Virtù e fortuna


Muitos viram na goleada a vitória da técnica sobre o instinto, mas do futebol nunca se exclui a sorte

Por Renato Janine Ribeiro
Neymar of Brazil adjusts his soccer shoes during an international friendly soccer match against Panama ahead of the 2014 World Cup, in Goiania June 3, 2014. REUTERS/Ueslei Marcelino (BRAZIL - Tags: SPORT SOCCER WORLD CUP) Foto: UESLEI MARCELINO/REUTERS

Quase todos os amigos que se interessam por analisar a política, inclusive os mais pernas de pau, como eu, que quase tudo que sei é que impedimento não é a mesma coisa que “impeachment”, estão discutindo nossa política à luz da Copa. Não é um acaso. Durante o jogo do Brasil com a Alemanha, veio-me uma intuição: não há atividade humana que ilustre tão bem a tese de Maquiavel sobre a virtù e a fortuna quanto o futebol. Explico-me.

Para Maquiavel, metade de nossas ações é governada pela fortuna, metade pela virtù. A fortuna é fácil de entender: é o acaso, a sorte, favorável ou desfavorável. Já a virtù, palavra que vem do latim “vir”, varão, designa o agir propriamente viril, varonil, ou seja, tudo que vem de uma deliberação madura e atenta de como agir. Assim, metade do que vivemos se deve à sorte ou azar, à fortuna ou infortúnio, e a outra metade tentamos, a duras penas, que resulte de nosso empenho, de nossa tentativa de pôr ordem - nossa ordem - na bagunça do mundo. 

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A tarefa humana, e sobretudo a do governante (que Maquiavel expõe em O Príncipe), é vencer e ganhar. Mas, nisso, esbarramos no inesperado, no imponderável. Assim, o Brasil se desenvolve, o que implica maior consumo de energia e d’água. E vem um ano de seca, totalmente fora dos padrões! Isso afeta o abastecimento de energia, responsabilidade do governo federal, e de água, que é do estadual. No meio do planejamento, que é virtù, mete-se a fortuna, a atrapalhá-lo. Claro, pode-se aprender com a lição - aumentando-se a oferta de energia, melhorando a gestão da água. Ou: um de nós quer trocar de carro, faz contas, separa economias e de repente adoece. Ou ainda, saindo dos casos de infortúnio para passar aos de boa fortuna, alguém perde um emprego; não encontra nova colocação; uma noite vai jantar em casa dos amigos, conhece uma pessoa que lhe fala de novos rumos e descobre uma nova vocação. Dei exemplos radicais, mas isso nos acontece todo dia. Somos bafejados pela sorte ou azar e fazemos nossos cálculos: aí estão fortuna e virtù; e esses dois pelejam o tempo todo; o que conseguimos é uma mescla, sempre instável, de um e outro.

Que tem o futebol a ver com isso? Tudo. Raro objeto é tão esquivo, tão elusivo quanto a bola. Ela quica, numa adaptação curiosa do inglês kick, que significa usar o pé ou pés para chutar (palavra que, por sua vez, vem do inglês shoot). Mas vejam a mudança: to kick descreve uma ação do jogador, enquanto “quicar” se refere ao movimento da bola. O jogador chuta, numa reação elaborada ao longo de anos de treino e luta, para acertar a meta. Já a bola “bate e volta”, como explica o Houaiss no verbete “quicar”, afetada pelo gramado, o vento, sabe-se o que mais. To kick é virtù. Quicar é fortuna. Do inglês ao português, passamos da ação deliberada, com um sujeito que planeja, para o azar do objeto, que adquire vida própria, furtando-se ao que o jogador almejava. 

As mãos são melhores, para imprimir movimentos seguros, do que os pés. Com a mão sintonizamos melhor direção e distância. O pé é mais forte, sim, mas chutar é uma arte difícil. Jogar com maestria usando os pés é uma proeza. Um esporte com os pés provavelmente exige mais do que se usasse as mãos. Por isso, quando um país adota o futebol como esporte de sua identidade nacional, quando o mundo o eleva a modalidade esportiva dominante, país e mundo escolhem uma tarefa, uma missão mais difícil, mais nobre: talhar um membro para a atividade à qual não é o mais adequado, alçar pela dificuldade os membros inferiores a uma condição superior. O mundo vira de cabeça para baixo, o pé domina, como naqueles mapas quatrocentistas em que o Sul está acima e o Norte, abaixo. É como o orador ateniense Demóstenes, que venceu a gagueira, não facilitando, mas dificultando seus exercícios: para agravar o desafio, ele enchia de pedrinhas a boca. O futebol, além de lidar com variáveis sobre as quais o controle é por princípio impossível (as da fortuna), dificulta aquilo que seria mais passível de planejamento e deliberação - usando os pés em vez das mãos. Acentua a fortuna, para exigir mais da virtù.

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“Meter os pés pelas mãos” é uma expressão corrente nossa, para indicar o máximo da inabilidade. Não é fascinante que os brasileiros queiram ser hábeis usando os pés e não as mãos? A ambição é alta. Ainda mais porque, pelo menos até hoje, quando se pensa no país mais identificado ao futebol, se elege o Brasil. Que de propósito escolhe o difícil. A cada partida entram em campo não só dois times, mas a virtù e a fortuna. Um gol - ou uma defesa - geralmente é uma vitória da virtù sobre a fortuna. 

Muitos viram a goleada da Alemanha na seleção como uma vitória da técnica sobre a intuição, ou seja, da virtù sobre a fortuna. Discordo desse exercício de amesquinhamento do Brasil. Do esporte que foi bretão, nunca se exclui a fortuna. Os seis minutos cruciais em que se apagou a nossa estrela (lembro que a fortuna é da família da astrologia) poderiam não ter ocorrido daquele jeito. Cada vez que um gol é anulado, ele não se repete. É claro que devemos investir mais na virtù, aprimorar pontos falhos. Mas um jogo de futebol é sempre uma encenação do drama principal do poder, em que a ação deliberada do homem confronta o acaso da grama, do ar, do clima. Um campeonato de futebol é um drama do poder. Hoje, quando cada um de nós se sente livre - e inseguro - como o príncipe de Maquiavel para lidar com o mundo, sem mais o amparo dos velhos referentes, uma partida serve de metáfora da vida, de continuação desse combate que o homem trava para governar o destino, esse drama de Sísifo, que nunca vencemos de todo, que no final sempre perdemos, mas que é imperioso travar. 

*

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Renato Janine Ribeiro é professor de Ética e Filosofia na USP e autor de A universidade e a vida atual (Companhia das Letras)

Neymar of Brazil adjusts his soccer shoes during an international friendly soccer match against Panama ahead of the 2014 World Cup, in Goiania June 3, 2014. REUTERS/Ueslei Marcelino (BRAZIL - Tags: SPORT SOCCER WORLD CUP) Foto: UESLEI MARCELINO/REUTERS

Quase todos os amigos que se interessam por analisar a política, inclusive os mais pernas de pau, como eu, que quase tudo que sei é que impedimento não é a mesma coisa que “impeachment”, estão discutindo nossa política à luz da Copa. Não é um acaso. Durante o jogo do Brasil com a Alemanha, veio-me uma intuição: não há atividade humana que ilustre tão bem a tese de Maquiavel sobre a virtù e a fortuna quanto o futebol. Explico-me.

Para Maquiavel, metade de nossas ações é governada pela fortuna, metade pela virtù. A fortuna é fácil de entender: é o acaso, a sorte, favorável ou desfavorável. Já a virtù, palavra que vem do latim “vir”, varão, designa o agir propriamente viril, varonil, ou seja, tudo que vem de uma deliberação madura e atenta de como agir. Assim, metade do que vivemos se deve à sorte ou azar, à fortuna ou infortúnio, e a outra metade tentamos, a duras penas, que resulte de nosso empenho, de nossa tentativa de pôr ordem - nossa ordem - na bagunça do mundo. 

A tarefa humana, e sobretudo a do governante (que Maquiavel expõe em O Príncipe), é vencer e ganhar. Mas, nisso, esbarramos no inesperado, no imponderável. Assim, o Brasil se desenvolve, o que implica maior consumo de energia e d’água. E vem um ano de seca, totalmente fora dos padrões! Isso afeta o abastecimento de energia, responsabilidade do governo federal, e de água, que é do estadual. No meio do planejamento, que é virtù, mete-se a fortuna, a atrapalhá-lo. Claro, pode-se aprender com a lição - aumentando-se a oferta de energia, melhorando a gestão da água. Ou: um de nós quer trocar de carro, faz contas, separa economias e de repente adoece. Ou ainda, saindo dos casos de infortúnio para passar aos de boa fortuna, alguém perde um emprego; não encontra nova colocação; uma noite vai jantar em casa dos amigos, conhece uma pessoa que lhe fala de novos rumos e descobre uma nova vocação. Dei exemplos radicais, mas isso nos acontece todo dia. Somos bafejados pela sorte ou azar e fazemos nossos cálculos: aí estão fortuna e virtù; e esses dois pelejam o tempo todo; o que conseguimos é uma mescla, sempre instável, de um e outro.

Que tem o futebol a ver com isso? Tudo. Raro objeto é tão esquivo, tão elusivo quanto a bola. Ela quica, numa adaptação curiosa do inglês kick, que significa usar o pé ou pés para chutar (palavra que, por sua vez, vem do inglês shoot). Mas vejam a mudança: to kick descreve uma ação do jogador, enquanto “quicar” se refere ao movimento da bola. O jogador chuta, numa reação elaborada ao longo de anos de treino e luta, para acertar a meta. Já a bola “bate e volta”, como explica o Houaiss no verbete “quicar”, afetada pelo gramado, o vento, sabe-se o que mais. To kick é virtù. Quicar é fortuna. Do inglês ao português, passamos da ação deliberada, com um sujeito que planeja, para o azar do objeto, que adquire vida própria, furtando-se ao que o jogador almejava. 

As mãos são melhores, para imprimir movimentos seguros, do que os pés. Com a mão sintonizamos melhor direção e distância. O pé é mais forte, sim, mas chutar é uma arte difícil. Jogar com maestria usando os pés é uma proeza. Um esporte com os pés provavelmente exige mais do que se usasse as mãos. Por isso, quando um país adota o futebol como esporte de sua identidade nacional, quando o mundo o eleva a modalidade esportiva dominante, país e mundo escolhem uma tarefa, uma missão mais difícil, mais nobre: talhar um membro para a atividade à qual não é o mais adequado, alçar pela dificuldade os membros inferiores a uma condição superior. O mundo vira de cabeça para baixo, o pé domina, como naqueles mapas quatrocentistas em que o Sul está acima e o Norte, abaixo. É como o orador ateniense Demóstenes, que venceu a gagueira, não facilitando, mas dificultando seus exercícios: para agravar o desafio, ele enchia de pedrinhas a boca. O futebol, além de lidar com variáveis sobre as quais o controle é por princípio impossível (as da fortuna), dificulta aquilo que seria mais passível de planejamento e deliberação - usando os pés em vez das mãos. Acentua a fortuna, para exigir mais da virtù.

“Meter os pés pelas mãos” é uma expressão corrente nossa, para indicar o máximo da inabilidade. Não é fascinante que os brasileiros queiram ser hábeis usando os pés e não as mãos? A ambição é alta. Ainda mais porque, pelo menos até hoje, quando se pensa no país mais identificado ao futebol, se elege o Brasil. Que de propósito escolhe o difícil. A cada partida entram em campo não só dois times, mas a virtù e a fortuna. Um gol - ou uma defesa - geralmente é uma vitória da virtù sobre a fortuna. 

Muitos viram a goleada da Alemanha na seleção como uma vitória da técnica sobre a intuição, ou seja, da virtù sobre a fortuna. Discordo desse exercício de amesquinhamento do Brasil. Do esporte que foi bretão, nunca se exclui a fortuna. Os seis minutos cruciais em que se apagou a nossa estrela (lembro que a fortuna é da família da astrologia) poderiam não ter ocorrido daquele jeito. Cada vez que um gol é anulado, ele não se repete. É claro que devemos investir mais na virtù, aprimorar pontos falhos. Mas um jogo de futebol é sempre uma encenação do drama principal do poder, em que a ação deliberada do homem confronta o acaso da grama, do ar, do clima. Um campeonato de futebol é um drama do poder. Hoje, quando cada um de nós se sente livre - e inseguro - como o príncipe de Maquiavel para lidar com o mundo, sem mais o amparo dos velhos referentes, uma partida serve de metáfora da vida, de continuação desse combate que o homem trava para governar o destino, esse drama de Sísifo, que nunca vencemos de todo, que no final sempre perdemos, mas que é imperioso travar. 

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Renato Janine Ribeiro é professor de Ética e Filosofia na USP e autor de A universidade e a vida atual (Companhia das Letras)

Neymar of Brazil adjusts his soccer shoes during an international friendly soccer match against Panama ahead of the 2014 World Cup, in Goiania June 3, 2014. REUTERS/Ueslei Marcelino (BRAZIL - Tags: SPORT SOCCER WORLD CUP) Foto: UESLEI MARCELINO/REUTERS

Quase todos os amigos que se interessam por analisar a política, inclusive os mais pernas de pau, como eu, que quase tudo que sei é que impedimento não é a mesma coisa que “impeachment”, estão discutindo nossa política à luz da Copa. Não é um acaso. Durante o jogo do Brasil com a Alemanha, veio-me uma intuição: não há atividade humana que ilustre tão bem a tese de Maquiavel sobre a virtù e a fortuna quanto o futebol. Explico-me.

Para Maquiavel, metade de nossas ações é governada pela fortuna, metade pela virtù. A fortuna é fácil de entender: é o acaso, a sorte, favorável ou desfavorável. Já a virtù, palavra que vem do latim “vir”, varão, designa o agir propriamente viril, varonil, ou seja, tudo que vem de uma deliberação madura e atenta de como agir. Assim, metade do que vivemos se deve à sorte ou azar, à fortuna ou infortúnio, e a outra metade tentamos, a duras penas, que resulte de nosso empenho, de nossa tentativa de pôr ordem - nossa ordem - na bagunça do mundo. 

A tarefa humana, e sobretudo a do governante (que Maquiavel expõe em O Príncipe), é vencer e ganhar. Mas, nisso, esbarramos no inesperado, no imponderável. Assim, o Brasil se desenvolve, o que implica maior consumo de energia e d’água. E vem um ano de seca, totalmente fora dos padrões! Isso afeta o abastecimento de energia, responsabilidade do governo federal, e de água, que é do estadual. No meio do planejamento, que é virtù, mete-se a fortuna, a atrapalhá-lo. Claro, pode-se aprender com a lição - aumentando-se a oferta de energia, melhorando a gestão da água. Ou: um de nós quer trocar de carro, faz contas, separa economias e de repente adoece. Ou ainda, saindo dos casos de infortúnio para passar aos de boa fortuna, alguém perde um emprego; não encontra nova colocação; uma noite vai jantar em casa dos amigos, conhece uma pessoa que lhe fala de novos rumos e descobre uma nova vocação. Dei exemplos radicais, mas isso nos acontece todo dia. Somos bafejados pela sorte ou azar e fazemos nossos cálculos: aí estão fortuna e virtù; e esses dois pelejam o tempo todo; o que conseguimos é uma mescla, sempre instável, de um e outro.

Que tem o futebol a ver com isso? Tudo. Raro objeto é tão esquivo, tão elusivo quanto a bola. Ela quica, numa adaptação curiosa do inglês kick, que significa usar o pé ou pés para chutar (palavra que, por sua vez, vem do inglês shoot). Mas vejam a mudança: to kick descreve uma ação do jogador, enquanto “quicar” se refere ao movimento da bola. O jogador chuta, numa reação elaborada ao longo de anos de treino e luta, para acertar a meta. Já a bola “bate e volta”, como explica o Houaiss no verbete “quicar”, afetada pelo gramado, o vento, sabe-se o que mais. To kick é virtù. Quicar é fortuna. Do inglês ao português, passamos da ação deliberada, com um sujeito que planeja, para o azar do objeto, que adquire vida própria, furtando-se ao que o jogador almejava. 

As mãos são melhores, para imprimir movimentos seguros, do que os pés. Com a mão sintonizamos melhor direção e distância. O pé é mais forte, sim, mas chutar é uma arte difícil. Jogar com maestria usando os pés é uma proeza. Um esporte com os pés provavelmente exige mais do que se usasse as mãos. Por isso, quando um país adota o futebol como esporte de sua identidade nacional, quando o mundo o eleva a modalidade esportiva dominante, país e mundo escolhem uma tarefa, uma missão mais difícil, mais nobre: talhar um membro para a atividade à qual não é o mais adequado, alçar pela dificuldade os membros inferiores a uma condição superior. O mundo vira de cabeça para baixo, o pé domina, como naqueles mapas quatrocentistas em que o Sul está acima e o Norte, abaixo. É como o orador ateniense Demóstenes, que venceu a gagueira, não facilitando, mas dificultando seus exercícios: para agravar o desafio, ele enchia de pedrinhas a boca. O futebol, além de lidar com variáveis sobre as quais o controle é por princípio impossível (as da fortuna), dificulta aquilo que seria mais passível de planejamento e deliberação - usando os pés em vez das mãos. Acentua a fortuna, para exigir mais da virtù.

“Meter os pés pelas mãos” é uma expressão corrente nossa, para indicar o máximo da inabilidade. Não é fascinante que os brasileiros queiram ser hábeis usando os pés e não as mãos? A ambição é alta. Ainda mais porque, pelo menos até hoje, quando se pensa no país mais identificado ao futebol, se elege o Brasil. Que de propósito escolhe o difícil. A cada partida entram em campo não só dois times, mas a virtù e a fortuna. Um gol - ou uma defesa - geralmente é uma vitória da virtù sobre a fortuna. 

Muitos viram a goleada da Alemanha na seleção como uma vitória da técnica sobre a intuição, ou seja, da virtù sobre a fortuna. Discordo desse exercício de amesquinhamento do Brasil. Do esporte que foi bretão, nunca se exclui a fortuna. Os seis minutos cruciais em que se apagou a nossa estrela (lembro que a fortuna é da família da astrologia) poderiam não ter ocorrido daquele jeito. Cada vez que um gol é anulado, ele não se repete. É claro que devemos investir mais na virtù, aprimorar pontos falhos. Mas um jogo de futebol é sempre uma encenação do drama principal do poder, em que a ação deliberada do homem confronta o acaso da grama, do ar, do clima. Um campeonato de futebol é um drama do poder. Hoje, quando cada um de nós se sente livre - e inseguro - como o príncipe de Maquiavel para lidar com o mundo, sem mais o amparo dos velhos referentes, uma partida serve de metáfora da vida, de continuação desse combate que o homem trava para governar o destino, esse drama de Sísifo, que nunca vencemos de todo, que no final sempre perdemos, mas que é imperioso travar. 

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Renato Janine Ribeiro é professor de Ética e Filosofia na USP e autor de A universidade e a vida atual (Companhia das Letras)

Neymar of Brazil adjusts his soccer shoes during an international friendly soccer match against Panama ahead of the 2014 World Cup, in Goiania June 3, 2014. REUTERS/Ueslei Marcelino (BRAZIL - Tags: SPORT SOCCER WORLD CUP) Foto: UESLEI MARCELINO/REUTERS

Quase todos os amigos que se interessam por analisar a política, inclusive os mais pernas de pau, como eu, que quase tudo que sei é que impedimento não é a mesma coisa que “impeachment”, estão discutindo nossa política à luz da Copa. Não é um acaso. Durante o jogo do Brasil com a Alemanha, veio-me uma intuição: não há atividade humana que ilustre tão bem a tese de Maquiavel sobre a virtù e a fortuna quanto o futebol. Explico-me.

Para Maquiavel, metade de nossas ações é governada pela fortuna, metade pela virtù. A fortuna é fácil de entender: é o acaso, a sorte, favorável ou desfavorável. Já a virtù, palavra que vem do latim “vir”, varão, designa o agir propriamente viril, varonil, ou seja, tudo que vem de uma deliberação madura e atenta de como agir. Assim, metade do que vivemos se deve à sorte ou azar, à fortuna ou infortúnio, e a outra metade tentamos, a duras penas, que resulte de nosso empenho, de nossa tentativa de pôr ordem - nossa ordem - na bagunça do mundo. 

A tarefa humana, e sobretudo a do governante (que Maquiavel expõe em O Príncipe), é vencer e ganhar. Mas, nisso, esbarramos no inesperado, no imponderável. Assim, o Brasil se desenvolve, o que implica maior consumo de energia e d’água. E vem um ano de seca, totalmente fora dos padrões! Isso afeta o abastecimento de energia, responsabilidade do governo federal, e de água, que é do estadual. No meio do planejamento, que é virtù, mete-se a fortuna, a atrapalhá-lo. Claro, pode-se aprender com a lição - aumentando-se a oferta de energia, melhorando a gestão da água. Ou: um de nós quer trocar de carro, faz contas, separa economias e de repente adoece. Ou ainda, saindo dos casos de infortúnio para passar aos de boa fortuna, alguém perde um emprego; não encontra nova colocação; uma noite vai jantar em casa dos amigos, conhece uma pessoa que lhe fala de novos rumos e descobre uma nova vocação. Dei exemplos radicais, mas isso nos acontece todo dia. Somos bafejados pela sorte ou azar e fazemos nossos cálculos: aí estão fortuna e virtù; e esses dois pelejam o tempo todo; o que conseguimos é uma mescla, sempre instável, de um e outro.

Que tem o futebol a ver com isso? Tudo. Raro objeto é tão esquivo, tão elusivo quanto a bola. Ela quica, numa adaptação curiosa do inglês kick, que significa usar o pé ou pés para chutar (palavra que, por sua vez, vem do inglês shoot). Mas vejam a mudança: to kick descreve uma ação do jogador, enquanto “quicar” se refere ao movimento da bola. O jogador chuta, numa reação elaborada ao longo de anos de treino e luta, para acertar a meta. Já a bola “bate e volta”, como explica o Houaiss no verbete “quicar”, afetada pelo gramado, o vento, sabe-se o que mais. To kick é virtù. Quicar é fortuna. Do inglês ao português, passamos da ação deliberada, com um sujeito que planeja, para o azar do objeto, que adquire vida própria, furtando-se ao que o jogador almejava. 

As mãos são melhores, para imprimir movimentos seguros, do que os pés. Com a mão sintonizamos melhor direção e distância. O pé é mais forte, sim, mas chutar é uma arte difícil. Jogar com maestria usando os pés é uma proeza. Um esporte com os pés provavelmente exige mais do que se usasse as mãos. Por isso, quando um país adota o futebol como esporte de sua identidade nacional, quando o mundo o eleva a modalidade esportiva dominante, país e mundo escolhem uma tarefa, uma missão mais difícil, mais nobre: talhar um membro para a atividade à qual não é o mais adequado, alçar pela dificuldade os membros inferiores a uma condição superior. O mundo vira de cabeça para baixo, o pé domina, como naqueles mapas quatrocentistas em que o Sul está acima e o Norte, abaixo. É como o orador ateniense Demóstenes, que venceu a gagueira, não facilitando, mas dificultando seus exercícios: para agravar o desafio, ele enchia de pedrinhas a boca. O futebol, além de lidar com variáveis sobre as quais o controle é por princípio impossível (as da fortuna), dificulta aquilo que seria mais passível de planejamento e deliberação - usando os pés em vez das mãos. Acentua a fortuna, para exigir mais da virtù.

“Meter os pés pelas mãos” é uma expressão corrente nossa, para indicar o máximo da inabilidade. Não é fascinante que os brasileiros queiram ser hábeis usando os pés e não as mãos? A ambição é alta. Ainda mais porque, pelo menos até hoje, quando se pensa no país mais identificado ao futebol, se elege o Brasil. Que de propósito escolhe o difícil. A cada partida entram em campo não só dois times, mas a virtù e a fortuna. Um gol - ou uma defesa - geralmente é uma vitória da virtù sobre a fortuna. 

Muitos viram a goleada da Alemanha na seleção como uma vitória da técnica sobre a intuição, ou seja, da virtù sobre a fortuna. Discordo desse exercício de amesquinhamento do Brasil. Do esporte que foi bretão, nunca se exclui a fortuna. Os seis minutos cruciais em que se apagou a nossa estrela (lembro que a fortuna é da família da astrologia) poderiam não ter ocorrido daquele jeito. Cada vez que um gol é anulado, ele não se repete. É claro que devemos investir mais na virtù, aprimorar pontos falhos. Mas um jogo de futebol é sempre uma encenação do drama principal do poder, em que a ação deliberada do homem confronta o acaso da grama, do ar, do clima. Um campeonato de futebol é um drama do poder. Hoje, quando cada um de nós se sente livre - e inseguro - como o príncipe de Maquiavel para lidar com o mundo, sem mais o amparo dos velhos referentes, uma partida serve de metáfora da vida, de continuação desse combate que o homem trava para governar o destino, esse drama de Sísifo, que nunca vencemos de todo, que no final sempre perdemos, mas que é imperioso travar. 

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Renato Janine Ribeiro é professor de Ética e Filosofia na USP e autor de A universidade e a vida atual (Companhia das Letras)

Neymar of Brazil adjusts his soccer shoes during an international friendly soccer match against Panama ahead of the 2014 World Cup, in Goiania June 3, 2014. REUTERS/Ueslei Marcelino (BRAZIL - Tags: SPORT SOCCER WORLD CUP) Foto: UESLEI MARCELINO/REUTERS

Quase todos os amigos que se interessam por analisar a política, inclusive os mais pernas de pau, como eu, que quase tudo que sei é que impedimento não é a mesma coisa que “impeachment”, estão discutindo nossa política à luz da Copa. Não é um acaso. Durante o jogo do Brasil com a Alemanha, veio-me uma intuição: não há atividade humana que ilustre tão bem a tese de Maquiavel sobre a virtù e a fortuna quanto o futebol. Explico-me.

Para Maquiavel, metade de nossas ações é governada pela fortuna, metade pela virtù. A fortuna é fácil de entender: é o acaso, a sorte, favorável ou desfavorável. Já a virtù, palavra que vem do latim “vir”, varão, designa o agir propriamente viril, varonil, ou seja, tudo que vem de uma deliberação madura e atenta de como agir. Assim, metade do que vivemos se deve à sorte ou azar, à fortuna ou infortúnio, e a outra metade tentamos, a duras penas, que resulte de nosso empenho, de nossa tentativa de pôr ordem - nossa ordem - na bagunça do mundo. 

A tarefa humana, e sobretudo a do governante (que Maquiavel expõe em O Príncipe), é vencer e ganhar. Mas, nisso, esbarramos no inesperado, no imponderável. Assim, o Brasil se desenvolve, o que implica maior consumo de energia e d’água. E vem um ano de seca, totalmente fora dos padrões! Isso afeta o abastecimento de energia, responsabilidade do governo federal, e de água, que é do estadual. No meio do planejamento, que é virtù, mete-se a fortuna, a atrapalhá-lo. Claro, pode-se aprender com a lição - aumentando-se a oferta de energia, melhorando a gestão da água. Ou: um de nós quer trocar de carro, faz contas, separa economias e de repente adoece. Ou ainda, saindo dos casos de infortúnio para passar aos de boa fortuna, alguém perde um emprego; não encontra nova colocação; uma noite vai jantar em casa dos amigos, conhece uma pessoa que lhe fala de novos rumos e descobre uma nova vocação. Dei exemplos radicais, mas isso nos acontece todo dia. Somos bafejados pela sorte ou azar e fazemos nossos cálculos: aí estão fortuna e virtù; e esses dois pelejam o tempo todo; o que conseguimos é uma mescla, sempre instável, de um e outro.

Que tem o futebol a ver com isso? Tudo. Raro objeto é tão esquivo, tão elusivo quanto a bola. Ela quica, numa adaptação curiosa do inglês kick, que significa usar o pé ou pés para chutar (palavra que, por sua vez, vem do inglês shoot). Mas vejam a mudança: to kick descreve uma ação do jogador, enquanto “quicar” se refere ao movimento da bola. O jogador chuta, numa reação elaborada ao longo de anos de treino e luta, para acertar a meta. Já a bola “bate e volta”, como explica o Houaiss no verbete “quicar”, afetada pelo gramado, o vento, sabe-se o que mais. To kick é virtù. Quicar é fortuna. Do inglês ao português, passamos da ação deliberada, com um sujeito que planeja, para o azar do objeto, que adquire vida própria, furtando-se ao que o jogador almejava. 

As mãos são melhores, para imprimir movimentos seguros, do que os pés. Com a mão sintonizamos melhor direção e distância. O pé é mais forte, sim, mas chutar é uma arte difícil. Jogar com maestria usando os pés é uma proeza. Um esporte com os pés provavelmente exige mais do que se usasse as mãos. Por isso, quando um país adota o futebol como esporte de sua identidade nacional, quando o mundo o eleva a modalidade esportiva dominante, país e mundo escolhem uma tarefa, uma missão mais difícil, mais nobre: talhar um membro para a atividade à qual não é o mais adequado, alçar pela dificuldade os membros inferiores a uma condição superior. O mundo vira de cabeça para baixo, o pé domina, como naqueles mapas quatrocentistas em que o Sul está acima e o Norte, abaixo. É como o orador ateniense Demóstenes, que venceu a gagueira, não facilitando, mas dificultando seus exercícios: para agravar o desafio, ele enchia de pedrinhas a boca. O futebol, além de lidar com variáveis sobre as quais o controle é por princípio impossível (as da fortuna), dificulta aquilo que seria mais passível de planejamento e deliberação - usando os pés em vez das mãos. Acentua a fortuna, para exigir mais da virtù.

“Meter os pés pelas mãos” é uma expressão corrente nossa, para indicar o máximo da inabilidade. Não é fascinante que os brasileiros queiram ser hábeis usando os pés e não as mãos? A ambição é alta. Ainda mais porque, pelo menos até hoje, quando se pensa no país mais identificado ao futebol, se elege o Brasil. Que de propósito escolhe o difícil. A cada partida entram em campo não só dois times, mas a virtù e a fortuna. Um gol - ou uma defesa - geralmente é uma vitória da virtù sobre a fortuna. 

Muitos viram a goleada da Alemanha na seleção como uma vitória da técnica sobre a intuição, ou seja, da virtù sobre a fortuna. Discordo desse exercício de amesquinhamento do Brasil. Do esporte que foi bretão, nunca se exclui a fortuna. Os seis minutos cruciais em que se apagou a nossa estrela (lembro que a fortuna é da família da astrologia) poderiam não ter ocorrido daquele jeito. Cada vez que um gol é anulado, ele não se repete. É claro que devemos investir mais na virtù, aprimorar pontos falhos. Mas um jogo de futebol é sempre uma encenação do drama principal do poder, em que a ação deliberada do homem confronta o acaso da grama, do ar, do clima. Um campeonato de futebol é um drama do poder. Hoje, quando cada um de nós se sente livre - e inseguro - como o príncipe de Maquiavel para lidar com o mundo, sem mais o amparo dos velhos referentes, uma partida serve de metáfora da vida, de continuação desse combate que o homem trava para governar o destino, esse drama de Sísifo, que nunca vencemos de todo, que no final sempre perdemos, mas que é imperioso travar. 

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Renato Janine Ribeiro é professor de Ética e Filosofia na USP e autor de A universidade e a vida atual (Companhia das Letras)

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