Num momento em que o País aguarda detalhes do plano de cortes de gastos a ser divulgado pelo governo federal, a professora do Insper Laura Muller Machado diz que a discussão sobre o uso dos recursos públicos deveria ter como base uma avaliação clara dos programas que funcionam ou não funcionam.
“É menos uma discussão de quem vai ser o alvo e mais uma discussão sobre vamos ver o que funciona ou que não funciona. Apresentem um relatório de quais são as políticas que estão com alocação de recursos relevantes e que não estão com o resultado esperado. Essas são as primeiras a serem reavaliadas”, afirma Laura, que foi secretária de Desenvolvimento Social do Estado de São Paulo.
No desenho de políticas sociais, Laura avalia que o Brasil precisa discutir um programa de inclusão voltado para o trabalhador mais pobre. “Estamos muito fragilizados nesse pedaço, e a gente tem uma parte grande da população pobre fora do mercado de trabalho e em graus de informalidade muito altos”, diz.
A seguir os principais trechos da entrevista concedida ao Estadão.
No ajuste ajuste das contas públicas, o reajuste do salário mínimo e os desenhos do Benefício de Prestação Continuada e do abono salarial entraram na discussão. Faz sentido o governo mexer nesses programas?
É raro uma política pública, seja ela social ou não, não ter nenhum aperfeiçoamento possível, tanto em termos de redução de custo quanto em termos de aumento da sua eficiência. Eu acho que essa discussão tem de ser permanente, tem de ter um diálogo para entender. A gente avalia muito pouco política pública. Seria melhor se a gente pudesse avaliar as intervenções que estamos achando que, talvez, tenham uma alocação grande de recursos, talvez não, e que a gente tenha a avaliação dessas políticas para ter certeza de que estamos fazendo uma boa escolha. Eu tenho certeza que não é intenção de ninguém reduzir os direitos e os serviços que a população precisa, e eu não tenho certeza se estamos gastando os nossos recursos da melhor forma.
Por que a sra. não tem certeza?
Eu gostaria de ter uma avaliação de impacto clara e relevante, por exemplo, da focalização do BPC, uma avaliação sobre o desenho do programa, assim como de todos os outros: do Bolsa Família, de qual é o impacto do salário mínimo na informalidade, se está ajudando ou se está atrapalhando. A gente precisa de uma boa discussão sobre esses programas tão relevantes para tomar boas decisões.
Mas a sociedade está madura para discutir uma mudança num programa social?
Falando sobre o Bolsa Família, eu acho que, se a gente mostrar para a sociedade que tem um programa com evidências de que está sendo concedido apenas para quem deve ser beneficiário e é responsável por grandes reduções nos nossos indicadores de pobreza, a sociedade vai concordar. Agora, se a sociedade tem um sentimento de que o programa não está, necessariamente, sendo entregue para quem mais precisa, que tem uma série de desvios ou que não tem evidência da eficiência ou da eficácia dele, ela vai achar ruim. É normal. Essas discussões têm, sim, uma série de decisões que são baseadas em valores e percepções, mas a gente tem de tirar a assimetria de informação a partir do uso da evidência. O que o cidadão mais gosta é de ficar bem informado sobre o uso do recurso dele.
Sobre o Bolsa Família, então, quais mudanças são necessárias?
Ele tem uma coisa muito legal, que é o programa de maior valor que a gente já teve na história. E eu acho isso maravilhoso, porque eu queria mais é que pudéssemos, como país, ser o mais generoso possível com quem mais precisa. No entanto, o Bolsa está criando um problema para ele mesmo. O programa não tem um desenho interessante para incentivar as pessoas beneficiárias a transitarem para o mercado de trabalho. Hoje, se você recebe o Bolsa Família e encontra um trabalho a partir de uma determinada renda, você perde tudo ou metade do programa. Essa mudança de uma transferência de renda segura para um mercado de trabalho difícil precisa de incentivos, não de punições. Eu acho que ele precisa ser muito aperfeiçoado para ser mais amigável para a transição do mercado de trabalho. Se você está em casa, há dois anos, desempregado, procurando um emprego, encontra um trabalho, e ele (salário) não é tão mais do que você tem de Bolsa Família e ainda, por cima, a gente tira imediatamente metade ou a integralidade do recurso do Bolsa Família, ele não vai querer ir. E ele está apenas respondendo ao que a gente está desenhando para ele.
Nesses casos, a retirada do programa tem de ser gradativa, então?
Tem de ser gradativa. Quem recebe o Bolsa Família e arruma um emprego merece um prêmio. Está tão difícil. O beneficiário precisa ser premiado; a gente tem de celebrar. Isso, num primeiro momento. Num segundo momento, a gente tem de aguardar ele ter segurança, ter um processo de inclusão ao trabalho concluído e aí fazer uma saída gradativa, sem gerar insegurança e estresse, esperando a pessoa se adaptar a isso, porque o mundo do trabalho não é tão tranquilo, como a gente sabe.
E o que explica essa dificuldade de inserção desse grupo no mercado de trabalho?
Muitas vezes, o perfil do Bolsa Família está na informalidade. A gente tem quase metade da nossa população na informalidade. E a gente tem altas taxas do chamado desalento, que é quando a pessoa procurou trabalho, mas chegou uma hora em cansou e parou (de procurar emprego). Um desalentado, por exemplo, não aparece na taxa de desemprego. Então, a gente está falando de um mundo sobre o qual a gente tem muito pouco indicador sobre ele. É um mundo que está na informalidade. É ótimo que o País esteja crescendo, que o mercado de trabalho esteja aquecido e que as pessoas estejam comprando mais. Isso dá mais oportunidades para essa população, mas, pela taxa de desemprego, por exemplo, a gente não consegue vê-los necessariamente. Eles são invisíveis.
Como a sra. vê a discussão do ajuste fiscal? A discussão tem sido igualitária?
Olha, eu acho que nós temos, de forma geral, muito ajuste para melhorar a qualidade do gasto público. Não dá para dizer que o governo não tem dinheiro. O governo tem muito dinheiro. A gente tem uma baixa qualidade no gasto desse recurso. E aí você tem uma série de políticas que são historicamente discutidas, como o seguro defeso, o BPC, além de muitas outras. Eu acho que uma revisão de gasto em todos os setores - e a gente já deveria estar em curso com ela - é o que será mais benéfico para o País. Essa escolha sempre vai ser difícil, será melhor quanto mais bem fundamentada ela estiver, com bons sistemas de monitoramento e boas avaliações das políticas. Eu não acho que o Brasil nesse momento precisa cortar um programa caso ele seja muito bom para a população vulnerável. O que ele precisa é encontrar programas para todos os públicos. É encontrar o que não está sendo eficiente e essas coisas serem repensadas. É menos uma discussão de quem vai ser o alvo e mais uma discussão sobre vamos ver o que funciona ou que não funciona. Apresentem um relatório de quais são as políticas que estão com alocação de recursos relevantes, mas que não estão com os resultados esperados. Essas são as primeiras a serem reavaliadas.
Mas a existência de vários lobbies não dificulta cortes desse tipo de política?
Eu acho que sim, mas, por outro lado, a gente não tem esse relatório. É parte da democracia a pressão dos grupos de interesse. No entanto, eu acho que a discussão seria mais fácil se tivéssemos um relatório sobre as principais políticas do governo brasileiro. Vamos avaliar quanto custa cada uma delas, qual é o custo benefício, quais os resultados de eficácia e de eficiência nessa política. O legislativo da Comunidade Europeia fez um acordo com uma boa parte das universidades da União Europeia, e ele sabe quais delas são mais reconhecidas em diferentes áreas. Toda vez que tem uma decisão difícil, o legislativo pede para essas universidades fazerem uma pesquisa que responda a um número de perguntas, a um conjunto de perguntas que os tomadores de decisão precisam saber para tomar boas decisões.
Esse modelo poderia ser replicado aqui?
O Brasil poderia fazer a mesma coisa. Imagina se cada universidade brasileira ou cada faculdade brasileira realizasse essa pesquisa de avaliação de uma ou duas políticas brasileiras. Teríamos sei lá quantas páginas de documentos para ler, e conseguiríamos tomar uma decisão muito mais embasada. Mas, sem essa fundamentação empírica e científica, e cheio de grupos de interesses esparsos, vira um caos.
Além da mudança no Bolsa Família, quais outras políticas sociais o Brasil precisa?
Hoje, nós não temos um bom programa de inclusão ao trabalho voltado para o trabalhador pobre. O Bolsa Família é muito relevante, porque é o alívio da pobreza. Com frequência, vamos ter pessoas que caem em situações de vulnerabilidade e precisam do apoio - e que a gente sempre consiga ajudar essas pessoas imediatamente. No entanto, a gente precisa ter, em paralelo, um bom programa de inclusão ao trabalho dessa população. Um programa que, depois de a pessoa ter recebido o auxílio, discuta a inclusão no mercado de trabalho. Estamos muito fragilizados nesse pedaço, e a gente tem uma parte grande da população pobre fora do mercado de trabalho e em graus de informalidade muito altos. Precisamos de uma política muito específica de formalização da população, para elas serem formais, não informais, em qualquer modelo de trabalho que elas queiram, e de incentivos para qualificar o trabalhador, para incluí-lo no mercado de trabalho.
Seria uma política bem localizada e individualizada?
Temos a lista de beneficiários do Bolsa Família, do BPC ou de outras políticas. E, no caso do BPC, a gente tem uma série de empresas, por exemplo, que não conseguem bater as suas metas de trabalhador com deficiência, mas não temos um diálogo entre essas duas pontes. Sabemos quem recebe o Bolsa Família, mas não vamos conversar com eles para saber como se inserem no mercado de trabalho e conseguem uma tal porta de saída. Tem bastante coisa que poderíamos fazer em termos de melhoria da nossa rede de proteção social que não estão sendo feitas hoje.