Líder de mercado na Oliver Wyman, Ana Carla Abrão trabalhou no setor financeiro a maior parte de sua vida, focada em temas relacionados a controle de riscos, crédito, spread bancário, compliance e varejo, tributação e questões tributárias.

Privilégios adquiridos


A luta distributiva justa - de uma reforma administrativa - contrapõe direito a privilégio

Por Ana Carla Abrão

Falar em direitos adquiridos passou a ser o argumento para combater a necessidade e a urgência de uma ampla revisão das leis de carreiras no setor público. Na medida em que fica mais claro que a reforma administrativa é, além de um imperativo social pela premência de melhoria na qualidade dos serviços públicos, em particular os básicos, mas também uma via para a correção de distorções injustificáveis e cada vez mais evidentes, privilégios são convenientemente classificados como direitos. 

Atualmente, gasta-se o equivalente a 13,1% do PIB, segundo dados do Banco Mundial, com salários de servidores na ativa. Em número de servidores já superávamos os 11 milhões de vínculos em 2017, conforme mostra o Atlas do Estado Brasileiro, uma publicação ampla sobre o tema elaborada pelo Ipea. Mais um sinal de que digitalização e ganhos de produtividade passaram ao largo da máquina pública ao longo das últimas décadas. 

Ou seja, gasta-se muito, com muitos servidores. Isso significa um gasto médio elevado e, portanto, um salário médio que destoa dos salários no mercado privado. Mas cabe aqui uma observação importante: salário médio elevado não significa que todo servidor público ganhe muito ou mais do que ganharia em atividades correlatas no setor privado. Ao contrário, a desigualdade salarial no serviço público brasileiro é enorme e esconde grandes distorções. Há sim um conjunto que ganha muito – em salários e benefícios com pouca transparência e nenhuma relação com resultado – e uma massa de servidores que ganha mal. Não é coincidência serem esses últimos os que estão na ponta, em contato direto com o cidadão. Daí a necessidade de uma ampla reforma que seja capaz de corrigir os desvios – para cima e para baixo.

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Brasil gasta o equivalente a 13,1% do PIB com salários de servidores na ativa. Foto: Dida Sampaiuo/Estadão

O primeiro foco de correção é a eliminação das promoções e progressões automáticas, atualmente uma das principais fontes de crescimento vegetativo das despesas de pessoal na União, Estados e municípios. Por serem menos claras na explicitação dos ganhos reais de renda do que os aumentos salariais, ficou fácil para o presidente Jair Bolsonaro vetar sua interrupção na LC 173, que congela salários e contagem de tempo para aquisição de vantagens – menos essa. Mas muito além do indesejável efeito fiscal, há algumas outras consequências diretas e indiretas que comprometem de forma fundamental o funcionamento da máquina e a qualidade dos serviços públicos. A primeira delas é o acúmulo de servidores no topo de suas carreiras. O Atlas do Ipea mostra que há casos como na área de Defesa (sim, mesma área que quer garantir 2% do orçamento para si), em que 98% dos servidores estão no topo da carreira. Ou da Receita Federal e carreiras jurídicas federais, com 84% e 78% dos servidores no topo, respectivamente. Nos Estados e municípios o quadro não é muito diferente. As consequências aqui vão além do evidente custo fiscal – na linha de despesa de pessoal e também no regime próprio de previdência. Com tanto chefe e pouco chefiado e sem chances de crescimento profissional ou ganhos financeiros adicionais, a baixa motivação, os resultados insatisfatórios e a escassez de servidores nas atividades básicas são algumas consequências evidentes. Além de, obviamente, pressões para elevação do teto remuneratório, verbas indenizatórias que furam o teto (não mais disfarçadamente) e o cipoal de penduricalhos que, conforme mostrou reportagem do Estadão da semana passada, só no Judiciário representaram R$ 6,2 bilhões em 2019.

Uma outra importante fonte de distorções se refere à ausência de uma avaliação de desempenho que permita a diferenciação entre bons e maus servidores e associe sua remuneração – e a manutenção do seu emprego público – à qualidade do seu trabalho. Embora haja previsão constitucional para demissão de servidores públicos por baixo desempenho desde 1998, a sua não regulamentação diz muito sobre a força das pressões corporativistas sobre o Congresso Nacional. Apesar disso, há exemplos em que a avaliação de desempenho foi implantada na administração pública. Não serve de muito, porém. Embora observe-se, principalmente no nível federal, uma parcela relevante da remuneração vinculada ao mérito, observa-se que a totalidade dos servidores recebe avaliação máxima – e portanto bônus máximo. O fato desse desempenho excepcional – e sua correspondente remuneração – não se refletir na qualidade do serviço prestado é apenas um detalhe. Isso sem contar a excrescência que representa o pagamento de cerca de R$ 700 milhões a título de bônus de desempenho a aposentados e pensionistas do serviço público federal em 2017.

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Há ainda um vasto conjunto de distorções que precisam ser explicitadas e discutidas. E elas se concentram na elite do funcionalismo público, em particular no Poder Judiciário, que inclusive comemora sua supremacia na luta distributiva com a aprovação pela Câmara dos Deputados da criação de mais um Tribunal Federal e, claro, do seu correlato no Ministério Público. 

A luta distributiva justa – e portanto uma reforma administrativa ampla – contrapõe direito a privilégio. Este último, bem definido nos dicionários on line como “um direito, vantagem, prerrogativa, válidos apenas para um indivíduo ou um grupo, em detrimento da maioria; apanágio, regalia”. Por outro lado, define-se como direito “aquilo que segue a lei e os bons costumes; ou, numa outra definição, o que é justo, correto, honesto”. É hora de cada um escolher o seu lado nessa luta.

*ECONOMISTA E SÓCIA DA CONSULTORIA OLIVER WYMAN. O ARTIGO REFLETE EXCLUSIVAMENTE A OPINIÃO DA COLUNISTA

Falar em direitos adquiridos passou a ser o argumento para combater a necessidade e a urgência de uma ampla revisão das leis de carreiras no setor público. Na medida em que fica mais claro que a reforma administrativa é, além de um imperativo social pela premência de melhoria na qualidade dos serviços públicos, em particular os básicos, mas também uma via para a correção de distorções injustificáveis e cada vez mais evidentes, privilégios são convenientemente classificados como direitos. 

Atualmente, gasta-se o equivalente a 13,1% do PIB, segundo dados do Banco Mundial, com salários de servidores na ativa. Em número de servidores já superávamos os 11 milhões de vínculos em 2017, conforme mostra o Atlas do Estado Brasileiro, uma publicação ampla sobre o tema elaborada pelo Ipea. Mais um sinal de que digitalização e ganhos de produtividade passaram ao largo da máquina pública ao longo das últimas décadas. 

Ou seja, gasta-se muito, com muitos servidores. Isso significa um gasto médio elevado e, portanto, um salário médio que destoa dos salários no mercado privado. Mas cabe aqui uma observação importante: salário médio elevado não significa que todo servidor público ganhe muito ou mais do que ganharia em atividades correlatas no setor privado. Ao contrário, a desigualdade salarial no serviço público brasileiro é enorme e esconde grandes distorções. Há sim um conjunto que ganha muito – em salários e benefícios com pouca transparência e nenhuma relação com resultado – e uma massa de servidores que ganha mal. Não é coincidência serem esses últimos os que estão na ponta, em contato direto com o cidadão. Daí a necessidade de uma ampla reforma que seja capaz de corrigir os desvios – para cima e para baixo.

Brasil gasta o equivalente a 13,1% do PIB com salários de servidores na ativa. Foto: Dida Sampaiuo/Estadão

O primeiro foco de correção é a eliminação das promoções e progressões automáticas, atualmente uma das principais fontes de crescimento vegetativo das despesas de pessoal na União, Estados e municípios. Por serem menos claras na explicitação dos ganhos reais de renda do que os aumentos salariais, ficou fácil para o presidente Jair Bolsonaro vetar sua interrupção na LC 173, que congela salários e contagem de tempo para aquisição de vantagens – menos essa. Mas muito além do indesejável efeito fiscal, há algumas outras consequências diretas e indiretas que comprometem de forma fundamental o funcionamento da máquina e a qualidade dos serviços públicos. A primeira delas é o acúmulo de servidores no topo de suas carreiras. O Atlas do Ipea mostra que há casos como na área de Defesa (sim, mesma área que quer garantir 2% do orçamento para si), em que 98% dos servidores estão no topo da carreira. Ou da Receita Federal e carreiras jurídicas federais, com 84% e 78% dos servidores no topo, respectivamente. Nos Estados e municípios o quadro não é muito diferente. As consequências aqui vão além do evidente custo fiscal – na linha de despesa de pessoal e também no regime próprio de previdência. Com tanto chefe e pouco chefiado e sem chances de crescimento profissional ou ganhos financeiros adicionais, a baixa motivação, os resultados insatisfatórios e a escassez de servidores nas atividades básicas são algumas consequências evidentes. Além de, obviamente, pressões para elevação do teto remuneratório, verbas indenizatórias que furam o teto (não mais disfarçadamente) e o cipoal de penduricalhos que, conforme mostrou reportagem do Estadão da semana passada, só no Judiciário representaram R$ 6,2 bilhões em 2019.

Uma outra importante fonte de distorções se refere à ausência de uma avaliação de desempenho que permita a diferenciação entre bons e maus servidores e associe sua remuneração – e a manutenção do seu emprego público – à qualidade do seu trabalho. Embora haja previsão constitucional para demissão de servidores públicos por baixo desempenho desde 1998, a sua não regulamentação diz muito sobre a força das pressões corporativistas sobre o Congresso Nacional. Apesar disso, há exemplos em que a avaliação de desempenho foi implantada na administração pública. Não serve de muito, porém. Embora observe-se, principalmente no nível federal, uma parcela relevante da remuneração vinculada ao mérito, observa-se que a totalidade dos servidores recebe avaliação máxima – e portanto bônus máximo. O fato desse desempenho excepcional – e sua correspondente remuneração – não se refletir na qualidade do serviço prestado é apenas um detalhe. Isso sem contar a excrescência que representa o pagamento de cerca de R$ 700 milhões a título de bônus de desempenho a aposentados e pensionistas do serviço público federal em 2017.

Há ainda um vasto conjunto de distorções que precisam ser explicitadas e discutidas. E elas se concentram na elite do funcionalismo público, em particular no Poder Judiciário, que inclusive comemora sua supremacia na luta distributiva com a aprovação pela Câmara dos Deputados da criação de mais um Tribunal Federal e, claro, do seu correlato no Ministério Público. 

A luta distributiva justa – e portanto uma reforma administrativa ampla – contrapõe direito a privilégio. Este último, bem definido nos dicionários on line como “um direito, vantagem, prerrogativa, válidos apenas para um indivíduo ou um grupo, em detrimento da maioria; apanágio, regalia”. Por outro lado, define-se como direito “aquilo que segue a lei e os bons costumes; ou, numa outra definição, o que é justo, correto, honesto”. É hora de cada um escolher o seu lado nessa luta.

*ECONOMISTA E SÓCIA DA CONSULTORIA OLIVER WYMAN. O ARTIGO REFLETE EXCLUSIVAMENTE A OPINIÃO DA COLUNISTA

Falar em direitos adquiridos passou a ser o argumento para combater a necessidade e a urgência de uma ampla revisão das leis de carreiras no setor público. Na medida em que fica mais claro que a reforma administrativa é, além de um imperativo social pela premência de melhoria na qualidade dos serviços públicos, em particular os básicos, mas também uma via para a correção de distorções injustificáveis e cada vez mais evidentes, privilégios são convenientemente classificados como direitos. 

Atualmente, gasta-se o equivalente a 13,1% do PIB, segundo dados do Banco Mundial, com salários de servidores na ativa. Em número de servidores já superávamos os 11 milhões de vínculos em 2017, conforme mostra o Atlas do Estado Brasileiro, uma publicação ampla sobre o tema elaborada pelo Ipea. Mais um sinal de que digitalização e ganhos de produtividade passaram ao largo da máquina pública ao longo das últimas décadas. 

Ou seja, gasta-se muito, com muitos servidores. Isso significa um gasto médio elevado e, portanto, um salário médio que destoa dos salários no mercado privado. Mas cabe aqui uma observação importante: salário médio elevado não significa que todo servidor público ganhe muito ou mais do que ganharia em atividades correlatas no setor privado. Ao contrário, a desigualdade salarial no serviço público brasileiro é enorme e esconde grandes distorções. Há sim um conjunto que ganha muito – em salários e benefícios com pouca transparência e nenhuma relação com resultado – e uma massa de servidores que ganha mal. Não é coincidência serem esses últimos os que estão na ponta, em contato direto com o cidadão. Daí a necessidade de uma ampla reforma que seja capaz de corrigir os desvios – para cima e para baixo.

Brasil gasta o equivalente a 13,1% do PIB com salários de servidores na ativa. Foto: Dida Sampaiuo/Estadão

O primeiro foco de correção é a eliminação das promoções e progressões automáticas, atualmente uma das principais fontes de crescimento vegetativo das despesas de pessoal na União, Estados e municípios. Por serem menos claras na explicitação dos ganhos reais de renda do que os aumentos salariais, ficou fácil para o presidente Jair Bolsonaro vetar sua interrupção na LC 173, que congela salários e contagem de tempo para aquisição de vantagens – menos essa. Mas muito além do indesejável efeito fiscal, há algumas outras consequências diretas e indiretas que comprometem de forma fundamental o funcionamento da máquina e a qualidade dos serviços públicos. A primeira delas é o acúmulo de servidores no topo de suas carreiras. O Atlas do Ipea mostra que há casos como na área de Defesa (sim, mesma área que quer garantir 2% do orçamento para si), em que 98% dos servidores estão no topo da carreira. Ou da Receita Federal e carreiras jurídicas federais, com 84% e 78% dos servidores no topo, respectivamente. Nos Estados e municípios o quadro não é muito diferente. As consequências aqui vão além do evidente custo fiscal – na linha de despesa de pessoal e também no regime próprio de previdência. Com tanto chefe e pouco chefiado e sem chances de crescimento profissional ou ganhos financeiros adicionais, a baixa motivação, os resultados insatisfatórios e a escassez de servidores nas atividades básicas são algumas consequências evidentes. Além de, obviamente, pressões para elevação do teto remuneratório, verbas indenizatórias que furam o teto (não mais disfarçadamente) e o cipoal de penduricalhos que, conforme mostrou reportagem do Estadão da semana passada, só no Judiciário representaram R$ 6,2 bilhões em 2019.

Uma outra importante fonte de distorções se refere à ausência de uma avaliação de desempenho que permita a diferenciação entre bons e maus servidores e associe sua remuneração – e a manutenção do seu emprego público – à qualidade do seu trabalho. Embora haja previsão constitucional para demissão de servidores públicos por baixo desempenho desde 1998, a sua não regulamentação diz muito sobre a força das pressões corporativistas sobre o Congresso Nacional. Apesar disso, há exemplos em que a avaliação de desempenho foi implantada na administração pública. Não serve de muito, porém. Embora observe-se, principalmente no nível federal, uma parcela relevante da remuneração vinculada ao mérito, observa-se que a totalidade dos servidores recebe avaliação máxima – e portanto bônus máximo. O fato desse desempenho excepcional – e sua correspondente remuneração – não se refletir na qualidade do serviço prestado é apenas um detalhe. Isso sem contar a excrescência que representa o pagamento de cerca de R$ 700 milhões a título de bônus de desempenho a aposentados e pensionistas do serviço público federal em 2017.

Há ainda um vasto conjunto de distorções que precisam ser explicitadas e discutidas. E elas se concentram na elite do funcionalismo público, em particular no Poder Judiciário, que inclusive comemora sua supremacia na luta distributiva com a aprovação pela Câmara dos Deputados da criação de mais um Tribunal Federal e, claro, do seu correlato no Ministério Público. 

A luta distributiva justa – e portanto uma reforma administrativa ampla – contrapõe direito a privilégio. Este último, bem definido nos dicionários on line como “um direito, vantagem, prerrogativa, válidos apenas para um indivíduo ou um grupo, em detrimento da maioria; apanágio, regalia”. Por outro lado, define-se como direito “aquilo que segue a lei e os bons costumes; ou, numa outra definição, o que é justo, correto, honesto”. É hora de cada um escolher o seu lado nessa luta.

*ECONOMISTA E SÓCIA DA CONSULTORIA OLIVER WYMAN. O ARTIGO REFLETE EXCLUSIVAMENTE A OPINIÃO DA COLUNISTA

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