Os ‘dias de rico’ dos brasileiros na Argentina chegaram ao fim; entenda o que aconteceu


Encarecimento do país reduz número de turistas do Brasil em terras argentinas, e os que vão estão ficando menos tempo

Por Luciana Taddeo
Atualização:

BUENOS AIRES - O show de tango costuma ser um programa “obrigatório” na primeira visita turística a Buenos Aires. Mas quase ficou de fora da viagem do pedagogo Bruno Pontes e da enfermeira Sabrina Rosário, casal de Resende, no Rio de Janeiro, por causa do preço da entrada, na casa dos R$ 700 por pessoa.

Para não deixar de ver o show, o casal teve de pesquisar opções e achou um por R$ 500 para cada, valor que se adequava mais ao orçamento da viagem. Se estivessem viajando em 2023, porém, eles provavelmente gastariam metade, ou menos, desse valor.

E a entrada para o show não foi o único susto dos dois na Argentina: eles já gastaram R$ 15 em um refrigerante de 600 ml e R$ 35 com transporte por aplicativo do bairro de Palermo ao da Recoleta, num trajeto diurno que, garantem, sairia metade do preço no Brasil.

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Sabrina Rosário e Bruno Pontes se espantaram com os preços da comida em Buenos Aires Foto: Luciana Taddeo/Estadão

“O que mais me assustou foi a comida, que não esperávamos que fosse tão cara. Tem de ser esperto e pedir comida que sirva os dois. Ou pedir uma cerveja e petiscar, o que é mais barato”, diz o pedagogo, que já acompanhava pelas redes sociais vídeos de brasileiros relatando o aumento dos preços na Argentina.

A turista Célia Figueiredo, do Rio de Janeiro, estava em um cruzeiro e desembarcou em Buenos Aires pela primeira vez, com o filho. Um dos almoços eles fizeram no London City, famoso “café notável”, declarado patrimônio da cidade, na icônica Avenida de Maio. O programa pesou no bolso: um prato de macarrão para dois, com uma água mineral e uma saborizada, totalizou R$ 246.

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“Estou achando tudo muito caro. Com esse valor, a gente come melhor no Brasil. Não é real aquela ideia de que a Argentina é barata”, diz a empresária.

De fato, a Argentina baratíssima para o turista, como ocorria nos últimos anos, quando o brasileiro costumava viver “dias de rico”, já não existe. Hoje, é raro sentar em um restaurante sem requintes na Argentina e pagar menos do que 13 mil pesos (o equivalente a cerca de R$ 72) em um prato de comida com bebida sem álcool. Com vinho, o preço sobe pelo menos 11 mil pesos (ou mais R$ 61).

“Pagamos R$ 85 em um hambúrguer e R$ 20 numa água”, diz a servidora pública Ana Paula Oliveira, de Brasília, que tirava foto com os filhos diante da Casa Rosada, sede da presidência argentina. “Já vim em várias oportunidades e era muito diferente, tudo mais acessível. Acabamos de ir ao Uruguai e estamos achando Buenos Aires mais cara do que Montevidéu”, afirma.

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Uma corrida de 5 km com transporte por aplicativo durante uma manhã de sábado em Buenos Aires está saindo por cerca de 5 mil pesos (R$ 28), mas numa madrugada pode passar de 19 mil pesos (R$ 105).

Quanto aos vinhos, o Angélica Zapata, vinho bastante procurado por brasileiros, está saindo por algo como 42.700 pesos (R$ 237). Já o El Gran Enemigo, também famoso entre os brasileiros, custa hoje 60.500 pesos (R$ 336). Ainda estão mais baratos que comprar no Brasil, mas esses preços já foram muito mais vantajosos. Em novembro de 2023, eram encontrados por R$ 131 e R$ 257, respectivamente.

Célia Figueiredo com seu filho Lucas Malafaia: 'Aquela ideia de que Argentina é barata não é real' Foto: Luciana Taddeo/Estadão
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Nos “kioscos”, lojinhas de guloseimas vistas em muitas esquinas da cidade, um refrigerante de 500 ml está em 1.700 pesos (R$ 9,50) e uma água ou um alfajor, em 1.200 (R$ 6,50). Já numa cafeteria, um cafezinho sai por 2.500 pesos (R$ 14), o café com leite, 4.000 (R$ 22), e uma unidade das famosas medialunas, os croissants argentinos, 1.400 (R$ 8).

Dono de uma agência de turismo receptivo que vende passeios e faz traslados em Buenos Aires, o brasileiro José Veras conta que não foi somente o show de tango que aumentou em dólares. Uma visita a uma vinícola na província de Buenos Aires passou de US$ 50 em outubro para US$ 73 atualmente.

Segundo ele, os turistas brasileiros não estão desmarcando viagens, mas acabam gastando menos dinheiro. “Muita gente opta, por exemplo, por não ir a um show de tango, por achar caro. Em vez disso, saem para jantar”, relata, sobre algumas das mudanças que observou nos últimos meses.

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Os aumentos de preços não preocupam somente turistas, mas também os empresários do setor. “Alguns aumentos aqui não têm sentido. E isso traz um desafio muito grande para os empreendedores, para os empresários, autônomos que vendem serviços e passeios na Argentina”, diz a sócia de Veras, Mariel Ramos, também brasileira.

“Às vezes a gente vende um pacote e, quando vai fazer o pagamento, a precificação não fecha com o valor que tínhamos calculado de custos do serviço”, diz ela. “Então para dar certo, é preciso ter muito volume ou muita precaução para não ter um grande prejuízo.”

Mudanças econômicas

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O encarecimento para o brasileiro é resultado das mudanças econômicas na Argentina, mas também reflete a desvalorização do real, diz o economista argentino Camilo Tiscornia, diretor da consultoria C&T Asesores Económicos.

O presidente argentino Javier Milei conseguiu diminuir a enorme brecha que havia entre o valor oficial do peso e a moeda negociada no mercado paralelo de câmbio: antes, o dólar oficial, cuja compra é controlada na Argentina, era 300 pesos, enquanto paralelo era vendido a 750. Hoje, o oficial está pouco mais de 1.000, e o paralelo em 1.200.

“Antes, o turista trocava dólares no mercado paralelo e comprava produtos cujos valores estavam alinhados ao câmbio oficial”, diz Tiscornia. “Essa diferença fazia com que a Argentina fosse muito barata para o estrangeiro.”

O efeito também encarecia a viagem dos argentinos para o exterior, algo que hoje em dia se inverteu. A quantidade de turistas que foram ao Brasil saindo do Aeroporto Internacional de Ezeiza, na Grande Buenos Aires, e do Aeroparque Jorge Newbery, na capital, aumentou 12,3% em um ano, e a média de estadia desses viajantes aumentou 10,5%, de acordo com dados oficiais argentinos de novembro.

“Como há mais confiança na política econômica do governo, a brecha entre os tipos de câmbio diminuiu muito”, diz o economista. O resultado foi um peso fortalecido e uma Argentina com inflação em dólares, apesar da desaceleração da inflação na moeda local, que retrocedeu de 25,5% em dezembro de 2023 para 2,4% em novembro.

“Hoje, a inflação em pesos está em cerca de 2,5% e há uma desvalorização cambial de 2%. Então, a inflação em dólares é de 0,5%”, diz Tiscornia. “Estamos em um dos momentos bastante caros da Argentina, mas é um movimento natural diante de preços muito baixos que havia aqui no ano passado. Em algum momento, tinham de aumentar.”

Milei aplica, atualmente, uma desvalorização administrada do peso argentino, denominada crawling peg, de 2% mensais. Embora alguns economistas acreditem que em algum momento será necessário desvalorizar mais a moeda argentina, o presidente argentino afirma que, se a inflação continuar caindo, mexerá mais lentamente no câmbio oficial.

Para os brasileiros, o fenômeno se soma à desvalorização do real, de 27% em 2024. E a previsão, pelo menos por enquanto, não é que os preços irão diminuir.

Ainda é cedo para determinar o impacto no turismo a longo prazo, mas há uma queda na quantidade de turistas brasileiros e dos dias que ficam no país. Em um ano, o número de turistas vindos do Brasil para a Argentina que chegou pelos aeroportos de Ezeiza e Aeroparque caiu 6,8%. Paralelamente, a média de dias de estadia despencou em 25,5% de novembro de 2023 para novembro de 2024, segundo o Instituto Nacional de Estatísticas e Censos.

Para Tiscornia, a grande dúvida que paira é se o atual cenário de preços é a nova normalidade do país, ou se serão feitas correções. Para isso, será preciso acompanhar sinais, como aumento brusco de importações, empresas fechando e o aumento do desemprego. Por enquanto, afirma, as empresas argentinas parecem ter margem para absorver a pressão. “Acredito que esses preços podem se manter”, conclui.

Veja alguns preços de produtos na Argentina:

  • Refrigerante de 500 ml - 1.700 pesos (R$ 9,50)
  • Água 500 mL - 1.200 pesos (R$ 6,50)
  • Alfajor - 1.200 pesos (R$ 6,50)
  • Expresso - 2.500 pesos (R$ 14)
  • Café com leite - 4.000 (R$ 22)
  • Medialuna - 1.400 (R$ 8)
  • Doce de leite (450g) - 9.000 (R$ 50)
  • Bife de chorizo grelhado (400g) - 26.000 (R$ 144)
  • Vinho Angélica Zapata - 42.700 pesos (R$ 237)

BUENOS AIRES - O show de tango costuma ser um programa “obrigatório” na primeira visita turística a Buenos Aires. Mas quase ficou de fora da viagem do pedagogo Bruno Pontes e da enfermeira Sabrina Rosário, casal de Resende, no Rio de Janeiro, por causa do preço da entrada, na casa dos R$ 700 por pessoa.

Para não deixar de ver o show, o casal teve de pesquisar opções e achou um por R$ 500 para cada, valor que se adequava mais ao orçamento da viagem. Se estivessem viajando em 2023, porém, eles provavelmente gastariam metade, ou menos, desse valor.

E a entrada para o show não foi o único susto dos dois na Argentina: eles já gastaram R$ 15 em um refrigerante de 600 ml e R$ 35 com transporte por aplicativo do bairro de Palermo ao da Recoleta, num trajeto diurno que, garantem, sairia metade do preço no Brasil.

Sabrina Rosário e Bruno Pontes se espantaram com os preços da comida em Buenos Aires Foto: Luciana Taddeo/Estadão

“O que mais me assustou foi a comida, que não esperávamos que fosse tão cara. Tem de ser esperto e pedir comida que sirva os dois. Ou pedir uma cerveja e petiscar, o que é mais barato”, diz o pedagogo, que já acompanhava pelas redes sociais vídeos de brasileiros relatando o aumento dos preços na Argentina.

A turista Célia Figueiredo, do Rio de Janeiro, estava em um cruzeiro e desembarcou em Buenos Aires pela primeira vez, com o filho. Um dos almoços eles fizeram no London City, famoso “café notável”, declarado patrimônio da cidade, na icônica Avenida de Maio. O programa pesou no bolso: um prato de macarrão para dois, com uma água mineral e uma saborizada, totalizou R$ 246.

“Estou achando tudo muito caro. Com esse valor, a gente come melhor no Brasil. Não é real aquela ideia de que a Argentina é barata”, diz a empresária.

De fato, a Argentina baratíssima para o turista, como ocorria nos últimos anos, quando o brasileiro costumava viver “dias de rico”, já não existe. Hoje, é raro sentar em um restaurante sem requintes na Argentina e pagar menos do que 13 mil pesos (o equivalente a cerca de R$ 72) em um prato de comida com bebida sem álcool. Com vinho, o preço sobe pelo menos 11 mil pesos (ou mais R$ 61).

“Pagamos R$ 85 em um hambúrguer e R$ 20 numa água”, diz a servidora pública Ana Paula Oliveira, de Brasília, que tirava foto com os filhos diante da Casa Rosada, sede da presidência argentina. “Já vim em várias oportunidades e era muito diferente, tudo mais acessível. Acabamos de ir ao Uruguai e estamos achando Buenos Aires mais cara do que Montevidéu”, afirma.

Uma corrida de 5 km com transporte por aplicativo durante uma manhã de sábado em Buenos Aires está saindo por cerca de 5 mil pesos (R$ 28), mas numa madrugada pode passar de 19 mil pesos (R$ 105).

Quanto aos vinhos, o Angélica Zapata, vinho bastante procurado por brasileiros, está saindo por algo como 42.700 pesos (R$ 237). Já o El Gran Enemigo, também famoso entre os brasileiros, custa hoje 60.500 pesos (R$ 336). Ainda estão mais baratos que comprar no Brasil, mas esses preços já foram muito mais vantajosos. Em novembro de 2023, eram encontrados por R$ 131 e R$ 257, respectivamente.

Célia Figueiredo com seu filho Lucas Malafaia: 'Aquela ideia de que Argentina é barata não é real' Foto: Luciana Taddeo/Estadão

Nos “kioscos”, lojinhas de guloseimas vistas em muitas esquinas da cidade, um refrigerante de 500 ml está em 1.700 pesos (R$ 9,50) e uma água ou um alfajor, em 1.200 (R$ 6,50). Já numa cafeteria, um cafezinho sai por 2.500 pesos (R$ 14), o café com leite, 4.000 (R$ 22), e uma unidade das famosas medialunas, os croissants argentinos, 1.400 (R$ 8).

Dono de uma agência de turismo receptivo que vende passeios e faz traslados em Buenos Aires, o brasileiro José Veras conta que não foi somente o show de tango que aumentou em dólares. Uma visita a uma vinícola na província de Buenos Aires passou de US$ 50 em outubro para US$ 73 atualmente.

Segundo ele, os turistas brasileiros não estão desmarcando viagens, mas acabam gastando menos dinheiro. “Muita gente opta, por exemplo, por não ir a um show de tango, por achar caro. Em vez disso, saem para jantar”, relata, sobre algumas das mudanças que observou nos últimos meses.

Os aumentos de preços não preocupam somente turistas, mas também os empresários do setor. “Alguns aumentos aqui não têm sentido. E isso traz um desafio muito grande para os empreendedores, para os empresários, autônomos que vendem serviços e passeios na Argentina”, diz a sócia de Veras, Mariel Ramos, também brasileira.

“Às vezes a gente vende um pacote e, quando vai fazer o pagamento, a precificação não fecha com o valor que tínhamos calculado de custos do serviço”, diz ela. “Então para dar certo, é preciso ter muito volume ou muita precaução para não ter um grande prejuízo.”

Mudanças econômicas

O encarecimento para o brasileiro é resultado das mudanças econômicas na Argentina, mas também reflete a desvalorização do real, diz o economista argentino Camilo Tiscornia, diretor da consultoria C&T Asesores Económicos.

O presidente argentino Javier Milei conseguiu diminuir a enorme brecha que havia entre o valor oficial do peso e a moeda negociada no mercado paralelo de câmbio: antes, o dólar oficial, cuja compra é controlada na Argentina, era 300 pesos, enquanto paralelo era vendido a 750. Hoje, o oficial está pouco mais de 1.000, e o paralelo em 1.200.

“Antes, o turista trocava dólares no mercado paralelo e comprava produtos cujos valores estavam alinhados ao câmbio oficial”, diz Tiscornia. “Essa diferença fazia com que a Argentina fosse muito barata para o estrangeiro.”

O efeito também encarecia a viagem dos argentinos para o exterior, algo que hoje em dia se inverteu. A quantidade de turistas que foram ao Brasil saindo do Aeroporto Internacional de Ezeiza, na Grande Buenos Aires, e do Aeroparque Jorge Newbery, na capital, aumentou 12,3% em um ano, e a média de estadia desses viajantes aumentou 10,5%, de acordo com dados oficiais argentinos de novembro.

“Como há mais confiança na política econômica do governo, a brecha entre os tipos de câmbio diminuiu muito”, diz o economista. O resultado foi um peso fortalecido e uma Argentina com inflação em dólares, apesar da desaceleração da inflação na moeda local, que retrocedeu de 25,5% em dezembro de 2023 para 2,4% em novembro.

“Hoje, a inflação em pesos está em cerca de 2,5% e há uma desvalorização cambial de 2%. Então, a inflação em dólares é de 0,5%”, diz Tiscornia. “Estamos em um dos momentos bastante caros da Argentina, mas é um movimento natural diante de preços muito baixos que havia aqui no ano passado. Em algum momento, tinham de aumentar.”

Milei aplica, atualmente, uma desvalorização administrada do peso argentino, denominada crawling peg, de 2% mensais. Embora alguns economistas acreditem que em algum momento será necessário desvalorizar mais a moeda argentina, o presidente argentino afirma que, se a inflação continuar caindo, mexerá mais lentamente no câmbio oficial.

Para os brasileiros, o fenômeno se soma à desvalorização do real, de 27% em 2024. E a previsão, pelo menos por enquanto, não é que os preços irão diminuir.

Ainda é cedo para determinar o impacto no turismo a longo prazo, mas há uma queda na quantidade de turistas brasileiros e dos dias que ficam no país. Em um ano, o número de turistas vindos do Brasil para a Argentina que chegou pelos aeroportos de Ezeiza e Aeroparque caiu 6,8%. Paralelamente, a média de dias de estadia despencou em 25,5% de novembro de 2023 para novembro de 2024, segundo o Instituto Nacional de Estatísticas e Censos.

Para Tiscornia, a grande dúvida que paira é se o atual cenário de preços é a nova normalidade do país, ou se serão feitas correções. Para isso, será preciso acompanhar sinais, como aumento brusco de importações, empresas fechando e o aumento do desemprego. Por enquanto, afirma, as empresas argentinas parecem ter margem para absorver a pressão. “Acredito que esses preços podem se manter”, conclui.

Veja alguns preços de produtos na Argentina:

  • Refrigerante de 500 ml - 1.700 pesos (R$ 9,50)
  • Água 500 mL - 1.200 pesos (R$ 6,50)
  • Alfajor - 1.200 pesos (R$ 6,50)
  • Expresso - 2.500 pesos (R$ 14)
  • Café com leite - 4.000 (R$ 22)
  • Medialuna - 1.400 (R$ 8)
  • Doce de leite (450g) - 9.000 (R$ 50)
  • Bife de chorizo grelhado (400g) - 26.000 (R$ 144)
  • Vinho Angélica Zapata - 42.700 pesos (R$ 237)

BUENOS AIRES - O show de tango costuma ser um programa “obrigatório” na primeira visita turística a Buenos Aires. Mas quase ficou de fora da viagem do pedagogo Bruno Pontes e da enfermeira Sabrina Rosário, casal de Resende, no Rio de Janeiro, por causa do preço da entrada, na casa dos R$ 700 por pessoa.

Para não deixar de ver o show, o casal teve de pesquisar opções e achou um por R$ 500 para cada, valor que se adequava mais ao orçamento da viagem. Se estivessem viajando em 2023, porém, eles provavelmente gastariam metade, ou menos, desse valor.

E a entrada para o show não foi o único susto dos dois na Argentina: eles já gastaram R$ 15 em um refrigerante de 600 ml e R$ 35 com transporte por aplicativo do bairro de Palermo ao da Recoleta, num trajeto diurno que, garantem, sairia metade do preço no Brasil.

Sabrina Rosário e Bruno Pontes se espantaram com os preços da comida em Buenos Aires Foto: Luciana Taddeo/Estadão

“O que mais me assustou foi a comida, que não esperávamos que fosse tão cara. Tem de ser esperto e pedir comida que sirva os dois. Ou pedir uma cerveja e petiscar, o que é mais barato”, diz o pedagogo, que já acompanhava pelas redes sociais vídeos de brasileiros relatando o aumento dos preços na Argentina.

A turista Célia Figueiredo, do Rio de Janeiro, estava em um cruzeiro e desembarcou em Buenos Aires pela primeira vez, com o filho. Um dos almoços eles fizeram no London City, famoso “café notável”, declarado patrimônio da cidade, na icônica Avenida de Maio. O programa pesou no bolso: um prato de macarrão para dois, com uma água mineral e uma saborizada, totalizou R$ 246.

“Estou achando tudo muito caro. Com esse valor, a gente come melhor no Brasil. Não é real aquela ideia de que a Argentina é barata”, diz a empresária.

De fato, a Argentina baratíssima para o turista, como ocorria nos últimos anos, quando o brasileiro costumava viver “dias de rico”, já não existe. Hoje, é raro sentar em um restaurante sem requintes na Argentina e pagar menos do que 13 mil pesos (o equivalente a cerca de R$ 72) em um prato de comida com bebida sem álcool. Com vinho, o preço sobe pelo menos 11 mil pesos (ou mais R$ 61).

“Pagamos R$ 85 em um hambúrguer e R$ 20 numa água”, diz a servidora pública Ana Paula Oliveira, de Brasília, que tirava foto com os filhos diante da Casa Rosada, sede da presidência argentina. “Já vim em várias oportunidades e era muito diferente, tudo mais acessível. Acabamos de ir ao Uruguai e estamos achando Buenos Aires mais cara do que Montevidéu”, afirma.

Uma corrida de 5 km com transporte por aplicativo durante uma manhã de sábado em Buenos Aires está saindo por cerca de 5 mil pesos (R$ 28), mas numa madrugada pode passar de 19 mil pesos (R$ 105).

Quanto aos vinhos, o Angélica Zapata, vinho bastante procurado por brasileiros, está saindo por algo como 42.700 pesos (R$ 237). Já o El Gran Enemigo, também famoso entre os brasileiros, custa hoje 60.500 pesos (R$ 336). Ainda estão mais baratos que comprar no Brasil, mas esses preços já foram muito mais vantajosos. Em novembro de 2023, eram encontrados por R$ 131 e R$ 257, respectivamente.

Célia Figueiredo com seu filho Lucas Malafaia: 'Aquela ideia de que Argentina é barata não é real' Foto: Luciana Taddeo/Estadão

Nos “kioscos”, lojinhas de guloseimas vistas em muitas esquinas da cidade, um refrigerante de 500 ml está em 1.700 pesos (R$ 9,50) e uma água ou um alfajor, em 1.200 (R$ 6,50). Já numa cafeteria, um cafezinho sai por 2.500 pesos (R$ 14), o café com leite, 4.000 (R$ 22), e uma unidade das famosas medialunas, os croissants argentinos, 1.400 (R$ 8).

Dono de uma agência de turismo receptivo que vende passeios e faz traslados em Buenos Aires, o brasileiro José Veras conta que não foi somente o show de tango que aumentou em dólares. Uma visita a uma vinícola na província de Buenos Aires passou de US$ 50 em outubro para US$ 73 atualmente.

Segundo ele, os turistas brasileiros não estão desmarcando viagens, mas acabam gastando menos dinheiro. “Muita gente opta, por exemplo, por não ir a um show de tango, por achar caro. Em vez disso, saem para jantar”, relata, sobre algumas das mudanças que observou nos últimos meses.

Os aumentos de preços não preocupam somente turistas, mas também os empresários do setor. “Alguns aumentos aqui não têm sentido. E isso traz um desafio muito grande para os empreendedores, para os empresários, autônomos que vendem serviços e passeios na Argentina”, diz a sócia de Veras, Mariel Ramos, também brasileira.

“Às vezes a gente vende um pacote e, quando vai fazer o pagamento, a precificação não fecha com o valor que tínhamos calculado de custos do serviço”, diz ela. “Então para dar certo, é preciso ter muito volume ou muita precaução para não ter um grande prejuízo.”

Mudanças econômicas

O encarecimento para o brasileiro é resultado das mudanças econômicas na Argentina, mas também reflete a desvalorização do real, diz o economista argentino Camilo Tiscornia, diretor da consultoria C&T Asesores Económicos.

O presidente argentino Javier Milei conseguiu diminuir a enorme brecha que havia entre o valor oficial do peso e a moeda negociada no mercado paralelo de câmbio: antes, o dólar oficial, cuja compra é controlada na Argentina, era 300 pesos, enquanto paralelo era vendido a 750. Hoje, o oficial está pouco mais de 1.000, e o paralelo em 1.200.

“Antes, o turista trocava dólares no mercado paralelo e comprava produtos cujos valores estavam alinhados ao câmbio oficial”, diz Tiscornia. “Essa diferença fazia com que a Argentina fosse muito barata para o estrangeiro.”

O efeito também encarecia a viagem dos argentinos para o exterior, algo que hoje em dia se inverteu. A quantidade de turistas que foram ao Brasil saindo do Aeroporto Internacional de Ezeiza, na Grande Buenos Aires, e do Aeroparque Jorge Newbery, na capital, aumentou 12,3% em um ano, e a média de estadia desses viajantes aumentou 10,5%, de acordo com dados oficiais argentinos de novembro.

“Como há mais confiança na política econômica do governo, a brecha entre os tipos de câmbio diminuiu muito”, diz o economista. O resultado foi um peso fortalecido e uma Argentina com inflação em dólares, apesar da desaceleração da inflação na moeda local, que retrocedeu de 25,5% em dezembro de 2023 para 2,4% em novembro.

“Hoje, a inflação em pesos está em cerca de 2,5% e há uma desvalorização cambial de 2%. Então, a inflação em dólares é de 0,5%”, diz Tiscornia. “Estamos em um dos momentos bastante caros da Argentina, mas é um movimento natural diante de preços muito baixos que havia aqui no ano passado. Em algum momento, tinham de aumentar.”

Milei aplica, atualmente, uma desvalorização administrada do peso argentino, denominada crawling peg, de 2% mensais. Embora alguns economistas acreditem que em algum momento será necessário desvalorizar mais a moeda argentina, o presidente argentino afirma que, se a inflação continuar caindo, mexerá mais lentamente no câmbio oficial.

Para os brasileiros, o fenômeno se soma à desvalorização do real, de 27% em 2024. E a previsão, pelo menos por enquanto, não é que os preços irão diminuir.

Ainda é cedo para determinar o impacto no turismo a longo prazo, mas há uma queda na quantidade de turistas brasileiros e dos dias que ficam no país. Em um ano, o número de turistas vindos do Brasil para a Argentina que chegou pelos aeroportos de Ezeiza e Aeroparque caiu 6,8%. Paralelamente, a média de dias de estadia despencou em 25,5% de novembro de 2023 para novembro de 2024, segundo o Instituto Nacional de Estatísticas e Censos.

Para Tiscornia, a grande dúvida que paira é se o atual cenário de preços é a nova normalidade do país, ou se serão feitas correções. Para isso, será preciso acompanhar sinais, como aumento brusco de importações, empresas fechando e o aumento do desemprego. Por enquanto, afirma, as empresas argentinas parecem ter margem para absorver a pressão. “Acredito que esses preços podem se manter”, conclui.

Veja alguns preços de produtos na Argentina:

  • Refrigerante de 500 ml - 1.700 pesos (R$ 9,50)
  • Água 500 mL - 1.200 pesos (R$ 6,50)
  • Alfajor - 1.200 pesos (R$ 6,50)
  • Expresso - 2.500 pesos (R$ 14)
  • Café com leite - 4.000 (R$ 22)
  • Medialuna - 1.400 (R$ 8)
  • Doce de leite (450g) - 9.000 (R$ 50)
  • Bife de chorizo grelhado (400g) - 26.000 (R$ 144)
  • Vinho Angélica Zapata - 42.700 pesos (R$ 237)

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