Na quarta-feira, 20, um comunicado do presidente do grupo Carrefour, Alexandre Bompard, em suas redes sociais, deu início a uma grande polêmica no Brasil. No comunicado, o executivo afirma que a rede varejista se comprometia, a partir daquela data, a não vender carnes do Mercosul, bloco formado por Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai, independentemente dos “preços e quantidades de carne” que esses países possam oferecer.
Bompard afirmou que a decisão foi tomada após ouvir o “desânimo e a raiva” dos agricultores franceses, que têm protestado contra a proposta de acordo de livre-comércio entre a União Europeia e o Mercosul. Os atos de protesto, organizados pela Federação Nacional dos Sindicatos dos Operadores Agrícolas (FNSEA) e pelos Jovens Agricultores (JA), começaram na última segunda-feira, 18, com bloqueios de rodovias e outras manifestações.
Embora a a França, segundo dados do site especializado Farmnews, tenha comprado, de janeiro a outubro deste ano, menos de 40 toneladas de carne bovina in natura do Brasil, o agro brasileiro teme que o boicote acabe estimulando a adesão de outros países, por pressões locais.
Nesta sexta-feira, 22, outro grande grupo varejista francês, o Les Mousquetaires, seguiu na mesma direção do Carrefour. O CEO do grupo, Thierry Cotillard, também em publicação nas redes sociais, afirmou que as unidades do grupo (que detém as marcas Intermarché e Netto) se comprometem a não comercializar carne da América do Sul.
Cotillard disse que a medida visa à soberania alimentar e ao apoio aos agricultores franceses. Ele ainda pediu uma mobilização coletiva nesse sentido. “Faço um apelo às indústrias para que demonstrem o mesmo nível de comprometimento e transparência quanto à origem da matéria-prima utilizada”, escreveu. De acordo com ele, o boicote deve ser aplicado também aos produtos que são utilizados para fabricação de itens de marca própria do grupo.
O que está por trás do boicote?
Esse movimento dos grupos varejistas e dos agricultores franceses tem como pano de fundo as discussões sobre o acordo comercial entre a União Europeia e o Mercosul. Nas negociações desse acordo, que já duram vários anos, a questão agrícola sempre foi um ponto de confronto importante.
Os agricultores europeus sempre pediram algum tipo de proteção contra os produtos do Mercosul. Mas, agora, com o avanço das conversas e a possibilidade real de o acordo ser assinado, essas manifestações contrárias se tornaram mais veementes.
No último dia 13, o primeiro-ministro francês, Michel Barnier, afirmou que a França não aceitará a assinatura do acordo se o texto se mantiver como atualmente proposto. “Nas condições atuais, este acordo não é aceitável para a França e não o será. Recomendo que a posição de um país como a França não seja ignorada”, declarou.
O argumento central dessa nova investida contrária ao acordo é ambiental - os franceses alegam que os produtores brasileiros não respeitam as mesmas regras impostas a eles. “A Europa não deve se converter em um filtro e não pode importar produtos que não respeitam nenhuma de nossas normas (ambientais)”, disse à rádio France International o presidente da FNSEA, Arnaud Rousseau.
Os sindicatos do setor agrícola dizem rejeitar o acordo com o Mercosul argumentando que os franceses encontrariam nos seus pratos mais produtos que dizem não querer: cultivados com pesticidas proibidos na União Europeia e criados com químicos que ativam o crescimento.
O que a França representa para a exportação brasileira de carne?
Um grupo do porte do Carrefour anunciar o boicote à carne do Mercosul pode ter um efeito grande na imagem do produto, abrindo caminho para atitudes parecidas em outros países europeus e prejudicando os produtores daqui. Mas, nesse momento, em termos práticos, o efeito é quase nulo.
Segundo dados do site especializado Farmnews, a França, como um todo, comprou, no período de janeiro a outubro deste ano, menos de 40 toneladas de carne bovina in natura do Brasil. Isso representa, na prática, 0,002% do total embarcado pelo Brasil no período, de 1,41 milhão de toneladas.
Como o Brasil está reagindo?
O movimento francês provocou reações fortes no lado brasileiro. O ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, disse que isso tudo parece uma “ação orquestrada”. “Me parece que estão querendo arrumar o pretexto para que a França não assine e continue com a posição contra a finalização do acordo Mercosul-União Europeia”, disse. Em sua visão, seria mais “bonito e legítimo” só manter a posição contra o acordo.
“Não precisava ficar procurando pretexto naquilo que não existe na produção sustentável e exemplar brasileira. Eu seria o último das pessoas a apontar qualquer defeito na produção francesa, mas fico indignado quando eles querem fazer isso com o Brasil”, completou.
Em nota oficial, o ministério disse que “não aceitará tentativas vãs de manchar ou desmerecer a reconhecida qualidade e segurança dos produtos brasileiros e dos compromissos ambientais brasileiros. Mais uma vez, o Ministério reitera o compromisso da agropecuária brasileira com a qualidade, sanidade e sustentabilidade dos alimentos produzidos no Brasil para contribuir com a segurança alimentar e nutricional de todo o mundo”.
O deputado Alceu Moreira (MDB-RS), diretor de Política Agrícola e ex-presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), vai apresentar ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), um requerimento para instalar uma comissão externa da Casa com o objetivo de “colocar o dedo na ferida” da empresa.
Na justificativa para criar a comissão, Moreira diz que é preciso avaliar a conduta e as denúncias contra o Carrefour no Brasil. O deputado afirma que há antecedentes “graves” da rede de supermercados francesa no País ligados a violações raciais, ambientais e trabalhistas.
“É uma atitude absolutamente irresponsável, falaciosa e discriminatória, em uma clara afronta protecionista ao setor agropecuário brasileiro”, disse Moreira.
Propostas de boicote ao Carrefour no Brasil
O setor agrícola brasileiro também se posicionou de forma veemente. Entidades do agronegócio e da indústria assinaram uma nota conjunta repudiando as declarações, reafirmando o compromisso das empresas de alimentos e dos produtores rurais com a produção sustentável e com a segurança alimentar. A nota é assinada pela Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes (Abiec), Associação Brasileira de Proteína Animal (ABPA), Associação Brasileira do Agronegócio (Abag), Sociedade Rural Brasileira (SRB) e Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp).
“Se o CEO Global do Grupo Carrefour, Alexandre Bompard, entende que o Mercosul não é fornecedor à altura do mercado francês - que não é diferente do espanhol, belga, árabe, turco, italiano -, as entidades abaixo assinadas consideram que, se não serve para abastecer o Carrefour no mercado francês, não serve para abastecer o Carrefour em nenhum outro país”, dizem na nota.
Da mesma forma, o governador de Mato Grosso, Mauro Mendes (União Brasil), defendeu um boicote ao Carrefour e ao Atacadão (controlado pelo grupo francês). “Ele (Carrefour) tem direito de comprar de quem ele quer para mandar produto lá para a França, mas nós brasileiros também temos o direito de comprar de quem quisermos. Então, se o Brasil não serve para vender carne para eles, então eles não servem para vender produtos franceses e essa empresa não deveria ser bem vista aqui no nosso País”, disse Mendes, em vídeo publicado nas suas redes sociais.
“Quero dizer ao diretor geral do Carrefour e do Atacadão, que eu, como cidadão, não vou comprar mais das lojas deles, e acho que aqueles que são do agro e até a população brasileira, para honrar o nosso País, deveriam pensar em dar a eles o mesmo tratamento que estão dando ao nosso País”, defendeu o governador.
Essas propostas de boicote se dão porque a rede francesa informou que a medida contra a carne do Mercosul só valeria para as unidades francesas do grupo. Procurado, o Carrefour Brasil informou apenas que “nada muda nas operações do País”.
Reação dos produtores do Mercosul
Em nota nesta quinta-feira, 21, a Federação das Associações Rurais do Mercosul (Farm), composta por entidades representativas da Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Uruguai e Paraguai, disse manifestar “veemente discordância e repúdio à decisão anunciada pelo CEO do Carrefour, Alexandre Bompard, de suspender a compra de carne proveniente do Mercosul. Essa atitude, arbitrária, protecionista e equivocada, prejudica o bloco e ignora os padrões de sustentabilidade, qualidade e conformidade que caracterizam a produção agropecuária nos seus países membros”.
Segundo a Federação, a carne do Mercosul é produzida sob “rigorosos padrões socioambientais e sanitários, alinhados com as mais exigentes normas internacionais”, e o Mercosul “é líder mundial em práticas de sustentabilidade no setor agropecuário”.
“Embora decisões comerciais sejam de competência interna das empresas, a postura pública do CEO do Carrefour, ao transformar uma política de compras em palco para questionamentos infundados, ultrapassa os limites aceitáveis”, diz a nota, assinada por Gedeão Pereira, presidente da Farm e vice-presidente da Confederação Nacional da Agricultura (CNA). “Não se trata de uma decisão isolada, mas de um ataque direto à credibilidade e à contribuição do setor agropecuário do Mercosul para a segurança alimentar mundial.”