O que era uma guerra feita na surdina de processos sigilosos explodiu como um conflito aberto, aos olhos de todos, com a divulgação de documentos e troca de acusações sobre manipulação de dados. De um lado, a LTS (empresa que administra os negócios de Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira) e a Americanas acusando uma suposta “atuação acertada” entre o ex-CEO da varejista Miguel Gutierrez e o Bradesco, um dos credores da empresa.
Do outro, o banco e o ex-CEO, buscando provar que os acionistas Carlos Alberto Sicupira e Paulo Lemann, filho de Jorge Paulo Lemann, tinham conhecimento da situação financeira catastrófica da empresa e de práticas informadas ao mercado somente em janeiro de 2023 por meio do fato relevante que tornou público o rombo de R$ 20 bilhões no caixa da Americanas.
Procurado pelo Estadão, Gutierrez afirmou, em nota, que a Americanas “pinça documentos fora de contexto na tentativa de corroborar sua narrativa falsa” e se precipita à conclusão das autoridades para proteger seus principais acionistas. O Bradesco não se manifestou.
Dois fatos levaram os principais atores dessa crise à guerra pública: o surgimento e a publicação das declarações prestadas por Gutierrez por meio de seus advogados e o processo em que o Banco Bradesco procura antecipar a produção de provas sobre o que houve na empresa.
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Na declaração endereçada ao desembargador Ricardo Negrão, da 2.ª Câmara de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo, o ex-CEO disse que Sicupira tinha ciência da situação, envolvendo-o no caso em um processo público.
Ele afirmou que as vendas da companhia eram acompanhadas diariamente pelo Sr. Carlos Alberto Sicupira e pelo Sr. Eduardo Saggioro (ex-presidente do Conselho de Administração da Americanas). Sobre as fraudes contábeis, contou que “vale observar que os membros do comitê de auditoria e do comitê financeiro, bem como os do conselho fiscal, eram indicados ou sempre validados pelo Sr. Carlos Alberto Sicupira. Além disso, cabia ao conselho de administração, também, autorizar mudanças nas políticas contábeis da companhia”.
Na semana passada, o Bradesco obteve uma vitória no processo em que busca o protesto contra a alienação de bens dos acionistas das Americanas. Por decisão unânime, relatada peloo desembargador Natan Zelinschi Arruda, da 2º Câmara de Direito Empresarial do TJ-SP, o banco foi desobrigado a detalhar de forma justificada o seu crédito com a varejista bem como individualizar a possível futura responsabilidade de cada um dos acionistas da empresa. A contraofensiva da Americanas não demorou.
No dia 10, a empresa apresentou, por meio dos escritórios Basílio Advogados e Salomão, Kaiuca, Abrahão, Raposo e Cotta, uma contestação em que acusa Gutierrez de agir em acerto com o Bradesco. Dez advogados assinaram o documento ao qual o Estadão teve acesso.
Diz o documento: “Cumpre ressaltar algo curioso: logo após a petição do Bradesco, numa jogada milimetricamente combinada, Miguel Gutierrez apresentou sua manifestação respondendo à petição do agravado (o banco) e juntando declaração (supostamente por ele escrita), em que buscaria tornar ′públicos os esclarecimentos necessários a se desfazer integralmente as aleivosias e os ataques reiteradamente realizados sem qualquer lastro probatório’.”
Diz a defesa das Americanas que o papel de vítima que Gutierrez tentou desempenhar não cola. Gutierrez afirmou em suas declarações que havia sido afastado, na prática, das funções de CEO em maio passado.
Diz a empresa: “A desfaçatez do agravante — que, agora, ao que tudo indica, passou a agir de forma concertada com do agravado — não deve passar despercebida por esse colendo Tribunal. É preciso, antes de mais nada, recolocar as coisas em seus devidos lugares. A narrativa, diga-se logo, simplesmente não fecha. O papel de vítima não convenceu. A invectiva ‘ignorância’, como se não soubesse de nada que passava no Grupo Americanas, também não faz sentido”.
Os termos usados pela defesa da companhia são duríssimos. Ela prossegue: “Afinal, a referida ‘declaração’ certamente foi pensada, repensada, construída e reconstruída com inúmeros conselhos jurídicos; teve provável edição de terceiro, além de exclusão de informações que poderiam lhe prejudicar. Tudo, então, foi arquitetado nos mínimos detalhes. A situação, na largada, afigura-se sintomática e acintosa: ao invés de prestar seu depoimento às autoridades brasileiras, como todos fizeram, Miguel Gutierrez prefere afugentar-se na Espanha, esquivar-se da justiça brasileira e se restringir a externar seus devaneios por intermédio de uma ‘declaração’ cautelosamente orquestrada”.
Por fim, o documento afirma: “Ora, é evidente que Miguel Gutierrez não buscou, através da manifestação ora respondida, prestar esclarecimento algum. Pretendeu apenas colocar num papel (que aceita tudo) o que não seria capaz de dizer sem corar e sem cometer crime de falso testemunho: exatamente o que o banco Bradesco quer ouvir”.
Para dar lastro à sua reação, os advogados juntaram documentos mostrando que os demais bancos credores concordaram em chegar a um acordo com a Americanas no processo da Recuperação Judicial da empresa, no Rio.
Também juntaram relatórios do comitê financeiro e e-mails emitidos por Gutierrez que provariam que ele sonegou aos acionistas informações sobre a situação financeira da empresa, no qual ele escreve a frase: “Não levar nada”.
Depois, a empresa ainda mostrou à Justiça um documento com o título “Alinhamento interno do orçamento de 2022″ no qual Gutierrez fez comentários mostrando conhecer a situação real da empresa. O banco detectou as alterações no documento no histórico de alterações do documento e verificou que as anotações foram feitas com a senha de Gutierrez. Horas depois, a guerra dos documentos teve mais um lance.
O Estadão teve nesa segunda-feira, dia 11, acesso a um e-mail endereçado às 11h40 no dia 5 de maio de 2022 por Saggioro a outros membros do conselho, entre eles Sicupira. Eles tratam do Plano de Antecipação de Fornecedores, uma das formas de a Americanas pagar seus fornecedores. O documento cita que o tema foi discutido em uma reunião no dia anterior com a participação de Sicupira, Gutierrez e três outros diretores, Ana Saicali, Marcio Cruz e Thimoteo Barros.
Depois de relatar sobre formas de se fazer o arranjo financeiro do programa, o e-mail termina com duas conclusões que os investigadores do caso pretendem saber o significado: “Será estudado melhor modelo fiscal para a contabilização do PAF. É importante também avaliar a melhor forma de comunicar o PAF ao mercado para que não seja visto como piora da estrutura de capital da companhia”.
O Estadão consultou pessoas da investigação e ligadas aos acionistas que afirmaram que o e-mail mostraria apenas a atuação diligente do conselho estratégico da empresa de acompanhar um programa importante — o PAF —, ação que seria completamente desvinculada do dia a dia da empresa.
Em nota, a Americanas afirmou que “seus órgãos sociais atuam de acordo com as melhores práticas de governança do mercado”. “É boa prática que temas estratégicos sejam acompanhados pelos membros do Conselho de Administração e Comitês, como é o caso do e-mail citado, que tratava do acompanhamento de temas do Comitê de Estratégia e Comunicação, entre eles, do programa de antecipação de fornecedores com caixa próprio da Companhia, criado em 2021, devidamente discutido junto aos órgãos de governança, declarado adequadamente no balanço, assim como divulgado ao mercado”.
Procurada pela reportagem, a LTS informou que “é diligente a prática de que temas estratégicos da Companhia sejam acompanhados por membros do Conselho de Administração”. O Estadão procurou oficialmente todos os envolvidos no caso, mas não obteve retorno oficial de Gutierrez e do Bradesco.
Mais cedo, Gutierrez rebateu, por nota redigida pela sua defesa, as acusações. “É incompreensível a insistência da Americanas em se precipitar à conclusão das autoridades para proteger seus acionistas controladores e membros do conselho de administração — que têm responsabilidade nas áreas financeira e contábil”, diz a nota. O texto continua afirmando que “a companhia tropeça, assim, na tentativa de proteger pessoas que teriam muito mais condições de ressarci-la pelos danos que diz ter sofrido”.
O ex-executivo também se manifestou sobre as evidências apontadas pela empresa, como arquivos digitalizados com anotações de Gutierrez e e-mails internos. “Mais uma vez, a atual administração da Americanas pinça documentos fora de contexto na tentativa de corroborar sua narrativa falsa e incomprovada de que Miguel Gutierrez teria participado de uma fraude. As novas alegações da companhia serão rebatidas nos foros próprios do processo, mas chama a atenção que nenhum daqueles documentos sequer se relaciona com VPC (verbas cooperadas de publicidade) ou ‘risco-sacado’, temas que a companhia disse, no fato relevante de 13/06, corresponderem à fraude”, diz a nota da defesa do ex-CEO.
Abaixo, leia a íntegra dos documentos obtidos pela reportagem.