Viegas: “A ideia de justiça pode se transformar numa obsessão capaz de criar injustiças tremendas”


No nono livro com o inspetor Jaime Ramos, ‘A Luz de Pequim’, escritor português percorre o submundo de várias cidades

Por Paulo Nogueira

Francisco José Viegas é um dos maiores escritores portugueses da atualidade. Luz de Pequim, agora lançado no Brasil, é mais uma saga da série protagonizada pelo inspetor Jaime Ramos e, como o multipremiado Longe de Manaus, também se desenrola em terras brasileiras. Além de uma vasta obra literária – ficção, poesia, crônicas –, Viegas tem uma persona pública febril: foi diretor da Casa Fernando Pessoa, deputado e ministro da Cultura, e é editor da Quetzal e da revista Ler. Pela qualidade da prosa, densidade humana e contextualização prismática da sociedade portuguesa contemporânea, a série Jaime Ramos transcende o nicho policial (embora cumpra os saborosos paradigmas do gênero) e é grande literatura em qualquer sentido.

Você conhece melhor o Brasil do que muitos brasileiros – dos Estados, só não esteve em Roraima. Neste romance, quando o Cledenor desponta, rouba a cena com uma réplica ao antilusitanismo brasileiro.

Muita coisa mudou nas relações entre Portugal e o Brasil. A minha geração foi mais brasileira do que se imagina – tínhamos os escritores, a música e o futebol. Li Jorge Amado, mas também Erico Veríssimo ou Graciliano.. E havia a MPB. E as novelas. E o futebol. Nós, portugueses, não tínhamos esse futebol, nem essa música, nem essa literatura. Tirando o caso de Pessoa, que é especial. Éramos mais tristes, menos livres, apesar de tudo. Em Portugal ignorava-se que no Brasil havia cronistas de primeira linha, opinião crítica. Até meados da década de 2000, os portugueses eram piada no Brasil. Cantavam uma coisa estranha e chata, o fado... Acho que, nessa década, o Brasil descobria Portugal, que passou a ser um país mais moderno e mais atrevido. E houve uma grande emigração brasileira para Portugal. Os portugueses ficavam espantados com aquela gente que atendia melhor nas lojas e nos restaurantes, simpática, que sabia gozar melhor a vida. Não eram só os brasileiros ricos que iam ver “a terrinha” e fotografar-se ao lado da estátua do Pessoa. Eu acho que uma grande porcentagem do pessoal rico é idiota, mas rico brasileiro é muito idiota. Eu apreciava aquela emigração brasileira, que se fixava tanto em Cascais como na Costa da Caparica, que sofria como sofre o pobre português, que aprendeu a dizer “autocarro”. Português idiota não reconhece o papel transformador daquela gente. Nos anos 2000 participei de debates na USP, e via brasileiros lamentarem o fato de o Brasil não ter sido colonizado pela Holanda. Um erro grosseiro, porque trocar os portugueses pelos criadores do apartheid não me parece uma vantagem. Na recente Bienal de São Paulo falou-se muito da descolonização em relação a Portugal, o que eu acho absurdo, duzentos anos depois! Uma artista brasileira que atuou na festa do Avante em Portugal, a festa do Partido Comunista, que apoia Putin, diz que escravidão e pobreza são herança de Cabral. O Cledenor diz a mesma coisa. Tem nisso muito de ignorância e de má fé, elementos importantes na formação da opinião populista, na construção do lugar da vítima, e hoje toda a gente gosta de ser vítima. O Cledenor é um fascista sutil, que explora os defeitos dos portugueses, que eram pobres, mal vestidos, mulheres de bigode, com um racismo epidérmico. Essa imagem dos portugueses hoje desapareceu, porque as novas gerações de brasileiros chegaram a Portugal e viram um país que conhece a sua cultura. Há uma Livraria da Travessa em Lisboa, uma das três mais famosas da cidade. Portugal descobriu o “Porta dos Fundos” e adorou. Os millenials brasileiros não têm esses preconceitos fascistas sobre Portugal.

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O escritor português Francisco José Viegas na praia de Ipanema, no Rio, durante entrevista ao 'Estadão', em 2007 Foto: Wilton Junior/Estadão

São 30 anos do policial Jaime Ramos em 10 livros. Apesar do tom crepuscular (“já só tenho a memória”), espero que ‘Luz de Pequim’ não seja o canto do cisne deste patinho feio da polícia portuguesa...

Está a sair o novo livro, Melancholia, uma resposta de Jaime Ramos à ameaça do seu desaparecimento. Uma história onde também há Brasil... Em países como Itália ou Alemanha, nas capas dos livros, o meu nome aparece pequenininho, e em grande aparece “mais uma investigação do detetive Jaime Ramos”. É a glória de qualquer escritor...

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Jaime se apaixonou por Rosa “porque ela me disse que tinha fome. Que lhe apetecia comer. Jantar.” Como outros investigadores bons garfos: Pepe Carvalho, do espanhol Montalbán, e Montalbano, do italiano Camilleri.

Nós, portugueses, passamos metade da nossa vida em redor da mesa e a falar de comida. O problema é que, no caso da literatura portuguesa, salvo o Aquilino Ribeiro, a comida e a cozinha estão afastados do romance. Não há um fogo a aquecer uma panela. Cozinhar era coisa de pobre ou de gente sem aquele ideal de literatura elevada. Tanto Montalbán como Camilleri só podiam ser mediterrânicos. No Brasil, há o Rubem Fonseca. Lembro de um encontro com o Rubem, em Portugal, em fevereiro, que é inverno, e ele queria sardinhas, uma coisa de verão. E encontramos sardinhas. Nunca vi ninguém tão feliz por comer sardinhas. Hoje a comida é uma espécie de exibicionismo no Instagram. Qual dos motivos para se escrever um policial, aventados por P D James, você subscreve: a) Para conferir um pouco de ordem ao caos aterrorizante b) Para extrair justiça da injustiça c) Para dar a ilusão de que vivemos num universo moral e compreensível. As três coisas estão reunidas, não? Mas acho que o caos é eterno, e que a ideia de justiça pode se transformar numa obsessão capaz de criar injustiças tremendas. Jaime Ramos segue um certo ideal de justiça, mesmo não cumprindo a lei e violando a lei. Ele esconde provas, sonega materiais da cena do crime, altera os relatórios, porque sabe que a justiça vai muito mais além da lei, depende de uma ordem que temos de ser capazes de compreender. Mas também não é moralista no sentido de impor uma conduta, uma redução do humano ao ético, ao bem comportado. Isso não lhe interessa nada, porque conhece o sabor da derrota, sabe que os bons nunca triunfarão sobre os maus. Investiga para que possamos compreender como chegamos até aqui, e para que as vítimas não sofram mais.

Você assumiu que surrupiou um personagem ao Rubem Fonseca...

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Foi em Crime Capital. Mas não há nenhum livro meu que não tenha o Brasil pelo meio. Nesse caso, um emigrante brasileiro foi assassinado no Porto, e eu precisava de um criminalista brasileiro... Percebi que não conseguia fugir de um que já existia, o Mandrake do Rubem. E aí fiz o mais lógico: roubei. A maior alegria foi receber um email do Rubem a dizer “gostei, você foi generoso com o Mandrake”. Fui nada generoso. Eu roubei com prazer, porque escritor está sempre a roubar, não é? Há uma história que se passou em Ouro Preto, num daqueles festivais. Era uma mesa sobre “influência”. Eu já não podia repetir aquela lengalenga de “fui muito influenciado por Eça, por Machado...” Então disse, “Agradeço muito ter aprendido a escrever com esses autores, mas eu prefiro roubar mesmo...” Houve um pasmo na sala, uns risos. No dia seguinte, um autor que estava numa mesa de tema diferente declarou que era grave o que tinha acontecido no dia anterior, “esteve aqui um português que falou de roubar, isso é grave, há a lei do direito de autor, a propriedade intelectual, etc, ...” Eu enfiei-me na cadeira, envergonhado por causa da falta de senso de humor do sujeito. Uns anos depois cruzei-me com ele num festival, em Portugal, creio, e pisquei-lhe o olho. Como se dissesse, “escreve, que vou te roubar...” Ou pior, “vou te enfiar num romance”...

O escritor de romances policiais Rubem Fonseca, que criou o detetive Mandrake  Foto: Acervo Estadão

Hoje, com conceitos como “lugar de fala” e “apropriação cultural”, os ficcionistas (especialmente os mais jovens) ainda conseguirão descrever um universo que não se reduza ao seu umbigo, ou irá prevalecer, se não a censura, pelo menos a autocensura? Um jovem autor ainda poderá dizer, como Flaubert, “Madame Bovary c’est moi”?

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Tenho muitas dúvidas. Esta ideias de que os autores têm de ser boas pessoas, defender boas causas, terem bons sentimentos, é muito assustadora. Vamos descobrir que Flaubert era um cafajeste, que o Tolstoi desprezava a família, que o Balzac era um reacionário... Então, toda a gente quer ser boazinha aos olhos dos outros, sobretudo falando de si própria, transformando-se em centro do mundo, dando bons exemplos morais. E a autocensura vai ganhar foro de loucura. Tive uma autora que pediu para rever e mudar o romance inteiro dela, porque falava de negros, e esse não era o seu “lugar de fala”. Isto é um absurdo. Ninguém vai querer ser Madame Bovary, nesse mundo higienizado e bondoso, porque ela era adúltera, provinciana, romântica, seduzida. Negar a possibilidade de conhecer o bem e o mal é como suprimir a ideia de sermos seres humanos. Um dia, o bom escritor vai ser aquele que escreve para não ofender. E “apropriação cultural” é uma formulação reacionária. O grande é o Manifesto Antropofágico: a gente devora tudo, a gente devora todas as influências e faz delas obra universal. O Oswald de Andrade é uma das pessoas mais luminosas na cultura brasileira.

A LUZ DE PEQUIM

FRANCISCO JOSÉ VIEGAS

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EDITORA GRYPHUS

254 PÁGINAS

R$ 60

Francisco José Viegas é um dos maiores escritores portugueses da atualidade. Luz de Pequim, agora lançado no Brasil, é mais uma saga da série protagonizada pelo inspetor Jaime Ramos e, como o multipremiado Longe de Manaus, também se desenrola em terras brasileiras. Além de uma vasta obra literária – ficção, poesia, crônicas –, Viegas tem uma persona pública febril: foi diretor da Casa Fernando Pessoa, deputado e ministro da Cultura, e é editor da Quetzal e da revista Ler. Pela qualidade da prosa, densidade humana e contextualização prismática da sociedade portuguesa contemporânea, a série Jaime Ramos transcende o nicho policial (embora cumpra os saborosos paradigmas do gênero) e é grande literatura em qualquer sentido.

Você conhece melhor o Brasil do que muitos brasileiros – dos Estados, só não esteve em Roraima. Neste romance, quando o Cledenor desponta, rouba a cena com uma réplica ao antilusitanismo brasileiro.

Muita coisa mudou nas relações entre Portugal e o Brasil. A minha geração foi mais brasileira do que se imagina – tínhamos os escritores, a música e o futebol. Li Jorge Amado, mas também Erico Veríssimo ou Graciliano.. E havia a MPB. E as novelas. E o futebol. Nós, portugueses, não tínhamos esse futebol, nem essa música, nem essa literatura. Tirando o caso de Pessoa, que é especial. Éramos mais tristes, menos livres, apesar de tudo. Em Portugal ignorava-se que no Brasil havia cronistas de primeira linha, opinião crítica. Até meados da década de 2000, os portugueses eram piada no Brasil. Cantavam uma coisa estranha e chata, o fado... Acho que, nessa década, o Brasil descobria Portugal, que passou a ser um país mais moderno e mais atrevido. E houve uma grande emigração brasileira para Portugal. Os portugueses ficavam espantados com aquela gente que atendia melhor nas lojas e nos restaurantes, simpática, que sabia gozar melhor a vida. Não eram só os brasileiros ricos que iam ver “a terrinha” e fotografar-se ao lado da estátua do Pessoa. Eu acho que uma grande porcentagem do pessoal rico é idiota, mas rico brasileiro é muito idiota. Eu apreciava aquela emigração brasileira, que se fixava tanto em Cascais como na Costa da Caparica, que sofria como sofre o pobre português, que aprendeu a dizer “autocarro”. Português idiota não reconhece o papel transformador daquela gente. Nos anos 2000 participei de debates na USP, e via brasileiros lamentarem o fato de o Brasil não ter sido colonizado pela Holanda. Um erro grosseiro, porque trocar os portugueses pelos criadores do apartheid não me parece uma vantagem. Na recente Bienal de São Paulo falou-se muito da descolonização em relação a Portugal, o que eu acho absurdo, duzentos anos depois! Uma artista brasileira que atuou na festa do Avante em Portugal, a festa do Partido Comunista, que apoia Putin, diz que escravidão e pobreza são herança de Cabral. O Cledenor diz a mesma coisa. Tem nisso muito de ignorância e de má fé, elementos importantes na formação da opinião populista, na construção do lugar da vítima, e hoje toda a gente gosta de ser vítima. O Cledenor é um fascista sutil, que explora os defeitos dos portugueses, que eram pobres, mal vestidos, mulheres de bigode, com um racismo epidérmico. Essa imagem dos portugueses hoje desapareceu, porque as novas gerações de brasileiros chegaram a Portugal e viram um país que conhece a sua cultura. Há uma Livraria da Travessa em Lisboa, uma das três mais famosas da cidade. Portugal descobriu o “Porta dos Fundos” e adorou. Os millenials brasileiros não têm esses preconceitos fascistas sobre Portugal.

O escritor português Francisco José Viegas na praia de Ipanema, no Rio, durante entrevista ao 'Estadão', em 2007 Foto: Wilton Junior/Estadão

São 30 anos do policial Jaime Ramos em 10 livros. Apesar do tom crepuscular (“já só tenho a memória”), espero que ‘Luz de Pequim’ não seja o canto do cisne deste patinho feio da polícia portuguesa...

Está a sair o novo livro, Melancholia, uma resposta de Jaime Ramos à ameaça do seu desaparecimento. Uma história onde também há Brasil... Em países como Itália ou Alemanha, nas capas dos livros, o meu nome aparece pequenininho, e em grande aparece “mais uma investigação do detetive Jaime Ramos”. É a glória de qualquer escritor...

Jaime se apaixonou por Rosa “porque ela me disse que tinha fome. Que lhe apetecia comer. Jantar.” Como outros investigadores bons garfos: Pepe Carvalho, do espanhol Montalbán, e Montalbano, do italiano Camilleri.

Nós, portugueses, passamos metade da nossa vida em redor da mesa e a falar de comida. O problema é que, no caso da literatura portuguesa, salvo o Aquilino Ribeiro, a comida e a cozinha estão afastados do romance. Não há um fogo a aquecer uma panela. Cozinhar era coisa de pobre ou de gente sem aquele ideal de literatura elevada. Tanto Montalbán como Camilleri só podiam ser mediterrânicos. No Brasil, há o Rubem Fonseca. Lembro de um encontro com o Rubem, em Portugal, em fevereiro, que é inverno, e ele queria sardinhas, uma coisa de verão. E encontramos sardinhas. Nunca vi ninguém tão feliz por comer sardinhas. Hoje a comida é uma espécie de exibicionismo no Instagram. Qual dos motivos para se escrever um policial, aventados por P D James, você subscreve: a) Para conferir um pouco de ordem ao caos aterrorizante b) Para extrair justiça da injustiça c) Para dar a ilusão de que vivemos num universo moral e compreensível. As três coisas estão reunidas, não? Mas acho que o caos é eterno, e que a ideia de justiça pode se transformar numa obsessão capaz de criar injustiças tremendas. Jaime Ramos segue um certo ideal de justiça, mesmo não cumprindo a lei e violando a lei. Ele esconde provas, sonega materiais da cena do crime, altera os relatórios, porque sabe que a justiça vai muito mais além da lei, depende de uma ordem que temos de ser capazes de compreender. Mas também não é moralista no sentido de impor uma conduta, uma redução do humano ao ético, ao bem comportado. Isso não lhe interessa nada, porque conhece o sabor da derrota, sabe que os bons nunca triunfarão sobre os maus. Investiga para que possamos compreender como chegamos até aqui, e para que as vítimas não sofram mais.

Você assumiu que surrupiou um personagem ao Rubem Fonseca...

Foi em Crime Capital. Mas não há nenhum livro meu que não tenha o Brasil pelo meio. Nesse caso, um emigrante brasileiro foi assassinado no Porto, e eu precisava de um criminalista brasileiro... Percebi que não conseguia fugir de um que já existia, o Mandrake do Rubem. E aí fiz o mais lógico: roubei. A maior alegria foi receber um email do Rubem a dizer “gostei, você foi generoso com o Mandrake”. Fui nada generoso. Eu roubei com prazer, porque escritor está sempre a roubar, não é? Há uma história que se passou em Ouro Preto, num daqueles festivais. Era uma mesa sobre “influência”. Eu já não podia repetir aquela lengalenga de “fui muito influenciado por Eça, por Machado...” Então disse, “Agradeço muito ter aprendido a escrever com esses autores, mas eu prefiro roubar mesmo...” Houve um pasmo na sala, uns risos. No dia seguinte, um autor que estava numa mesa de tema diferente declarou que era grave o que tinha acontecido no dia anterior, “esteve aqui um português que falou de roubar, isso é grave, há a lei do direito de autor, a propriedade intelectual, etc, ...” Eu enfiei-me na cadeira, envergonhado por causa da falta de senso de humor do sujeito. Uns anos depois cruzei-me com ele num festival, em Portugal, creio, e pisquei-lhe o olho. Como se dissesse, “escreve, que vou te roubar...” Ou pior, “vou te enfiar num romance”...

O escritor de romances policiais Rubem Fonseca, que criou o detetive Mandrake  Foto: Acervo Estadão

Hoje, com conceitos como “lugar de fala” e “apropriação cultural”, os ficcionistas (especialmente os mais jovens) ainda conseguirão descrever um universo que não se reduza ao seu umbigo, ou irá prevalecer, se não a censura, pelo menos a autocensura? Um jovem autor ainda poderá dizer, como Flaubert, “Madame Bovary c’est moi”?

Tenho muitas dúvidas. Esta ideias de que os autores têm de ser boas pessoas, defender boas causas, terem bons sentimentos, é muito assustadora. Vamos descobrir que Flaubert era um cafajeste, que o Tolstoi desprezava a família, que o Balzac era um reacionário... Então, toda a gente quer ser boazinha aos olhos dos outros, sobretudo falando de si própria, transformando-se em centro do mundo, dando bons exemplos morais. E a autocensura vai ganhar foro de loucura. Tive uma autora que pediu para rever e mudar o romance inteiro dela, porque falava de negros, e esse não era o seu “lugar de fala”. Isto é um absurdo. Ninguém vai querer ser Madame Bovary, nesse mundo higienizado e bondoso, porque ela era adúltera, provinciana, romântica, seduzida. Negar a possibilidade de conhecer o bem e o mal é como suprimir a ideia de sermos seres humanos. Um dia, o bom escritor vai ser aquele que escreve para não ofender. E “apropriação cultural” é uma formulação reacionária. O grande é o Manifesto Antropofágico: a gente devora tudo, a gente devora todas as influências e faz delas obra universal. O Oswald de Andrade é uma das pessoas mais luminosas na cultura brasileira.

A LUZ DE PEQUIM

FRANCISCO JOSÉ VIEGAS

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254 PÁGINAS

R$ 60

Francisco José Viegas é um dos maiores escritores portugueses da atualidade. Luz de Pequim, agora lançado no Brasil, é mais uma saga da série protagonizada pelo inspetor Jaime Ramos e, como o multipremiado Longe de Manaus, também se desenrola em terras brasileiras. Além de uma vasta obra literária – ficção, poesia, crônicas –, Viegas tem uma persona pública febril: foi diretor da Casa Fernando Pessoa, deputado e ministro da Cultura, e é editor da Quetzal e da revista Ler. Pela qualidade da prosa, densidade humana e contextualização prismática da sociedade portuguesa contemporânea, a série Jaime Ramos transcende o nicho policial (embora cumpra os saborosos paradigmas do gênero) e é grande literatura em qualquer sentido.

Você conhece melhor o Brasil do que muitos brasileiros – dos Estados, só não esteve em Roraima. Neste romance, quando o Cledenor desponta, rouba a cena com uma réplica ao antilusitanismo brasileiro.

Muita coisa mudou nas relações entre Portugal e o Brasil. A minha geração foi mais brasileira do que se imagina – tínhamos os escritores, a música e o futebol. Li Jorge Amado, mas também Erico Veríssimo ou Graciliano.. E havia a MPB. E as novelas. E o futebol. Nós, portugueses, não tínhamos esse futebol, nem essa música, nem essa literatura. Tirando o caso de Pessoa, que é especial. Éramos mais tristes, menos livres, apesar de tudo. Em Portugal ignorava-se que no Brasil havia cronistas de primeira linha, opinião crítica. Até meados da década de 2000, os portugueses eram piada no Brasil. Cantavam uma coisa estranha e chata, o fado... Acho que, nessa década, o Brasil descobria Portugal, que passou a ser um país mais moderno e mais atrevido. E houve uma grande emigração brasileira para Portugal. Os portugueses ficavam espantados com aquela gente que atendia melhor nas lojas e nos restaurantes, simpática, que sabia gozar melhor a vida. Não eram só os brasileiros ricos que iam ver “a terrinha” e fotografar-se ao lado da estátua do Pessoa. Eu acho que uma grande porcentagem do pessoal rico é idiota, mas rico brasileiro é muito idiota. Eu apreciava aquela emigração brasileira, que se fixava tanto em Cascais como na Costa da Caparica, que sofria como sofre o pobre português, que aprendeu a dizer “autocarro”. Português idiota não reconhece o papel transformador daquela gente. Nos anos 2000 participei de debates na USP, e via brasileiros lamentarem o fato de o Brasil não ter sido colonizado pela Holanda. Um erro grosseiro, porque trocar os portugueses pelos criadores do apartheid não me parece uma vantagem. Na recente Bienal de São Paulo falou-se muito da descolonização em relação a Portugal, o que eu acho absurdo, duzentos anos depois! Uma artista brasileira que atuou na festa do Avante em Portugal, a festa do Partido Comunista, que apoia Putin, diz que escravidão e pobreza são herança de Cabral. O Cledenor diz a mesma coisa. Tem nisso muito de ignorância e de má fé, elementos importantes na formação da opinião populista, na construção do lugar da vítima, e hoje toda a gente gosta de ser vítima. O Cledenor é um fascista sutil, que explora os defeitos dos portugueses, que eram pobres, mal vestidos, mulheres de bigode, com um racismo epidérmico. Essa imagem dos portugueses hoje desapareceu, porque as novas gerações de brasileiros chegaram a Portugal e viram um país que conhece a sua cultura. Há uma Livraria da Travessa em Lisboa, uma das três mais famosas da cidade. Portugal descobriu o “Porta dos Fundos” e adorou. Os millenials brasileiros não têm esses preconceitos fascistas sobre Portugal.

O escritor português Francisco José Viegas na praia de Ipanema, no Rio, durante entrevista ao 'Estadão', em 2007 Foto: Wilton Junior/Estadão

São 30 anos do policial Jaime Ramos em 10 livros. Apesar do tom crepuscular (“já só tenho a memória”), espero que ‘Luz de Pequim’ não seja o canto do cisne deste patinho feio da polícia portuguesa...

Está a sair o novo livro, Melancholia, uma resposta de Jaime Ramos à ameaça do seu desaparecimento. Uma história onde também há Brasil... Em países como Itália ou Alemanha, nas capas dos livros, o meu nome aparece pequenininho, e em grande aparece “mais uma investigação do detetive Jaime Ramos”. É a glória de qualquer escritor...

Jaime se apaixonou por Rosa “porque ela me disse que tinha fome. Que lhe apetecia comer. Jantar.” Como outros investigadores bons garfos: Pepe Carvalho, do espanhol Montalbán, e Montalbano, do italiano Camilleri.

Nós, portugueses, passamos metade da nossa vida em redor da mesa e a falar de comida. O problema é que, no caso da literatura portuguesa, salvo o Aquilino Ribeiro, a comida e a cozinha estão afastados do romance. Não há um fogo a aquecer uma panela. Cozinhar era coisa de pobre ou de gente sem aquele ideal de literatura elevada. Tanto Montalbán como Camilleri só podiam ser mediterrânicos. No Brasil, há o Rubem Fonseca. Lembro de um encontro com o Rubem, em Portugal, em fevereiro, que é inverno, e ele queria sardinhas, uma coisa de verão. E encontramos sardinhas. Nunca vi ninguém tão feliz por comer sardinhas. Hoje a comida é uma espécie de exibicionismo no Instagram. Qual dos motivos para se escrever um policial, aventados por P D James, você subscreve: a) Para conferir um pouco de ordem ao caos aterrorizante b) Para extrair justiça da injustiça c) Para dar a ilusão de que vivemos num universo moral e compreensível. As três coisas estão reunidas, não? Mas acho que o caos é eterno, e que a ideia de justiça pode se transformar numa obsessão capaz de criar injustiças tremendas. Jaime Ramos segue um certo ideal de justiça, mesmo não cumprindo a lei e violando a lei. Ele esconde provas, sonega materiais da cena do crime, altera os relatórios, porque sabe que a justiça vai muito mais além da lei, depende de uma ordem que temos de ser capazes de compreender. Mas também não é moralista no sentido de impor uma conduta, uma redução do humano ao ético, ao bem comportado. Isso não lhe interessa nada, porque conhece o sabor da derrota, sabe que os bons nunca triunfarão sobre os maus. Investiga para que possamos compreender como chegamos até aqui, e para que as vítimas não sofram mais.

Você assumiu que surrupiou um personagem ao Rubem Fonseca...

Foi em Crime Capital. Mas não há nenhum livro meu que não tenha o Brasil pelo meio. Nesse caso, um emigrante brasileiro foi assassinado no Porto, e eu precisava de um criminalista brasileiro... Percebi que não conseguia fugir de um que já existia, o Mandrake do Rubem. E aí fiz o mais lógico: roubei. A maior alegria foi receber um email do Rubem a dizer “gostei, você foi generoso com o Mandrake”. Fui nada generoso. Eu roubei com prazer, porque escritor está sempre a roubar, não é? Há uma história que se passou em Ouro Preto, num daqueles festivais. Era uma mesa sobre “influência”. Eu já não podia repetir aquela lengalenga de “fui muito influenciado por Eça, por Machado...” Então disse, “Agradeço muito ter aprendido a escrever com esses autores, mas eu prefiro roubar mesmo...” Houve um pasmo na sala, uns risos. No dia seguinte, um autor que estava numa mesa de tema diferente declarou que era grave o que tinha acontecido no dia anterior, “esteve aqui um português que falou de roubar, isso é grave, há a lei do direito de autor, a propriedade intelectual, etc, ...” Eu enfiei-me na cadeira, envergonhado por causa da falta de senso de humor do sujeito. Uns anos depois cruzei-me com ele num festival, em Portugal, creio, e pisquei-lhe o olho. Como se dissesse, “escreve, que vou te roubar...” Ou pior, “vou te enfiar num romance”...

O escritor de romances policiais Rubem Fonseca, que criou o detetive Mandrake  Foto: Acervo Estadão

Hoje, com conceitos como “lugar de fala” e “apropriação cultural”, os ficcionistas (especialmente os mais jovens) ainda conseguirão descrever um universo que não se reduza ao seu umbigo, ou irá prevalecer, se não a censura, pelo menos a autocensura? Um jovem autor ainda poderá dizer, como Flaubert, “Madame Bovary c’est moi”?

Tenho muitas dúvidas. Esta ideias de que os autores têm de ser boas pessoas, defender boas causas, terem bons sentimentos, é muito assustadora. Vamos descobrir que Flaubert era um cafajeste, que o Tolstoi desprezava a família, que o Balzac era um reacionário... Então, toda a gente quer ser boazinha aos olhos dos outros, sobretudo falando de si própria, transformando-se em centro do mundo, dando bons exemplos morais. E a autocensura vai ganhar foro de loucura. Tive uma autora que pediu para rever e mudar o romance inteiro dela, porque falava de negros, e esse não era o seu “lugar de fala”. Isto é um absurdo. Ninguém vai querer ser Madame Bovary, nesse mundo higienizado e bondoso, porque ela era adúltera, provinciana, romântica, seduzida. Negar a possibilidade de conhecer o bem e o mal é como suprimir a ideia de sermos seres humanos. Um dia, o bom escritor vai ser aquele que escreve para não ofender. E “apropriação cultural” é uma formulação reacionária. O grande é o Manifesto Antropofágico: a gente devora tudo, a gente devora todas as influências e faz delas obra universal. O Oswald de Andrade é uma das pessoas mais luminosas na cultura brasileira.

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