Os dados divulgados pela Americanas a respeito da fraude contábil relatada pelos administradores judiciais da companhia revelam detalhes que surpreendem até quem acompanhou outros casos famosos do varejo. Especialistas indicam que agora é possível afirmar que o rombo teve origem em verbas publicitárias tradicionalmente negociadas entre a indústria e o varejo.
Esse já foi o epicentro de outras fraudes no setor, mas desta vez a magnitude dos valores e a sofisticação para escondê-los são sem precedentes e mostram que até os números operacionais da companhia, e não só seu endividamento, eram mentirosos.
Nas negociações com os fornecedores, é comum haver um valor fechado para a venda de produtos e uma verba de publicidade que a indústria devolve para a companhia. Esses acordos envolvem negociação por espaços privilegiados nas gôndolas, anúncios nos corredores e outros detalhes de apresentação dos produtos.
Historicamente, porém, as varejistas computam essas verbas publicitárias antes que elas sejam recebidas de fato e, muitas vezes, as compras são canceladas e as verbas, que nunca haviam sido pagas, não são tiradas do balanço: viram um dinheiro de mentira.
Os assessores jurídicos da administração da empresa apresentaram ao conselho de administração em reunião na segunda-feira, 12, um relatório contendo achados preliminares sobre as inconsistências contábeis relatadas pela empresa em janeiro. O documento indica que houve fraude.
“Os documentos analisados indicam que as demonstrações financeiras da companhia vinham sendo fraudadas pela diretoria anterior da Americanas”, afirma a empresa em fato relevante enviado à Comissão de Valores Mobiliários (CVM).
Segundo o relatório, foram identificados diversos contratos de “verba de propaganda cooperada” (VPC, as verbas de publicidade), que teriam sido artificialmente criados para melhorar os resultados operacionais da companhia como redutores de custo, mas sem efetiva contratação com fornecedores.
“Esses lançamentos, feitos durante um significativo período, atingiram, em números preliminares e não auditados, o saldo de R$ 21,7 bilhões em 30 de setembro de 2022″, disse a varejista em comunicado ao mercado.
“É um rombo 20 vezes maior do que o que foi visto no Carrefour 13 anos atrás. O que surpreende”, disse Eduardo Terra, presidente da Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo (SBVC).
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O caso que o especialista relembra data de 2010 e envolveu R$ 1,2 bilhão em verbas publicitárias contabilizadas pela companhia, mas que nunca se concretizaram. No caso da Americanas, a extensão da fraude é bem maior e, por isso, precisou ser escondida de forma mais sofisticada.
Como as verbas publicitárias inexistentes melhoravam os resultados operacionais da companhia, mas não apareciam no caixa, a empresa teve de descontá-las de alguma forma. O comunicado da companhia indica que os números foram lançados majoritariamente na forma de “redutores da conta de fornecedores”, linha que indica o quanto a empresa paga para os fabricantes.
O saldo devedor da companhia nessa parte do balanço era de R$17,7 bilhões em 30 de setembro de 2022, mas o valor era abatido pelas verbas publicitárias mentirosas, que somavam R$ 21,7 bilhões. A diferença de R$ 4 bilhões teve como contrapartidas lançamentos contábeis em outras contas do ativo da empresa, diz a Americanas.
Ou seja, o problema do risco sacado (financiamentos para pagar fornecedores que não eram lançados como dívida), que era apontado como o centro do rombo fiscal da Americanas, na verdade, era só mais um capítulo de uma fraude que começava nos números operacionais da empresa, beneficiava seu Ebitda (sigla em inglês para lucros, antes de juros, impostos, depreciação e a amortização) e depois ainda era usada para reduzir artificialmente seu endividamento.
A Americanas contou no comunicado que contratou uma série de financiamentos que foram contabilizados de forma inadequada na “conta fornecedores” e que foram feitos sem as devidas aprovações societárias.
Em operações de financiamento de compras (risco sacado, forfait ou confirming) somavam-se R$18,4 bilhões, em números preliminares e não auditados. Além disso, as operações de financiamento de capital de giro estavam na casa dos R$ 2,2 bilhões, também em números preliminares e não auditados. “Risco sacado”, “forfait” e “confirming” são como linhas de crédito para financiar contas de fornecedores são conhecidas no mercado.
Saúde frágil
A conclusão é que a saúde operacional e financeira que a empresa apresentava em seus números oficiais não existe há muito tempo. O documento publicado pela companhia, porém, não especifica o período em que todo o esquema começou.
“Tem duas principais lições: a primeira é que os instrumentos de governança e regulação têm de ser muito aprimorados, seja na CVM, na B3 ou nas próprias organizações; a segunda é que, muitas vezes imagina-se que uma empresa grande, de prestígio e famosa tenha mais lisura que outras, mas o caso da Americanas mostrou que isso não é verdade”, afirma Eugênio Foganholo, sócio da consultoria Mixxer, especializada em varejo.
O comunicado da Americanas diz ainda que “os ajustes contábeis definitivos estarão refletidos nos demonstrativos financeiros históricos auditados que serão reapresentados assim que os trabalhos estiverem concluídos”.
A companhia continua: “Da mesma forma, o efeito desses ajustes nos resultados da companhia ao longo do tempo ainda está sendo apurado, mas a expectativa da administração é de que o impacto nos resultados mais recentes seja significativo”.
Desde o início, a estratégia de defesa da companhia e do trio de acionistas de referência (Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira) tem sido de indicar a culpa da diretoria da empresa, blindando o Conselho de Administração com documentos que mostram que os problemas de endividamento não foram comunicados aos comitês responsáveis.
O atual diretor-presidente da empresa, Leonardo Coelho, depõe nesta terça-feira na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Americanas, na Câmara dos Deputados, para dar mais detalhes sobre o relatório do administrador judicial.