‘Poucos realmente querem o acordo Mercosul-UE, mas muitos precisam dele’, diz analista


Gustavo Gayger Müller, pesquisador na Universidade de Leuven, na Bélgica, lembra que avanço das negociações chega em um momento em que a Alemanha enfrenta grandes desafios econômicos

Por Jéssica Petrovna
Foto: Reprodução
Entrevista comGustavo Gayger MüllerPesquisador na Universidade de Leuven, na Bélgica

Mercosul e União Europeia deram neste sexta-feira, 6, mais um passo para criar a maior zona de livre comércio do mundo, com um mercado de mais de 700 milhões de pessoas. A conclusão das negociações foi anunciado na Cúpula do bloco sul-americano em Montevidéu, no Uruguai, com a presença da presidente da Comissão Europeia, Comissão Europeia, Ursula von der Leyen.

Para o brasileiro Gustavo Gayger Müller, pesquisador sênior no Centro de Estudos de Governança Global da Universidade de Leuven, na Bélgica, o lado europeu aproveita o raro alinhamento do Mercosul sobre o acordo para marcar posição na América do Sul, frente ao avanço da China, e consolidar a aliança de países que compartilham valores democráticos, algo cada vez mais raro no mundo.

Esse senso de urgência, afirma, foi intensificado pela crise que atinge a sua maior economia, a Alemanha. “Por um lado, é a primeira vez em muito tempo que os quatro países do Mercosul estão a favor do acordo”, afirma o analista, especializado em política externa da UE e relações com a América Latina. “Por outro, uma série de fatores econômicos provoca busca por parceiros comerciais. A situação econômica na Alemanha está bastante crítica. O país não está crescendo muito, perdeu competitividade e busca mercado consumidor para os seus produtos industrializados.”

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Para a França, contudo, o acordo cai como uma “bomba” e tende a enfraquecer o governo de Emmanuel Macron, que busca um substituto para o primeiro-ministro, Michel Barnier, deposto pelo Parlamento. “O governo está há um ano lutando contra o acordo e vai enfrentar a crítica dos dois lados por não conseguir barrá-lo. Essa resistência é bastante consensual na França. É difícil achar um partido, um movimento político lá que seja a favor”, aponta Müller.

Mercosul e União Europeia anunciam conclusão do acordo de livre comércio após 25 anos.  Foto: Matilde Campodonico/Associated Press

Do lado do Mercosul, afirma, o acordo é boa notícia. Dá novo impulso ao bloco, abalado pela ascensão de Javier Milei à presidência da Argentina, e responde a anseios de países como o Uruguai por mais mercado.

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O tratado de livre comércio ainda tem longo caminho pela frente — precisa ser revisado, traduzido, aprovado no Parlamento Europeu e ratificado por cada um dos países-membros —, mas pode ser implementado de forma provisória enquanto isso. “Se o acordo é implementado na parte comercial, mesmo que provisoriamente, as tarifas e cotas começam a valer para todos os países, independente de ser favorável ou não”, destaca Müller.

Leia a seguir os principais pontos da entrevista.

Quais são os próximos passos a partir da conclusão das negociações do acordo comercial?

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Internamente, o anúncio cai como uma bomba para alguns países da União Europeia. Será uma péssima notícia para o ambiente doméstico de França e Polônia, onde a população tem rejeitado o acordo. Em termos práticos, um dos caminhos possíveis é implementar o acordo de maneira provisória, o que tange apenas à parte comercial, e ratificar no segundo momento, o que vai requerer a aprovação não só do Parlamento Europeu como também de cada Estado-membro - então, são 27 ratificações diferentes.

E como funciona a implementação parcial? O livre comércio já entraria em vigor?

A implementação parcial se aplica às áreas em que União Europeia tem o que chamamos de competência exclusiva (ou seja, apenas bloco pode legislar). Nisso entra o comércio, efetivamente, seja na imposição de tarifas e regulações, ou na política de concorrência. Se o acordo é implementado na parte comercial, mesmo que provisoriamente, as tarifas e cotas começam a valer para todos os países, independente de ser favorável ou não. Isso do lado da União Europeia. Do lado do Mercosul, todos os países (Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai) têm de estar de acordo.

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O sr. já escreveu em artigo que o acordo é mais que comercial, tem a ver também com a posição da Europa na América Latina — região onde a China tem avançado. Agora, soma-se ao cálculo geopolítico a eleição de Donald Trump nos EUA e a ameaça de guerra comercial. É possível entender a conclusão do acordo neste momento a partir dessas pressões?

Esse é um contexto (de busca por espaço na América Latina) que se manteve ao longo dos anos. Mesmo durante a administração Joe Biden, a União Europeia procurou finalizar o acordo. Mas tem dois fatores que podem ser ainda mais fundamentais. Por um lado, é a primeira vez em muito tempo que se tem os quatro países do Mercosul a favor, então a União Europeia quer aproveitar esse momento e, por outro lado, uma série de fatores econômicos na UE provoca essa busca por parceiros comerciais. A situação econômica na Alemanha está bastante crítica, o que faz com que o país pressione por esse acordo. É um país que não está crescendo muito, tanto que há uma perda de competitividade, e é um país que está em busca de mercado consumidor para os seus produtos industrializados. Há um debate, que tem sido central do lado da UE, sobre a competitividade da indústria como um todo. Tem o ponto geopolítico, de ampliar a presença na América do Sul, mas tem o interesse econômico, que se intensificou ao longo do último ano.

Por outro lado, a França é contra o acordo por pressão dos agricultores. A crise política que o país enfrenta neste momento, com a queda do primeiro-ministro Michel Barnier enfraquece a posição francesa dentro da UE nas discussões com o Mercosul?

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É um timing complicado para a França, uma daquelas coincidências negativas: a Cúpula do Mercosul estava agendada e acaba acontecendo no momento da renúncia do primeiro-ministro o que, evidentemente, enfraquece o governo. E essa é uma questão simbólica bastante importante. O governo (de Emmanuel Macron) está há um ano lutando contra o acordo e vai enfrentar a crítica dos dois lados por não conseguir barrá-lo. A resistência ao acordo é bastante consensual na França. É difícil achar um partido, um movimento político lá que seja a favor.

O sr. mencionou o aspecto simbólico. A conclusão do acordo passa um recado para os países contrários, como França, Polônia, Holanda... Que margem de manobra essa oposição tem agora?

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Se a burocracia da União Europeia (no caso, o Conselho Europeu) decide levar o acordo adiante, inclusive com a implementação provisória, e a França não conseguir angariar a Itália — que provavelmente vai ser o fiel da balança — o que a França pode fazer é o boicote às outras áreas do acordo, principalmente as que têm a necessidade de unanimidade ou que precisam ser retificadas a nível nacional.

(Para barrar o acordo na Comissão Europeia) os países contrários precisam atingir o quociente de 35% da população da União Europeia. Então, seria necessário ter o apoio de mais um país grande, além de França e Polônia. E a Itália pode ser o fiel da balança porque tem um setor agrícola bastante importante, que tem uma agricultura familiar e uma agricultura ligada a movimentos políticos. Mas a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, tem uma relação bastante próxima com a (primeira-ministra Giorgia) Meloni. Acredito que elas tenham conversado sobre isso.

Agora, tem uma questão que é mais profunda. Temos governos razoáveis, da centro-esquerda até a centro-direita, governos que são pró-europeus, em países como a França e a Polônia, mas as eleições estão logo ali. Considero uma aposta bastante arriscada da Comissão Europeia de forçar um acordo, por mais que este momento seja visto como uma oportunidade, porque expõe esses governos que são bastante razoáveis a uma crítica mais extremista em um ambiente que é extremamente polarizado.

Nas eleições do Parlamento Europeu, vimos que a extrema direita avançou. Quais são as condições hoje para aprovar o acordo?

É preciso dizer que a comissão de Ursula von der Leyen foi aprovada semana passada (para o segundo mandato) no Parlamento Europeu com uma das margens mais estreitas em décadas. Isso mostra, claro, que nem tudo que a Comissão negociar será aprovado prontamente. Ao mesmo tempo, os grandes grupos da centro-esquerda até centro-direita ainda mantêm maioria no Parlamento. Os extremistas fazem bastante barulho mas, muitas vezes, estão jogando para a política doméstica dos seus países. Não acredito que eles vão conseguir formar maioria suficiente para barrar o acordo. Esse não é o maior empecilho atualmente. A ratificação em alguns países vai ser muito mais difícil.

Os críticos, como a França, dizem que o acordo, negociado há 25 anos, ficou ultrapassado. Quais são as vantagens e as desvantagens para os dois lados?

Poucos realmente querem esse acordo, mas muitos precisam dele, é paradoxal. O acordo é muito importante para União Europeia, na ótica das disputas pela América Latina. É importante a Europa se aliar com países que têm valores parecidos, que são países democráticos, num mundo onde as democracias estão cada vez mais raras, por assim dizer. Então, do ponto de vista político, é muito importante para a União Europeia. Do ponto de vista econômico, abre oportunidades de investimento no longo prazo e mercado consumidor.

Agora, do ponto de vista do Mercosul, cria estabilidade de exportação de produtos agrícolas, e os países podem depender um pouco menos da China. É uma boa notícia para o bloco, que vai ter acordo com o maior mercado do mundo, e vai dissipar ameaças de países como o Uruguai, que ameaçava negociar acordo com a China sozinho, de forma bilateral, por exemplo. Considerando que os acordos atualmente não são apenas sobre tarifas, mas também sobre regulações e alinhamento de diferentes regras, ao meu ver, o acordo com a União Europeia vai facilitar, inclusive, o comércio intrabloco no Mercosul, que durante décadas teve muita dificuldade de achar regras comuns para produção. Outro ponto positivo para o Mercosul é o que o acordo vai rejuvenescer um pouco o bloco, que passa por uma crise com governos que atuam para limitá-lo, como é o caso de Javier Milei, na Argentina, e foi o caso de Jair Bolsonaro, no Brasil.

O sr. falou sobre os benefícios para o agronegócio, do lado do Mercosul, e para indústria, do lado da UE. O acordo pode acelerar o processo de desindustrialização em países como Brasil e Argentina?

É difícil prever, mas vai depender bastante de medidas compensatórias que os governos brasileiro e argentino vão conseguir colocar em prática. Obviamente, o acordo vai expor a indústria brasileira a concorrência sem a proteção tarifária. Agora, se isso vai criar uma maior competitividade no longo prazo ou se isso vai ajudar a desindustrializar o país, vai depender muito das políticas industriais, vai depender muito da capacidade que o governo vai ter de compensar os efeitos do acordo. É muito importante observar isso. O acordo em si não define o futuro, as políticas ainda serão importantes. De repente, voltando ao Mercosul, conseguir que o bloco em si proponha medidas compensatórias. É o primeiro grande acordo do Mercosul com uma terceira parte. É preciso observar como vai evoluir a partir daí.

Mercosul e União Europeia deram neste sexta-feira, 6, mais um passo para criar a maior zona de livre comércio do mundo, com um mercado de mais de 700 milhões de pessoas. A conclusão das negociações foi anunciado na Cúpula do bloco sul-americano em Montevidéu, no Uruguai, com a presença da presidente da Comissão Europeia, Comissão Europeia, Ursula von der Leyen.

Para o brasileiro Gustavo Gayger Müller, pesquisador sênior no Centro de Estudos de Governança Global da Universidade de Leuven, na Bélgica, o lado europeu aproveita o raro alinhamento do Mercosul sobre o acordo para marcar posição na América do Sul, frente ao avanço da China, e consolidar a aliança de países que compartilham valores democráticos, algo cada vez mais raro no mundo.

Esse senso de urgência, afirma, foi intensificado pela crise que atinge a sua maior economia, a Alemanha. “Por um lado, é a primeira vez em muito tempo que os quatro países do Mercosul estão a favor do acordo”, afirma o analista, especializado em política externa da UE e relações com a América Latina. “Por outro, uma série de fatores econômicos provoca busca por parceiros comerciais. A situação econômica na Alemanha está bastante crítica. O país não está crescendo muito, perdeu competitividade e busca mercado consumidor para os seus produtos industrializados.”

Para a França, contudo, o acordo cai como uma “bomba” e tende a enfraquecer o governo de Emmanuel Macron, que busca um substituto para o primeiro-ministro, Michel Barnier, deposto pelo Parlamento. “O governo está há um ano lutando contra o acordo e vai enfrentar a crítica dos dois lados por não conseguir barrá-lo. Essa resistência é bastante consensual na França. É difícil achar um partido, um movimento político lá que seja a favor”, aponta Müller.

Mercosul e União Europeia anunciam conclusão do acordo de livre comércio após 25 anos.  Foto: Matilde Campodonico/Associated Press

Do lado do Mercosul, afirma, o acordo é boa notícia. Dá novo impulso ao bloco, abalado pela ascensão de Javier Milei à presidência da Argentina, e responde a anseios de países como o Uruguai por mais mercado.

O tratado de livre comércio ainda tem longo caminho pela frente — precisa ser revisado, traduzido, aprovado no Parlamento Europeu e ratificado por cada um dos países-membros —, mas pode ser implementado de forma provisória enquanto isso. “Se o acordo é implementado na parte comercial, mesmo que provisoriamente, as tarifas e cotas começam a valer para todos os países, independente de ser favorável ou não”, destaca Müller.

Leia a seguir os principais pontos da entrevista.

Quais são os próximos passos a partir da conclusão das negociações do acordo comercial?

Internamente, o anúncio cai como uma bomba para alguns países da União Europeia. Será uma péssima notícia para o ambiente doméstico de França e Polônia, onde a população tem rejeitado o acordo. Em termos práticos, um dos caminhos possíveis é implementar o acordo de maneira provisória, o que tange apenas à parte comercial, e ratificar no segundo momento, o que vai requerer a aprovação não só do Parlamento Europeu como também de cada Estado-membro - então, são 27 ratificações diferentes.

E como funciona a implementação parcial? O livre comércio já entraria em vigor?

A implementação parcial se aplica às áreas em que União Europeia tem o que chamamos de competência exclusiva (ou seja, apenas bloco pode legislar). Nisso entra o comércio, efetivamente, seja na imposição de tarifas e regulações, ou na política de concorrência. Se o acordo é implementado na parte comercial, mesmo que provisoriamente, as tarifas e cotas começam a valer para todos os países, independente de ser favorável ou não. Isso do lado da União Europeia. Do lado do Mercosul, todos os países (Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai) têm de estar de acordo.

O sr. já escreveu em artigo que o acordo é mais que comercial, tem a ver também com a posição da Europa na América Latina — região onde a China tem avançado. Agora, soma-se ao cálculo geopolítico a eleição de Donald Trump nos EUA e a ameaça de guerra comercial. É possível entender a conclusão do acordo neste momento a partir dessas pressões?

Esse é um contexto (de busca por espaço na América Latina) que se manteve ao longo dos anos. Mesmo durante a administração Joe Biden, a União Europeia procurou finalizar o acordo. Mas tem dois fatores que podem ser ainda mais fundamentais. Por um lado, é a primeira vez em muito tempo que se tem os quatro países do Mercosul a favor, então a União Europeia quer aproveitar esse momento e, por outro lado, uma série de fatores econômicos na UE provoca essa busca por parceiros comerciais. A situação econômica na Alemanha está bastante crítica, o que faz com que o país pressione por esse acordo. É um país que não está crescendo muito, tanto que há uma perda de competitividade, e é um país que está em busca de mercado consumidor para os seus produtos industrializados. Há um debate, que tem sido central do lado da UE, sobre a competitividade da indústria como um todo. Tem o ponto geopolítico, de ampliar a presença na América do Sul, mas tem o interesse econômico, que se intensificou ao longo do último ano.

Por outro lado, a França é contra o acordo por pressão dos agricultores. A crise política que o país enfrenta neste momento, com a queda do primeiro-ministro Michel Barnier enfraquece a posição francesa dentro da UE nas discussões com o Mercosul?

É um timing complicado para a França, uma daquelas coincidências negativas: a Cúpula do Mercosul estava agendada e acaba acontecendo no momento da renúncia do primeiro-ministro o que, evidentemente, enfraquece o governo. E essa é uma questão simbólica bastante importante. O governo (de Emmanuel Macron) está há um ano lutando contra o acordo e vai enfrentar a crítica dos dois lados por não conseguir barrá-lo. A resistência ao acordo é bastante consensual na França. É difícil achar um partido, um movimento político lá que seja a favor.

O sr. mencionou o aspecto simbólico. A conclusão do acordo passa um recado para os países contrários, como França, Polônia, Holanda... Que margem de manobra essa oposição tem agora?

Se a burocracia da União Europeia (no caso, o Conselho Europeu) decide levar o acordo adiante, inclusive com a implementação provisória, e a França não conseguir angariar a Itália — que provavelmente vai ser o fiel da balança — o que a França pode fazer é o boicote às outras áreas do acordo, principalmente as que têm a necessidade de unanimidade ou que precisam ser retificadas a nível nacional.

(Para barrar o acordo na Comissão Europeia) os países contrários precisam atingir o quociente de 35% da população da União Europeia. Então, seria necessário ter o apoio de mais um país grande, além de França e Polônia. E a Itália pode ser o fiel da balança porque tem um setor agrícola bastante importante, que tem uma agricultura familiar e uma agricultura ligada a movimentos políticos. Mas a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, tem uma relação bastante próxima com a (primeira-ministra Giorgia) Meloni. Acredito que elas tenham conversado sobre isso.

Agora, tem uma questão que é mais profunda. Temos governos razoáveis, da centro-esquerda até a centro-direita, governos que são pró-europeus, em países como a França e a Polônia, mas as eleições estão logo ali. Considero uma aposta bastante arriscada da Comissão Europeia de forçar um acordo, por mais que este momento seja visto como uma oportunidade, porque expõe esses governos que são bastante razoáveis a uma crítica mais extremista em um ambiente que é extremamente polarizado.

Nas eleições do Parlamento Europeu, vimos que a extrema direita avançou. Quais são as condições hoje para aprovar o acordo?

É preciso dizer que a comissão de Ursula von der Leyen foi aprovada semana passada (para o segundo mandato) no Parlamento Europeu com uma das margens mais estreitas em décadas. Isso mostra, claro, que nem tudo que a Comissão negociar será aprovado prontamente. Ao mesmo tempo, os grandes grupos da centro-esquerda até centro-direita ainda mantêm maioria no Parlamento. Os extremistas fazem bastante barulho mas, muitas vezes, estão jogando para a política doméstica dos seus países. Não acredito que eles vão conseguir formar maioria suficiente para barrar o acordo. Esse não é o maior empecilho atualmente. A ratificação em alguns países vai ser muito mais difícil.

Os críticos, como a França, dizem que o acordo, negociado há 25 anos, ficou ultrapassado. Quais são as vantagens e as desvantagens para os dois lados?

Poucos realmente querem esse acordo, mas muitos precisam dele, é paradoxal. O acordo é muito importante para União Europeia, na ótica das disputas pela América Latina. É importante a Europa se aliar com países que têm valores parecidos, que são países democráticos, num mundo onde as democracias estão cada vez mais raras, por assim dizer. Então, do ponto de vista político, é muito importante para a União Europeia. Do ponto de vista econômico, abre oportunidades de investimento no longo prazo e mercado consumidor.

Agora, do ponto de vista do Mercosul, cria estabilidade de exportação de produtos agrícolas, e os países podem depender um pouco menos da China. É uma boa notícia para o bloco, que vai ter acordo com o maior mercado do mundo, e vai dissipar ameaças de países como o Uruguai, que ameaçava negociar acordo com a China sozinho, de forma bilateral, por exemplo. Considerando que os acordos atualmente não são apenas sobre tarifas, mas também sobre regulações e alinhamento de diferentes regras, ao meu ver, o acordo com a União Europeia vai facilitar, inclusive, o comércio intrabloco no Mercosul, que durante décadas teve muita dificuldade de achar regras comuns para produção. Outro ponto positivo para o Mercosul é o que o acordo vai rejuvenescer um pouco o bloco, que passa por uma crise com governos que atuam para limitá-lo, como é o caso de Javier Milei, na Argentina, e foi o caso de Jair Bolsonaro, no Brasil.

O sr. falou sobre os benefícios para o agronegócio, do lado do Mercosul, e para indústria, do lado da UE. O acordo pode acelerar o processo de desindustrialização em países como Brasil e Argentina?

É difícil prever, mas vai depender bastante de medidas compensatórias que os governos brasileiro e argentino vão conseguir colocar em prática. Obviamente, o acordo vai expor a indústria brasileira a concorrência sem a proteção tarifária. Agora, se isso vai criar uma maior competitividade no longo prazo ou se isso vai ajudar a desindustrializar o país, vai depender muito das políticas industriais, vai depender muito da capacidade que o governo vai ter de compensar os efeitos do acordo. É muito importante observar isso. O acordo em si não define o futuro, as políticas ainda serão importantes. De repente, voltando ao Mercosul, conseguir que o bloco em si proponha medidas compensatórias. É o primeiro grande acordo do Mercosul com uma terceira parte. É preciso observar como vai evoluir a partir daí.

Mercosul e União Europeia deram neste sexta-feira, 6, mais um passo para criar a maior zona de livre comércio do mundo, com um mercado de mais de 700 milhões de pessoas. A conclusão das negociações foi anunciado na Cúpula do bloco sul-americano em Montevidéu, no Uruguai, com a presença da presidente da Comissão Europeia, Comissão Europeia, Ursula von der Leyen.

Para o brasileiro Gustavo Gayger Müller, pesquisador sênior no Centro de Estudos de Governança Global da Universidade de Leuven, na Bélgica, o lado europeu aproveita o raro alinhamento do Mercosul sobre o acordo para marcar posição na América do Sul, frente ao avanço da China, e consolidar a aliança de países que compartilham valores democráticos, algo cada vez mais raro no mundo.

Esse senso de urgência, afirma, foi intensificado pela crise que atinge a sua maior economia, a Alemanha. “Por um lado, é a primeira vez em muito tempo que os quatro países do Mercosul estão a favor do acordo”, afirma o analista, especializado em política externa da UE e relações com a América Latina. “Por outro, uma série de fatores econômicos provoca busca por parceiros comerciais. A situação econômica na Alemanha está bastante crítica. O país não está crescendo muito, perdeu competitividade e busca mercado consumidor para os seus produtos industrializados.”

Para a França, contudo, o acordo cai como uma “bomba” e tende a enfraquecer o governo de Emmanuel Macron, que busca um substituto para o primeiro-ministro, Michel Barnier, deposto pelo Parlamento. “O governo está há um ano lutando contra o acordo e vai enfrentar a crítica dos dois lados por não conseguir barrá-lo. Essa resistência é bastante consensual na França. É difícil achar um partido, um movimento político lá que seja a favor”, aponta Müller.

Mercosul e União Europeia anunciam conclusão do acordo de livre comércio após 25 anos.  Foto: Matilde Campodonico/Associated Press

Do lado do Mercosul, afirma, o acordo é boa notícia. Dá novo impulso ao bloco, abalado pela ascensão de Javier Milei à presidência da Argentina, e responde a anseios de países como o Uruguai por mais mercado.

O tratado de livre comércio ainda tem longo caminho pela frente — precisa ser revisado, traduzido, aprovado no Parlamento Europeu e ratificado por cada um dos países-membros —, mas pode ser implementado de forma provisória enquanto isso. “Se o acordo é implementado na parte comercial, mesmo que provisoriamente, as tarifas e cotas começam a valer para todos os países, independente de ser favorável ou não”, destaca Müller.

Leia a seguir os principais pontos da entrevista.

Quais são os próximos passos a partir da conclusão das negociações do acordo comercial?

Internamente, o anúncio cai como uma bomba para alguns países da União Europeia. Será uma péssima notícia para o ambiente doméstico de França e Polônia, onde a população tem rejeitado o acordo. Em termos práticos, um dos caminhos possíveis é implementar o acordo de maneira provisória, o que tange apenas à parte comercial, e ratificar no segundo momento, o que vai requerer a aprovação não só do Parlamento Europeu como também de cada Estado-membro - então, são 27 ratificações diferentes.

E como funciona a implementação parcial? O livre comércio já entraria em vigor?

A implementação parcial se aplica às áreas em que União Europeia tem o que chamamos de competência exclusiva (ou seja, apenas bloco pode legislar). Nisso entra o comércio, efetivamente, seja na imposição de tarifas e regulações, ou na política de concorrência. Se o acordo é implementado na parte comercial, mesmo que provisoriamente, as tarifas e cotas começam a valer para todos os países, independente de ser favorável ou não. Isso do lado da União Europeia. Do lado do Mercosul, todos os países (Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai) têm de estar de acordo.

O sr. já escreveu em artigo que o acordo é mais que comercial, tem a ver também com a posição da Europa na América Latina — região onde a China tem avançado. Agora, soma-se ao cálculo geopolítico a eleição de Donald Trump nos EUA e a ameaça de guerra comercial. É possível entender a conclusão do acordo neste momento a partir dessas pressões?

Esse é um contexto (de busca por espaço na América Latina) que se manteve ao longo dos anos. Mesmo durante a administração Joe Biden, a União Europeia procurou finalizar o acordo. Mas tem dois fatores que podem ser ainda mais fundamentais. Por um lado, é a primeira vez em muito tempo que se tem os quatro países do Mercosul a favor, então a União Europeia quer aproveitar esse momento e, por outro lado, uma série de fatores econômicos na UE provoca essa busca por parceiros comerciais. A situação econômica na Alemanha está bastante crítica, o que faz com que o país pressione por esse acordo. É um país que não está crescendo muito, tanto que há uma perda de competitividade, e é um país que está em busca de mercado consumidor para os seus produtos industrializados. Há um debate, que tem sido central do lado da UE, sobre a competitividade da indústria como um todo. Tem o ponto geopolítico, de ampliar a presença na América do Sul, mas tem o interesse econômico, que se intensificou ao longo do último ano.

Por outro lado, a França é contra o acordo por pressão dos agricultores. A crise política que o país enfrenta neste momento, com a queda do primeiro-ministro Michel Barnier enfraquece a posição francesa dentro da UE nas discussões com o Mercosul?

É um timing complicado para a França, uma daquelas coincidências negativas: a Cúpula do Mercosul estava agendada e acaba acontecendo no momento da renúncia do primeiro-ministro o que, evidentemente, enfraquece o governo. E essa é uma questão simbólica bastante importante. O governo (de Emmanuel Macron) está há um ano lutando contra o acordo e vai enfrentar a crítica dos dois lados por não conseguir barrá-lo. A resistência ao acordo é bastante consensual na França. É difícil achar um partido, um movimento político lá que seja a favor.

O sr. mencionou o aspecto simbólico. A conclusão do acordo passa um recado para os países contrários, como França, Polônia, Holanda... Que margem de manobra essa oposição tem agora?

Se a burocracia da União Europeia (no caso, o Conselho Europeu) decide levar o acordo adiante, inclusive com a implementação provisória, e a França não conseguir angariar a Itália — que provavelmente vai ser o fiel da balança — o que a França pode fazer é o boicote às outras áreas do acordo, principalmente as que têm a necessidade de unanimidade ou que precisam ser retificadas a nível nacional.

(Para barrar o acordo na Comissão Europeia) os países contrários precisam atingir o quociente de 35% da população da União Europeia. Então, seria necessário ter o apoio de mais um país grande, além de França e Polônia. E a Itália pode ser o fiel da balança porque tem um setor agrícola bastante importante, que tem uma agricultura familiar e uma agricultura ligada a movimentos políticos. Mas a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, tem uma relação bastante próxima com a (primeira-ministra Giorgia) Meloni. Acredito que elas tenham conversado sobre isso.

Agora, tem uma questão que é mais profunda. Temos governos razoáveis, da centro-esquerda até a centro-direita, governos que são pró-europeus, em países como a França e a Polônia, mas as eleições estão logo ali. Considero uma aposta bastante arriscada da Comissão Europeia de forçar um acordo, por mais que este momento seja visto como uma oportunidade, porque expõe esses governos que são bastante razoáveis a uma crítica mais extremista em um ambiente que é extremamente polarizado.

Nas eleições do Parlamento Europeu, vimos que a extrema direita avançou. Quais são as condições hoje para aprovar o acordo?

É preciso dizer que a comissão de Ursula von der Leyen foi aprovada semana passada (para o segundo mandato) no Parlamento Europeu com uma das margens mais estreitas em décadas. Isso mostra, claro, que nem tudo que a Comissão negociar será aprovado prontamente. Ao mesmo tempo, os grandes grupos da centro-esquerda até centro-direita ainda mantêm maioria no Parlamento. Os extremistas fazem bastante barulho mas, muitas vezes, estão jogando para a política doméstica dos seus países. Não acredito que eles vão conseguir formar maioria suficiente para barrar o acordo. Esse não é o maior empecilho atualmente. A ratificação em alguns países vai ser muito mais difícil.

Os críticos, como a França, dizem que o acordo, negociado há 25 anos, ficou ultrapassado. Quais são as vantagens e as desvantagens para os dois lados?

Poucos realmente querem esse acordo, mas muitos precisam dele, é paradoxal. O acordo é muito importante para União Europeia, na ótica das disputas pela América Latina. É importante a Europa se aliar com países que têm valores parecidos, que são países democráticos, num mundo onde as democracias estão cada vez mais raras, por assim dizer. Então, do ponto de vista político, é muito importante para a União Europeia. Do ponto de vista econômico, abre oportunidades de investimento no longo prazo e mercado consumidor.

Agora, do ponto de vista do Mercosul, cria estabilidade de exportação de produtos agrícolas, e os países podem depender um pouco menos da China. É uma boa notícia para o bloco, que vai ter acordo com o maior mercado do mundo, e vai dissipar ameaças de países como o Uruguai, que ameaçava negociar acordo com a China sozinho, de forma bilateral, por exemplo. Considerando que os acordos atualmente não são apenas sobre tarifas, mas também sobre regulações e alinhamento de diferentes regras, ao meu ver, o acordo com a União Europeia vai facilitar, inclusive, o comércio intrabloco no Mercosul, que durante décadas teve muita dificuldade de achar regras comuns para produção. Outro ponto positivo para o Mercosul é o que o acordo vai rejuvenescer um pouco o bloco, que passa por uma crise com governos que atuam para limitá-lo, como é o caso de Javier Milei, na Argentina, e foi o caso de Jair Bolsonaro, no Brasil.

O sr. falou sobre os benefícios para o agronegócio, do lado do Mercosul, e para indústria, do lado da UE. O acordo pode acelerar o processo de desindustrialização em países como Brasil e Argentina?

É difícil prever, mas vai depender bastante de medidas compensatórias que os governos brasileiro e argentino vão conseguir colocar em prática. Obviamente, o acordo vai expor a indústria brasileira a concorrência sem a proteção tarifária. Agora, se isso vai criar uma maior competitividade no longo prazo ou se isso vai ajudar a desindustrializar o país, vai depender muito das políticas industriais, vai depender muito da capacidade que o governo vai ter de compensar os efeitos do acordo. É muito importante observar isso. O acordo em si não define o futuro, as políticas ainda serão importantes. De repente, voltando ao Mercosul, conseguir que o bloco em si proponha medidas compensatórias. É o primeiro grande acordo do Mercosul com uma terceira parte. É preciso observar como vai evoluir a partir daí.

Entrevista por Jéssica Petrovna

Repórter da editoria de Internacional. É potiguar, formada em jornalismo pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Foi trainee do Estadão (2018) e editora de internacional em Band Jornalismo e CNN Brasil.

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