades da letra usada pelos pichadores. Tudo é semente para Matuck: os outros, a propaganda de um remédio, uma árvore, o aspecto do branco na obra de determinado artista, a ferramenta de marchetaria de um antigo artesão. Tudo pode germinar. Por isso, sua produção desnorteia, habita mundos imaginários e reais, usa de uma infinitude de técnicas e trata de diferentes assuntos que, no entanto, estão enroscados em um mesmo bolo de feno que ele próprio criou.

Hoje, aos 63 anos, Matuck acha difícil falar do passado. As imagens quase sempre precedem a história em si, o que embaralha o sentido cronológico de qualquer acontecimento. E, quando as palavras tornam-se muito difíceis, ele quase sempre recorre ao visual. Ao lembrar o pintor Samson Flexor, seu professor desde os primeiros anos de adolescência, por exemplo, ele descreverá uma caixa cheia de latinhas que reparou escanteada na casa de um amigo. Ao abri-la, descobriu, maravilhado, a aquarela. Aí, então, passará a falar sobre como a aquarela é rebelde e como ela não tem nada a ver com técnica e como o homem é apenas um veículo na mão dela. Dirá que isso acontece porque na aquarela é a água que trabalha, tornando tudo volúvel. Ressaltará, contudo, que só aprendeu isso ao ler As Anotações Sobre Pintura do Monge Abóbora-amarga, o mais importante livro de pintura chinesa da história. Por fim, retornará a Flexor, aquele romeno que ele adorava e que, no começo, ficou reticente quando seu jovem aprendiz com muito respeito, mas praticamente exigindo, pediu que ele o introduzisse ao mundo da aquarela.

Aos 15 anos, Matuck já tomava aulas com Flexor, tinha ilustrado um livro didático de biologia - que, segundo conta Rosely, ele fez questão de ler inteiro e lembra de cor até hoje -, frequentava semanalmente o ateliê de Aldemir Martins, onde encontrava gente como Jorge Amado, Octávio Araújo, Mário Gruber e Gustavo Dahl. Em 1969, um ano depois da fundação do Jornal da Tarde, marco de uma época de ouro para o jornalismo diário, começou como ilustrador antes de completar 18 anos. Por causa do trabalho no jornal, se aproximaria também da gravura por meio de Marcelo Grassmann, que pediu a Aldemir Martins que o apresentasse ao jovem ilustrador. “Em 1973, quando entramos na FAU, eu já admirava o trabalho do Rubens no JT. Ele fazia desenhos impressionantes com bico de pena e, assim, logo ficamos amigos”, relembra o escritor Milton Hatoum, que pouco tempo depois lançaria, ao lado de Matuck, Rosely e Tania Parma, a revista Poetação, impressa artesanalmente nas oficinas da FAU e dedicada a poesia, gravura e ilustração.

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Por volta de 1977, formado na FAU e ao sair do jornal, iniciou-se na arte de viajar. “Logo que conheci o Aldemir, ele disse que meu problema era ser um paulista burro e ignorante, impregnado dos preconceitos dessa elite que se quer europeia. Eu precisava viajar para ver o Brasil”, relembra Matuck. Demorou alguns para seguir o conselho; uma vez que começou, não parou. Desde então, seu trabalho é indissociável de uma preocupação com a identidade e paisagem brasileiras. “Como uma espécie de artista viajante do século 19, o Rubens começou a andar pelo Brasil e produzir uma série inesgotável de cadernos de viagem”, diz Hatoum. Hoje, são mais de 300 cadernos que tratam da fauna, flora, alimentação e atividades dos lugares por onde passou. Desenhar uma árvore como o buriti, para Matuck, no entanto, não é apenas retratá-la. O processo envolve conhecê-la profundamente, descobrindo quais são os usos artesanais que a população faz de sua madeira e semente. É entender o espaço em que ela cresce, no caso, a vereda - “verdadeira caixa d'água do território brasileiro” - e também compreender o cerrado que a cerca.

Meio curvadão, alto, Matuck tem a voz levemente desafinada e os olhos pequeninos por detrás dos óculos. Se interessa e desperta o interesse de todo tipo de gente. E sua personalidade mescla uma espécie de docilidade mercurial. Em uma viagem pelo Brasil, em outubro de 2014, depois de fazer comentários entusiasmados sobre o brejo paraibano, surpreendente microrregião de Mata Atlântica que forma um paredão de verde logo em frente ao sertão do Estado, comentou, arrancando risadas de seus companheiros de viagem: “Brasileiro que viaja para a Europa é muito burro, ninguém nem sabe que isso aqui existe”. Outra coisa que o deixa inflamado: a divisão entre arte erudita e arte popular. “Eu nunca vi um artista que não fosse do povo, para mim só existe uma arte.” A própria escolha de realizar a exposição Tudo é Semente no Sesc Interlagos, região periférica da cidade de São Paulo, revela muito de suas convicções. “A gente montou uma oficina lá e eu vou trabalhar nela duas vezes por semana. A ideia é que as pessoas entrem, conversem comigo, não tem nada a ver com vender”, diz. 

“O modo como ele mescla diferentes técnicas, temas e preocupações faz dele uma pessoa absolutamente diferente do mercado de arte e, por isso mesmo, é difícil de o mercado absorver. A arte pela arte não faz o menor sentido para ele”, diz o crítico Oscar D’Ambrósio que durante dois anos acompanhou o trabalho de Matuck semanalmente. Ao ser fotografado para esta reportagem, por exemplo, ele pediu com delicadeza para não ser dirigido pela fotógrafa: não queria que as fotos parecessem artificiais, como se ele pretendesse fazer propaganda do próprio trabalho. Para sua ex-professora de FAU, a artista Renina Katz, antigamente o prestígio não dizia tanto sobre o projeto de um artista como diz hoje. “O melhor do mundo, o melhor do país, o mais caro do mundo. Isso não era um valor. O que eu acho bom é que o Rubens não cabe nessa categoria, ele sempre está tentando melhorar sua técnica, ele não fica preocupado com fazer marketing, ele busca melhorar e isso faz dele um artista muito exigente, o que acaba por afastar algumas pessoas. Mas, no meu modo de ver, essa é a principal qualidade dele”, comenta Renina.

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Quem encontra Matuck em uma de suas viagens, e nota seu interesse e conhecimento, pode tomá-lo facilmente por um botânico - para, no minuto seguinte, enxergá-lo como um antropólogo. “Desse ponto de vista, o trabalho do Rubens é muito renascentista. Assim como Da Vinci, ele abole a separação entre arte e ciência. Para ele, pintar uma árvore, estudá-la ou cuidar dela significa exatamente a mesma coisa”, diz D’Ambrósio. “Ele vai relacionando os conhecimentos sem nenhum preconceito. O tema dele é o que passa por trás da pintura, tem a ver com a relação direta com o fazer do artista, da cozinha do artista”, complementa Rosely. O tempo para Matuck parece passar de modo diverso. Ele não deixa quase nada para trás e vai somando novas descobertas a temas antigos. Pode demorar anos fazendo uma mesma escultura, mas, ao mesmo tempo, produz incansavelmente. Daí surge uma obra prolífica em temas e técnicas. Ao terminar seu relato sobre o ex-aluno, Renina Katz pediu para complementar a entrevista, pois havia se lembrado de uma coisa: “Acho que seu texto pode terminar dizendo que o Rubens não pertence àqueles que o Sérgio Milliet apelidava de ‘artigos do dia’; ele é único”.

Chegou-se para junto do mesão em que um par de crianças brincava de rabiscar folhas de sulfite e puxou papo. Queria saber qual era o nome da letra que um dos meninos - uns 14 anos, boné de aba reta, piercing de argola no nariz - usava para escrever. “Chama tag, é a letra do pixo”, disse um outro garoto que ouvia a conversa, esclarecendo que se tratava da caligrafia usada pelos pichadores. “Essa eu não conhecia, e olha que eu gosto muito de letra”, respondeu Rubens Matuck, já emendando um convite para que eles fossem fazer um pequeno tour pela exposição Tudo É Semente, que ele inaugurara cinco dias antes, no Sesc Interlagos, em São Paulo. Depois de mostrar aos meninos suas obras como calígrafo, em que trabalha com letras tridimensionais esculpidas na madeira, escritas com nanquim, pintadas em aquarela e recortadas no papel, pediu de presente alguma coisa escrita com a tal da tag. Uns 20 minutos depois, quando ia embora, o garoto do piercing no nariz cutucou o ombro do Matuck e estendeu um papel em que estava escrito Mogadon.

Texturas: começo da carreira foi como ilustrador do 'Jornal da Tarde' Foto: GABRIELA BILO/ ESTADAO

Para os contemporâneos de Paulo Francis, pode parecer estranho um menino de 14 anos escrever Mogadon - apelido que o jornalista botou no ex-senador Eduardo Suplicy (PT), em referência a um medicamento contra insônia que deixava quem o usava um pouco sonolento. Contudo, no contexto da exposição, espécie de emulação do ateliê de Matuck e também antologia de sua obra, nada poderia fazer mais sentido. Mogadon, no universo do artista, é um personagem que, ao lado do Conde Euphrates, vive no mundo fantasioso de Damar. A história nasceu na sua infância, quando Nacib, seu pai médico, levava catálogos de remédio para casa e ele, impressionado com a qualidade da impressão das propagandas e fascinado com o nome exótico do medicamento, acabou criando o personagem que acompanha sua carreira desde então. As Aventuras de Euphrates e Mogadom, que viraram histórias em quadrinhos, também são tema de maquetes, quadros a óleo e não param de invadir outros assuntos de sua obra. Seu interesse por caligrafia, por exemplo, surgiu quando, ao fazer um dos quadrinhos, não ficou satisfeito com o título que escreveu e a partir daí resolveu estudar a origem de letras e palavras.

“Acho que ele pode ser definido como um cara que não tem barreiras, ele conversa com qualquer pessoa, sobre qualquer assunto”, diz Rosely Nakagawa, curadora da exposição e companheira de Matuck desde seus 19 anos, quando cursaram a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) juntos. “Para ele, não interessa o nome do artista ou a qual corrente ele pertence; na realidade, não importa nem se ele é artista, o que importa é a técnica que a pessoa está usando.” Por isso, não seria de todo estranho se daqui dois ou três meses ele aparecesse com um trabalho em que investiga a origem e as possibilidades da letra usada pelos pichadores. Tudo é semente para Matuck: os outros, a propaganda de um remédio, uma árvore, o aspecto do branco na obra de determinado artista, a ferramenta de marchetaria de um antigo artesão. Tudo pode germinar. Por isso, sua produção desnorteia, habita mundos imaginários e reais, usa de uma infinitude de técnicas e trata de diferentes assuntos que, no entanto, estão enroscados em um mesmo bolo de feno que ele próprio criou.

Hoje, aos 63 anos, Matuck acha difícil falar do passado. As imagens quase sempre precedem a história em si, o que embaralha o sentido cronológico de qualquer acontecimento. E, quando as palavras tornam-se muito difíceis, ele quase sempre recorre ao visual. Ao lembrar o pintor Samson Flexor, seu professor desde os primeiros anos de adolescência, por exemplo, ele descreverá uma caixa cheia de latinhas que reparou escanteada na casa de um amigo. Ao abri-la, descobriu, maravilhado, a aquarela. Aí, então, passará a falar sobre como a aquarela é rebelde e como ela não tem nada a ver com técnica e como o homem é apenas um veículo na mão dela. Dirá que isso acontece porque na aquarela é a água que trabalha, tornando tudo volúvel. Ressaltará, contudo, que só aprendeu isso ao ler As Anotações Sobre Pintura do Monge Abóbora-amarga, o mais importante livro de pintura chinesa da história. Por fim, retornará a Flexor, aquele romeno que ele adorava e que, no começo, ficou reticente quando seu jovem aprendiz com muito respeito, mas praticamente exigindo, pediu que ele o introduzisse ao mundo da aquarela.

Aos 15 anos, Matuck já tomava aulas com Flexor, tinha ilustrado um livro didático de biologia - que, segundo conta Rosely, ele fez questão de ler inteiro e lembra de cor até hoje -, frequentava semanalmente o ateliê de Aldemir Martins, onde encontrava gente como Jorge Amado, Octávio Araújo, Mário Gruber e Gustavo Dahl. Em 1969, um ano depois da fundação do Jornal da Tarde, marco de uma época de ouro para o jornalismo diário, começou como ilustrador antes de completar 18 anos. Por causa do trabalho no jornal, se aproximaria também da gravura por meio de Marcelo Grassmann, que pediu a Aldemir Martins que o apresentasse ao jovem ilustrador. “Em 1973, quando entramos na FAU, eu já admirava o trabalho do Rubens no JT. Ele fazia desenhos impressionantes com bico de pena e, assim, logo ficamos amigos”, relembra o escritor Milton Hatoum, que pouco tempo depois lançaria, ao lado de Matuck, Rosely e Tania Parma, a revista Poetação, impressa artesanalmente nas oficinas da FAU e dedicada a poesia, gravura e ilustração.

Por volta de 1977, formado na FAU e ao sair do jornal, iniciou-se na arte de viajar. “Logo que conheci o Aldemir, ele disse que meu problema era ser um paulista burro e ignorante, impregnado dos preconceitos dessa elite que se quer europeia. Eu precisava viajar para ver o Brasil”, relembra Matuck. Demorou alguns para seguir o conselho; uma vez que começou, não parou. Desde então, seu trabalho é indissociável de uma preocupação com a identidade e paisagem brasileiras. “Como uma espécie de artista viajante do século 19, o Rubens começou a andar pelo Brasil e produzir uma série inesgotável de cadernos de viagem”, diz Hatoum. Hoje, são mais de 300 cadernos que tratam da fauna, flora, alimentação e atividades dos lugares por onde passou. Desenhar uma árvore como o buriti, para Matuck, no entanto, não é apenas retratá-la. O processo envolve conhecê-la profundamente, descobrindo quais são os usos artesanais que a população faz de sua madeira e semente. É entender o espaço em que ela cresce, no caso, a vereda - “verdadeira caixa d'água do território brasileiro” - e também compreender o cerrado que a cerca.

Meio curvadão, alto, Matuck tem a voz levemente desafinada e os olhos pequeninos por detrás dos óculos. Se interessa e desperta o interesse de todo tipo de gente. E sua personalidade mescla uma espécie de docilidade mercurial. Em uma viagem pelo Brasil, em outubro de 2014, depois de fazer comentários entusiasmados sobre o brejo paraibano, surpreendente microrregião de Mata Atlântica que forma um paredão de verde logo em frente ao sertão do Estado, comentou, arrancando risadas de seus companheiros de viagem: “Brasileiro que viaja para a Europa é muito burro, ninguém nem sabe que isso aqui existe”. Outra coisa que o deixa inflamado: a divisão entre arte erudita e arte popular. “Eu nunca vi um artista que não fosse do povo, para mim só existe uma arte.” A própria escolha de realizar a exposição Tudo é Semente no Sesc Interlagos, região periférica da cidade de São Paulo, revela muito de suas convicções. “A gente montou uma oficina lá e eu vou trabalhar nela duas vezes por semana. A ideia é que as pessoas entrem, conversem comigo, não tem nada a ver com vender”, diz. 

“O modo como ele mescla diferentes técnicas, temas e preocupações faz dele uma pessoa absolutamente diferente do mercado de arte e, por isso mesmo, é difícil de o mercado absorver. A arte pela arte não faz o menor sentido para ele”, diz o crítico Oscar D’Ambrósio que durante dois anos acompanhou o trabalho de Matuck semanalmente. Ao ser fotografado para esta reportagem, por exemplo, ele pediu com delicadeza para não ser dirigido pela fotógrafa: não queria que as fotos parecessem artificiais, como se ele pretendesse fazer propaganda do próprio trabalho. Para sua ex-professora de FAU, a artista Renina Katz, antigamente o prestígio não dizia tanto sobre o projeto de um artista como diz hoje. “O melhor do mundo, o melhor do país, o mais caro do mundo. Isso não era um valor. O que eu acho bom é que o Rubens não cabe nessa categoria, ele sempre está tentando melhorar sua técnica, ele não fica preocupado com fazer marketing, ele busca melhorar e isso faz dele um artista muito exigente, o que acaba por afastar algumas pessoas. Mas, no meu modo de ver, essa é a principal qualidade dele”, comenta Renina.

Quem encontra Matuck em uma de suas viagens, e nota seu interesse e conhecimento, pode tomá-lo facilmente por um botânico - para, no minuto seguinte, enxergá-lo como um antropólogo. “Desse ponto de vista, o trabalho do Rubens é muito renascentista. Assim como Da Vinci, ele abole a separação entre arte e ciência. Para ele, pintar uma árvore, estudá-la ou cuidar dela significa exatamente a mesma coisa”, diz D’Ambrósio. “Ele vai relacionando os conhecimentos sem nenhum preconceito. O tema dele é o que passa por trás da pintura, tem a ver com a relação direta com o fazer do artista, da cozinha do artista”, complementa Rosely. O tempo para Matuck parece passar de modo diverso. Ele não deixa quase nada para trás e vai somando novas descobertas a temas antigos. Pode demorar anos fazendo uma mesma escultura, mas, ao mesmo tempo, produz incansavelmente. Daí surge uma obra prolífica em temas e técnicas. Ao terminar seu relato sobre o ex-aluno, Renina Katz pediu para complementar a entrevista, pois havia se lembrado de uma coisa: “Acho que seu texto pode terminar dizendo que o Rubens não pertence àqueles que o Sérgio Milliet apelidava de ‘artigos do dia’; ele é único”.

Chegou-se para junto do mesão em que um par de crianças brincava de rabiscar folhas de sulfite e puxou papo. Queria saber qual era o nome da letra que um dos meninos - uns 14 anos, boné de aba reta, piercing de argola no nariz - usava para escrever. “Chama tag, é a letra do pixo”, disse um outro garoto que ouvia a conversa, esclarecendo que se tratava da caligrafia usada pelos pichadores. “Essa eu não conhecia, e olha que eu gosto muito de letra”, respondeu Rubens Matuck, já emendando um convite para que eles fossem fazer um pequeno tour pela exposição Tudo É Semente, que ele inaugurara cinco dias antes, no Sesc Interlagos, em São Paulo. Depois de mostrar aos meninos suas obras como calígrafo, em que trabalha com letras tridimensionais esculpidas na madeira, escritas com nanquim, pintadas em aquarela e recortadas no papel, pediu de presente alguma coisa escrita com a tal da tag. Uns 20 minutos depois, quando ia embora, o garoto do piercing no nariz cutucou o ombro do Matuck e estendeu um papel em que estava escrito Mogadon.

Texturas: começo da carreira foi como ilustrador do 'Jornal da Tarde' Foto: GABRIELA BILO/ ESTADAO

Para os contemporâneos de Paulo Francis, pode parecer estranho um menino de 14 anos escrever Mogadon - apelido que o jornalista botou no ex-senador Eduardo Suplicy (PT), em referência a um medicamento contra insônia que deixava quem o usava um pouco sonolento. Contudo, no contexto da exposição, espécie de emulação do ateliê de Matuck e também antologia de sua obra, nada poderia fazer mais sentido. Mogadon, no universo do artista, é um personagem que, ao lado do Conde Euphrates, vive no mundo fantasioso de Damar. A história nasceu na sua infância, quando Nacib, seu pai médico, levava catálogos de remédio para casa e ele, impressionado com a qualidade da impressão das propagandas e fascinado com o nome exótico do medicamento, acabou criando o personagem que acompanha sua carreira desde então. As Aventuras de Euphrates e Mogadom, que viraram histórias em quadrinhos, também são tema de maquetes, quadros a óleo e não param de invadir outros assuntos de sua obra. Seu interesse por caligrafia, por exemplo, surgiu quando, ao fazer um dos quadrinhos, não ficou satisfeito com o título que escreveu e a partir daí resolveu estudar a origem de letras e palavras.

“Acho que ele pode ser definido como um cara que não tem barreiras, ele conversa com qualquer pessoa, sobre qualquer assunto”, diz Rosely Nakagawa, curadora da exposição e companheira de Matuck desde seus 19 anos, quando cursaram a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) juntos. “Para ele, não interessa o nome do artista ou a qual corrente ele pertence; na realidade, não importa nem se ele é artista, o que importa é a técnica que a pessoa está usando.” Por isso, não seria de todo estranho se daqui dois ou três meses ele aparecesse com um trabalho em que investiga a origem e as possibilidades da letra usada pelos pichadores. Tudo é semente para Matuck: os outros, a propaganda de um remédio, uma árvore, o aspecto do branco na obra de determinado artista, a ferramenta de marchetaria de um antigo artesão. Tudo pode germinar. Por isso, sua produção desnorteia, habita mundos imaginários e reais, usa de uma infinitude de técnicas e trata de diferentes assuntos que, no entanto, estão enroscados em um mesmo bolo de feno que ele próprio criou.

Hoje, aos 63 anos, Matuck acha difícil falar do passado. As imagens quase sempre precedem a história em si, o que embaralha o sentido cronológico de qualquer acontecimento. E, quando as palavras tornam-se muito difíceis, ele quase sempre recorre ao visual. Ao lembrar o pintor Samson Flexor, seu professor desde os primeiros anos de adolescência, por exemplo, ele descreverá uma caixa cheia de latinhas que reparou escanteada na casa de um amigo. Ao abri-la, descobriu, maravilhado, a aquarela. Aí, então, passará a falar sobre como a aquarela é rebelde e como ela não tem nada a ver com técnica e como o homem é apenas um veículo na mão dela. Dirá que isso acontece porque na aquarela é a água que trabalha, tornando tudo volúvel. Ressaltará, contudo, que só aprendeu isso ao ler As Anotações Sobre Pintura do Monge Abóbora-amarga, o mais importante livro de pintura chinesa da história. Por fim, retornará a Flexor, aquele romeno que ele adorava e que, no começo, ficou reticente quando seu jovem aprendiz com muito respeito, mas praticamente exigindo, pediu que ele o introduzisse ao mundo da aquarela.

Aos 15 anos, Matuck já tomava aulas com Flexor, tinha ilustrado um livro didático de biologia - que, segundo conta Rosely, ele fez questão de ler inteiro e lembra de cor até hoje -, frequentava semanalmente o ateliê de Aldemir Martins, onde encontrava gente como Jorge Amado, Octávio Araújo, Mário Gruber e Gustavo Dahl. Em 1969, um ano depois da fundação do Jornal da Tarde, marco de uma época de ouro para o jornalismo diário, começou como ilustrador antes de completar 18 anos. Por causa do trabalho no jornal, se aproximaria também da gravura por meio de Marcelo Grassmann, que pediu a Aldemir Martins que o apresentasse ao jovem ilustrador. “Em 1973, quando entramos na FAU, eu já admirava o trabalho do Rubens no JT. Ele fazia desenhos impressionantes com bico de pena e, assim, logo ficamos amigos”, relembra o escritor Milton Hatoum, que pouco tempo depois lançaria, ao lado de Matuck, Rosely e Tania Parma, a revista Poetação, impressa artesanalmente nas oficinas da FAU e dedicada a poesia, gravura e ilustração.

Por volta de 1977, formado na FAU e ao sair do jornal, iniciou-se na arte de viajar. “Logo que conheci o Aldemir, ele disse que meu problema era ser um paulista burro e ignorante, impregnado dos preconceitos dessa elite que se quer europeia. Eu precisava viajar para ver o Brasil”, relembra Matuck. Demorou alguns para seguir o conselho; uma vez que começou, não parou. Desde então, seu trabalho é indissociável de uma preocupação com a identidade e paisagem brasileiras. “Como uma espécie de artista viajante do século 19, o Rubens começou a andar pelo Brasil e produzir uma série inesgotável de cadernos de viagem”, diz Hatoum. Hoje, são mais de 300 cadernos que tratam da fauna, flora, alimentação e atividades dos lugares por onde passou. Desenhar uma árvore como o buriti, para Matuck, no entanto, não é apenas retratá-la. O processo envolve conhecê-la profundamente, descobrindo quais são os usos artesanais que a população faz de sua madeira e semente. É entender o espaço em que ela cresce, no caso, a vereda - “verdadeira caixa d'água do território brasileiro” - e também compreender o cerrado que a cerca.

Meio curvadão, alto, Matuck tem a voz levemente desafinada e os olhos pequeninos por detrás dos óculos. Se interessa e desperta o interesse de todo tipo de gente. E sua personalidade mescla uma espécie de docilidade mercurial. Em uma viagem pelo Brasil, em outubro de 2014, depois de fazer comentários entusiasmados sobre o brejo paraibano, surpreendente microrregião de Mata Atlântica que forma um paredão de verde logo em frente ao sertão do Estado, comentou, arrancando risadas de seus companheiros de viagem: “Brasileiro que viaja para a Europa é muito burro, ninguém nem sabe que isso aqui existe”. Outra coisa que o deixa inflamado: a divisão entre arte erudita e arte popular. “Eu nunca vi um artista que não fosse do povo, para mim só existe uma arte.” A própria escolha de realizar a exposição Tudo é Semente no Sesc Interlagos, região periférica da cidade de São Paulo, revela muito de suas convicções. “A gente montou uma oficina lá e eu vou trabalhar nela duas vezes por semana. A ideia é que as pessoas entrem, conversem comigo, não tem nada a ver com vender”, diz. 

“O modo como ele mescla diferentes técnicas, temas e preocupações faz dele uma pessoa absolutamente diferente do mercado de arte e, por isso mesmo, é difícil de o mercado absorver. A arte pela arte não faz o menor sentido para ele”, diz o crítico Oscar D’Ambrósio que durante dois anos acompanhou o trabalho de Matuck semanalmente. Ao ser fotografado para esta reportagem, por exemplo, ele pediu com delicadeza para não ser dirigido pela fotógrafa: não queria que as fotos parecessem artificiais, como se ele pretendesse fazer propaganda do próprio trabalho. Para sua ex-professora de FAU, a artista Renina Katz, antigamente o prestígio não dizia tanto sobre o projeto de um artista como diz hoje. “O melhor do mundo, o melhor do país, o mais caro do mundo. Isso não era um valor. O que eu acho bom é que o Rubens não cabe nessa categoria, ele sempre está tentando melhorar sua técnica, ele não fica preocupado com fazer marketing, ele busca melhorar e isso faz dele um artista muito exigente, o que acaba por afastar algumas pessoas. Mas, no meu modo de ver, essa é a principal qualidade dele”, comenta Renina.

Quem encontra Matuck em uma de suas viagens, e nota seu interesse e conhecimento, pode tomá-lo facilmente por um botânico - para, no minuto seguinte, enxergá-lo como um antropólogo. “Desse ponto de vista, o trabalho do Rubens é muito renascentista. Assim como Da Vinci, ele abole a separação entre arte e ciência. Para ele, pintar uma árvore, estudá-la ou cuidar dela significa exatamente a mesma coisa”, diz D’Ambrósio. “Ele vai relacionando os conhecimentos sem nenhum preconceito. O tema dele é o que passa por trás da pintura, tem a ver com a relação direta com o fazer do artista, da cozinha do artista”, complementa Rosely. O tempo para Matuck parece passar de modo diverso. Ele não deixa quase nada para trás e vai somando novas descobertas a temas antigos. Pode demorar anos fazendo uma mesma escultura, mas, ao mesmo tempo, produz incansavelmente. Daí surge uma obra prolífica em temas e técnicas. Ao terminar seu relato sobre o ex-aluno, Renina Katz pediu para complementar a entrevista, pois havia se lembrado de uma coisa: “Acho que seu texto pode terminar dizendo que o Rubens não pertence àqueles que o Sérgio Milliet apelidava de ‘artigos do dia’; ele é único”.

Chegou-se para junto do mesão em que um par de crianças brincava de rabiscar folhas de sulfite e puxou papo. Queria saber qual era o nome da letra que um dos meninos - uns 14 anos, boné de aba reta, piercing de argola no nariz - usava para escrever. “Chama tag, é a letra do pixo”, disse um outro garoto que ouvia a conversa, esclarecendo que se tratava da caligrafia usada pelos pichadores. “Essa eu não conhecia, e olha que eu gosto muito de letra”, respondeu Rubens Matuck, já emendando um convite para que eles fossem fazer um pequeno tour pela exposição Tudo É Semente, que ele inaugurara cinco dias antes, no Sesc Interlagos, em São Paulo. Depois de mostrar aos meninos suas obras como calígrafo, em que trabalha com letras tridimensionais esculpidas na madeira, escritas com nanquim, pintadas em aquarela e recortadas no papel, pediu de presente alguma coisa escrita com a tal da tag. Uns 20 minutos depois, quando ia embora, o garoto do piercing no nariz cutucou o ombro do Matuck e estendeu um papel em que estava escrito Mogadon.

Texturas: começo da carreira foi como ilustrador do 'Jornal da Tarde' Foto: GABRIELA BILO/ ESTADAO

Para os contemporâneos de Paulo Francis, pode parecer estranho um menino de 14 anos escrever Mogadon - apelido que o jornalista botou no ex-senador Eduardo Suplicy (PT), em referência a um medicamento contra insônia que deixava quem o usava um pouco sonolento. Contudo, no contexto da exposição, espécie de emulação do ateliê de Matuck e também antologia de sua obra, nada poderia fazer mais sentido. Mogadon, no universo do artista, é um personagem que, ao lado do Conde Euphrates, vive no mundo fantasioso de Damar. A história nasceu na sua infância, quando Nacib, seu pai médico, levava catálogos de remédio para casa e ele, impressionado com a qualidade da impressão das propagandas e fascinado com o nome exótico do medicamento, acabou criando o personagem que acompanha sua carreira desde então. As Aventuras de Euphrates e Mogadom, que viraram histórias em quadrinhos, também são tema de maquetes, quadros a óleo e não param de invadir outros assuntos de sua obra. Seu interesse por caligrafia, por exemplo, surgiu quando, ao fazer um dos quadrinhos, não ficou satisfeito com o título que escreveu e a partir daí resolveu estudar a origem de letras e palavras.

“Acho que ele pode ser definido como um cara que não tem barreiras, ele conversa com qualquer pessoa, sobre qualquer assunto”, diz Rosely Nakagawa, curadora da exposição e companheira de Matuck desde seus 19 anos, quando cursaram a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) juntos. “Para ele, não interessa o nome do artista ou a qual corrente ele pertence; na realidade, não importa nem se ele é artista, o que importa é a técnica que a pessoa está usando.” Por isso, não seria de todo estranho se daqui dois ou três meses ele aparecesse com um trabalho em que investiga a origem e as possibilidades da letra usada pelos pichadores. Tudo é semente para Matuck: os outros, a propaganda de um remédio, uma árvore, o aspecto do branco na obra de determinado artista, a ferramenta de marchetaria de um antigo artesão. Tudo pode germinar. Por isso, sua produção desnorteia, habita mundos imaginários e reais, usa de uma infinitude de técnicas e trata de diferentes assuntos que, no entanto, estão enroscados em um mesmo bolo de feno que ele próprio criou.

Hoje, aos 63 anos, Matuck acha difícil falar do passado. As imagens quase sempre precedem a história em si, o que embaralha o sentido cronológico de qualquer acontecimento. E, quando as palavras tornam-se muito difíceis, ele quase sempre recorre ao visual. Ao lembrar o pintor Samson Flexor, seu professor desde os primeiros anos de adolescência, por exemplo, ele descreverá uma caixa cheia de latinhas que reparou escanteada na casa de um amigo. Ao abri-la, descobriu, maravilhado, a aquarela. Aí, então, passará a falar sobre como a aquarela é rebelde e como ela não tem nada a ver com técnica e como o homem é apenas um veículo na mão dela. Dirá que isso acontece porque na aquarela é a água que trabalha, tornando tudo volúvel. Ressaltará, contudo, que só aprendeu isso ao ler As Anotações Sobre Pintura do Monge Abóbora-amarga, o mais importante livro de pintura chinesa da história. Por fim, retornará a Flexor, aquele romeno que ele adorava e que, no começo, ficou reticente quando seu jovem aprendiz com muito respeito, mas praticamente exigindo, pediu que ele o introduzisse ao mundo da aquarela.

Aos 15 anos, Matuck já tomava aulas com Flexor, tinha ilustrado um livro didático de biologia - que, segundo conta Rosely, ele fez questão de ler inteiro e lembra de cor até hoje -, frequentava semanalmente o ateliê de Aldemir Martins, onde encontrava gente como Jorge Amado, Octávio Araújo, Mário Gruber e Gustavo Dahl. Em 1969, um ano depois da fundação do Jornal da Tarde, marco de uma época de ouro para o jornalismo diário, começou como ilustrador antes de completar 18 anos. Por causa do trabalho no jornal, se aproximaria também da gravura por meio de Marcelo Grassmann, que pediu a Aldemir Martins que o apresentasse ao jovem ilustrador. “Em 1973, quando entramos na FAU, eu já admirava o trabalho do Rubens no JT. Ele fazia desenhos impressionantes com bico de pena e, assim, logo ficamos amigos”, relembra o escritor Milton Hatoum, que pouco tempo depois lançaria, ao lado de Matuck, Rosely e Tania Parma, a revista Poetação, impressa artesanalmente nas oficinas da FAU e dedicada a poesia, gravura e ilustração.

Por volta de 1977, formado na FAU e ao sair do jornal, iniciou-se na arte de viajar. “Logo que conheci o Aldemir, ele disse que meu problema era ser um paulista burro e ignorante, impregnado dos preconceitos dessa elite que se quer europeia. Eu precisava viajar para ver o Brasil”, relembra Matuck. Demorou alguns para seguir o conselho; uma vez que começou, não parou. Desde então, seu trabalho é indissociável de uma preocupação com a identidade e paisagem brasileiras. “Como uma espécie de artista viajante do século 19, o Rubens começou a andar pelo Brasil e produzir uma série inesgotável de cadernos de viagem”, diz Hatoum. Hoje, são mais de 300 cadernos que tratam da fauna, flora, alimentação e atividades dos lugares por onde passou. Desenhar uma árvore como o buriti, para Matuck, no entanto, não é apenas retratá-la. O processo envolve conhecê-la profundamente, descobrindo quais são os usos artesanais que a população faz de sua madeira e semente. É entender o espaço em que ela cresce, no caso, a vereda - “verdadeira caixa d'água do território brasileiro” - e também compreender o cerrado que a cerca.

Meio curvadão, alto, Matuck tem a voz levemente desafinada e os olhos pequeninos por detrás dos óculos. Se interessa e desperta o interesse de todo tipo de gente. E sua personalidade mescla uma espécie de docilidade mercurial. Em uma viagem pelo Brasil, em outubro de 2014, depois de fazer comentários entusiasmados sobre o brejo paraibano, surpreendente microrregião de Mata Atlântica que forma um paredão de verde logo em frente ao sertão do Estado, comentou, arrancando risadas de seus companheiros de viagem: “Brasileiro que viaja para a Europa é muito burro, ninguém nem sabe que isso aqui existe”. Outra coisa que o deixa inflamado: a divisão entre arte erudita e arte popular. “Eu nunca vi um artista que não fosse do povo, para mim só existe uma arte.” A própria escolha de realizar a exposição Tudo é Semente no Sesc Interlagos, região periférica da cidade de São Paulo, revela muito de suas convicções. “A gente montou uma oficina lá e eu vou trabalhar nela duas vezes por semana. A ideia é que as pessoas entrem, conversem comigo, não tem nada a ver com vender”, diz. 

“O modo como ele mescla diferentes técnicas, temas e preocupações faz dele uma pessoa absolutamente diferente do mercado de arte e, por isso mesmo, é difícil de o mercado absorver. A arte pela arte não faz o menor sentido para ele”, diz o crítico Oscar D’Ambrósio que durante dois anos acompanhou o trabalho de Matuck semanalmente. Ao ser fotografado para esta reportagem, por exemplo, ele pediu com delicadeza para não ser dirigido pela fotógrafa: não queria que as fotos parecessem artificiais, como se ele pretendesse fazer propaganda do próprio trabalho. Para sua ex-professora de FAU, a artista Renina Katz, antigamente o prestígio não dizia tanto sobre o projeto de um artista como diz hoje. “O melhor do mundo, o melhor do país, o mais caro do mundo. Isso não era um valor. O que eu acho bom é que o Rubens não cabe nessa categoria, ele sempre está tentando melhorar sua técnica, ele não fica preocupado com fazer marketing, ele busca melhorar e isso faz dele um artista muito exigente, o que acaba por afastar algumas pessoas. Mas, no meu modo de ver, essa é a principal qualidade dele”, comenta Renina.

Quem encontra Matuck em uma de suas viagens, e nota seu interesse e conhecimento, pode tomá-lo facilmente por um botânico - para, no minuto seguinte, enxergá-lo como um antropólogo. “Desse ponto de vista, o trabalho do Rubens é muito renascentista. Assim como Da Vinci, ele abole a separação entre arte e ciência. Para ele, pintar uma árvore, estudá-la ou cuidar dela significa exatamente a mesma coisa”, diz D’Ambrósio. “Ele vai relacionando os conhecimentos sem nenhum preconceito. O tema dele é o que passa por trás da pintura, tem a ver com a relação direta com o fazer do artista, da cozinha do artista”, complementa Rosely. O tempo para Matuck parece passar de modo diverso. Ele não deixa quase nada para trás e vai somando novas descobertas a temas antigos. Pode demorar anos fazendo uma mesma escultura, mas, ao mesmo tempo, produz incansavelmente. Daí surge uma obra prolífica em temas e técnicas. Ao terminar seu relato sobre o ex-aluno, Renina Katz pediu para complementar a entrevista, pois havia se lembrado de uma coisa: “Acho que seu texto pode terminar dizendo que o Rubens não pertence àqueles que o Sérgio Milliet apelidava de ‘artigos do dia’; ele é único”.

Chegou-se para junto do mesão em que um par de crianças brincava de rabiscar folhas de sulfite e puxou papo. Queria saber qual era o nome da letra que um dos meninos - uns 14 anos, boné de aba reta, piercing de argola no nariz - usava para escrever. “Chama tag, é a letra do pixo”, disse um outro garoto que ouvia a conversa, esclarecendo que se tratava da caligrafia usada pelos pichadores. “Essa eu não conhecia, e olha que eu gosto muito de letra”, respondeu Rubens Matuck, já emendando um convite para que eles fossem fazer um pequeno tour pela exposição Tudo É Semente, que ele inaugurara cinco dias antes, no Sesc Interlagos, em São Paulo. Depois de mostrar aos meninos suas obras como calígrafo, em que trabalha com letras tridimensionais esculpidas na madeira, escritas com nanquim, pintadas em aquarela e recortadas no papel, pediu de presente alguma coisa escrita com a tal da tag. Uns 20 minutos depois, quando ia embora, o garoto do piercing no nariz cutucou o ombro do Matuck e estendeu um papel em que estava escrito Mogadon.

Texturas: começo da carreira foi como ilustrador do 'Jornal da Tarde' Foto: GABRIELA BILO/ ESTADAO

Para os contemporâneos de Paulo Francis, pode parecer estranho um menino de 14 anos escrever Mogadon - apelido que o jornalista botou no ex-senador Eduardo Suplicy (PT), em referência a um medicamento contra insônia que deixava quem o usava um pouco sonolento. Contudo, no contexto da exposição, espécie de emulação do ateliê de Matuck e também antologia de sua obra, nada poderia fazer mais sentido. Mogadon, no universo do artista, é um personagem que, ao lado do Conde Euphrates, vive no mundo fantasioso de Damar. A história nasceu na sua infância, quando Nacib, seu pai médico, levava catálogos de remédio para casa e ele, impressionado com a qualidade da impressão das propagandas e fascinado com o nome exótico do medicamento, acabou criando o personagem que acompanha sua carreira desde então. As Aventuras de Euphrates e Mogadom, que viraram histórias em quadrinhos, também são tema de maquetes, quadros a óleo e não param de invadir outros assuntos de sua obra. Seu interesse por caligrafia, por exemplo, surgiu quando, ao fazer um dos quadrinhos, não ficou satisfeito com o título que escreveu e a partir daí resolveu estudar a origem de letras e palavras.

“Acho que ele pode ser definido como um cara que não tem barreiras, ele conversa com qualquer pessoa, sobre qualquer assunto”, diz Rosely Nakagawa, curadora da exposição e companheira de Matuck desde seus 19 anos, quando cursaram a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) juntos. “Para ele, não interessa o nome do artista ou a qual corrente ele pertence; na realidade, não importa nem se ele é artista, o que importa é a técnica que a pessoa está usando.” Por isso, não seria de todo estranho se daqui dois ou três meses ele aparecesse com um trabalho em que investiga a origem e as possibilidades da letra usada pelos pichadores. Tudo é semente para Matuck: os outros, a propaganda de um remédio, uma árvore, o aspecto do branco na obra de determinado artista, a ferramenta de marchetaria de um antigo artesão. Tudo pode germinar. Por isso, sua produção desnorteia, habita mundos imaginários e reais, usa de uma infinitude de técnicas e trata de diferentes assuntos que, no entanto, estão enroscados em um mesmo bolo de feno que ele próprio criou.

Hoje, aos 63 anos, Matuck acha difícil falar do passado. As imagens quase sempre precedem a história em si, o que embaralha o sentido cronológico de qualquer acontecimento. E, quando as palavras tornam-se muito difíceis, ele quase sempre recorre ao visual. Ao lembrar o pintor Samson Flexor, seu professor desde os primeiros anos de adolescência, por exemplo, ele descreverá uma caixa cheia de latinhas que reparou escanteada na casa de um amigo. Ao abri-la, descobriu, maravilhado, a aquarela. Aí, então, passará a falar sobre como a aquarela é rebelde e como ela não tem nada a ver com técnica e como o homem é apenas um veículo na mão dela. Dirá que isso acontece porque na aquarela é a água que trabalha, tornando tudo volúvel. Ressaltará, contudo, que só aprendeu isso ao ler As Anotações Sobre Pintura do Monge Abóbora-amarga, o mais importante livro de pintura chinesa da história. Por fim, retornará a Flexor, aquele romeno que ele adorava e que, no começo, ficou reticente quando seu jovem aprendiz com muito respeito, mas praticamente exigindo, pediu que ele o introduzisse ao mundo da aquarela.

Aos 15 anos, Matuck já tomava aulas com Flexor, tinha ilustrado um livro didático de biologia - que, segundo conta Rosely, ele fez questão de ler inteiro e lembra de cor até hoje -, frequentava semanalmente o ateliê de Aldemir Martins, onde encontrava gente como Jorge Amado, Octávio Araújo, Mário Gruber e Gustavo Dahl. Em 1969, um ano depois da fundação do Jornal da Tarde, marco de uma época de ouro para o jornalismo diário, começou como ilustrador antes de completar 18 anos. Por causa do trabalho no jornal, se aproximaria também da gravura por meio de Marcelo Grassmann, que pediu a Aldemir Martins que o apresentasse ao jovem ilustrador. “Em 1973, quando entramos na FAU, eu já admirava o trabalho do Rubens no JT. Ele fazia desenhos impressionantes com bico de pena e, assim, logo ficamos amigos”, relembra o escritor Milton Hatoum, que pouco tempo depois lançaria, ao lado de Matuck, Rosely e Tania Parma, a revista Poetação, impressa artesanalmente nas oficinas da FAU e dedicada a poesia, gravura e ilustração.

Por volta de 1977, formado na FAU e ao sair do jornal, iniciou-se na arte de viajar. “Logo que conheci o Aldemir, ele disse que meu problema era ser um paulista burro e ignorante, impregnado dos preconceitos dessa elite que se quer europeia. Eu precisava viajar para ver o Brasil”, relembra Matuck. Demorou alguns para seguir o conselho; uma vez que começou, não parou. Desde então, seu trabalho é indissociável de uma preocupação com a identidade e paisagem brasileiras. “Como uma espécie de artista viajante do século 19, o Rubens começou a andar pelo Brasil e produzir uma série inesgotável de cadernos de viagem”, diz Hatoum. Hoje, são mais de 300 cadernos que tratam da fauna, flora, alimentação e atividades dos lugares por onde passou. Desenhar uma árvore como o buriti, para Matuck, no entanto, não é apenas retratá-la. O processo envolve conhecê-la profundamente, descobrindo quais são os usos artesanais que a população faz de sua madeira e semente. É entender o espaço em que ela cresce, no caso, a vereda - “verdadeira caixa d'água do território brasileiro” - e também compreender o cerrado que a cerca.

Meio curvadão, alto, Matuck tem a voz levemente desafinada e os olhos pequeninos por detrás dos óculos. Se interessa e desperta o interesse de todo tipo de gente. E sua personalidade mescla uma espécie de docilidade mercurial. Em uma viagem pelo Brasil, em outubro de 2014, depois de fazer comentários entusiasmados sobre o brejo paraibano, surpreendente microrregião de Mata Atlântica que forma um paredão de verde logo em frente ao sertão do Estado, comentou, arrancando risadas de seus companheiros de viagem: “Brasileiro que viaja para a Europa é muito burro, ninguém nem sabe que isso aqui existe”. Outra coisa que o deixa inflamado: a divisão entre arte erudita e arte popular. “Eu nunca vi um artista que não fosse do povo, para mim só existe uma arte.” A própria escolha de realizar a exposição Tudo é Semente no Sesc Interlagos, região periférica da cidade de São Paulo, revela muito de suas convicções. “A gente montou uma oficina lá e eu vou trabalhar nela duas vezes por semana. A ideia é que as pessoas entrem, conversem comigo, não tem nada a ver com vender”, diz. 

“O modo como ele mescla diferentes técnicas, temas e preocupações faz dele uma pessoa absolutamente diferente do mercado de arte e, por isso mesmo, é difícil de o mercado absorver. A arte pela arte não faz o menor sentido para ele”, diz o crítico Oscar D’Ambrósio que durante dois anos acompanhou o trabalho de Matuck semanalmente. Ao ser fotografado para esta reportagem, por exemplo, ele pediu com delicadeza para não ser dirigido pela fotógrafa: não queria que as fotos parecessem artificiais, como se ele pretendesse fazer propaganda do próprio trabalho. Para sua ex-professora de FAU, a artista Renina Katz, antigamente o prestígio não dizia tanto sobre o projeto de um artista como diz hoje. “O melhor do mundo, o melhor do país, o mais caro do mundo. Isso não era um valor. O que eu acho bom é que o Rubens não cabe nessa categoria, ele sempre está tentando melhorar sua técnica, ele não fica preocupado com fazer marketing, ele busca melhorar e isso faz dele um artista muito exigente, o que acaba por afastar algumas pessoas. Mas, no meu modo de ver, essa é a principal qualidade dele”, comenta Renina.

Quem encontra Matuck em uma de suas viagens, e nota seu interesse e conhecimento, pode tomá-lo facilmente por um botânico - para, no minuto seguinte, enxergá-lo como um antropólogo. “Desse ponto de vista, o trabalho do Rubens é muito renascentista. Assim como Da Vinci, ele abole a separação entre arte e ciência. Para ele, pintar uma árvore, estudá-la ou cuidar dela significa exatamente a mesma coisa”, diz D’Ambrósio. “Ele vai relacionando os conhecimentos sem nenhum preconceito. O tema dele é o que passa por trás da pintura, tem a ver com a relação direta com o fazer do artista, da cozinha do artista”, complementa Rosely. O tempo para Matuck parece passar de modo diverso. Ele não deixa quase nada para trás e vai somando novas descobertas a temas antigos. Pode demorar anos fazendo uma mesma escultura, mas, ao mesmo tempo, produz incansavelmente. Daí surge uma obra prolífica em temas e técnicas. Ao terminar seu relato sobre o ex-aluno, Renina Katz pediu para complementar a entrevista, pois havia se lembrado de uma coisa: “Acho que seu texto pode terminar dizendo que o Rubens não pertence àqueles que o Sérgio Milliet apelidava de ‘artigos do dia’; ele é único”.

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