BRASÍLIA - O economista Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central e sócio da Gávea Investimentos, recebeu com surpresa a notícia de que a agência de classificação de risco americana Moody´s melhorou a perspectiva da nota de crédito do governo brasileiro. Segundo ele, pelo lado fiscal, o Brasil deveria ter sido rebaixado, assim como vários outros países do mundo, como os Estados Unidos, que têm se descuidado no controle das contas públicas.
“Fiquei surpreso com a decisão da Moody’s de dar upgrade ao Brasil. Essa classificação tem a ver com a capacidade de o País honrar seus compromissos externos. Mas, fora isso, acho que o Brasil deveria ter sido rebaixado. Temos uma deterioração explícita, mas já muito bem percebida, no campo das finanças públicas”, afirmou.
Armínio entende que o Congresso tem tido “muito poder e pouca responsabilidade” com a questão fiscal, e teme que a piora das contas públicas possa levar a uma reversão não só econômica, mas também política, mais à frente. “Se for uma reversão (política) moderada, tudo bem. Sair da centro-esquerda para a centro-direita. Mas se for um governo que caminha mais para a esquerda e produza uma reação para a extrema-direita, aí seria uma desgraça”, disse.
O economista entende que não é possível enxergar uma trajetória de progresso na área fiscal até agora. “Fui um dos primeiros a apoiar publicamente o arcabouço que o ministro Fernando Haddad apresentou, essencialmente porque o que ele fez foi um movimento em direção contrária ao que o presidente da República vinha defendendo. Foi admirável. Mas não está dando certo”, disse.
Leia a seguir os principais pontos da entrevista:
Nos últimos 30 dias, o Banco Central americano indicou que os juros vão permanecer elevados, a equipe econômica no Brasil piorou as metas fiscais, mas a Moody’s elevou a perspectiva da nota de crédito do Brasil. Qual a síntese desses eventos?
Fiquei surpreso com a decisão da Moody’s de dar upgrade ao Brasil. Essa classificação tem a ver com a capacidade de o país honrar os seus compromissos externos. E, nesse contexto, um país como o nosso, onde o governo tem pouca dívida externa, muita reserva cambial, taxa de câmbio flutuante, talvez dê para entender. Mas, fora isso, acho que o Brasil deveria ter sido rebaixado. Temos uma deterioração explícita, mas já muito bem percebida, no campo das finanças públicas.
Com outros países piorando o fiscal, principalmente os desenvolvidos, o Brasil não fica melhor de forma comparativa, o rating não leva isso em consideração?
Acho que não é uma questão comparativa.
Mas então não teria de rebaixar todo mundo, já que vários países, como os EUA, estão gastando mais?
De fato, eu vejo um rebaixamento encomendado para vários países do mundo. O mercado em parte reflete essa situação. Hoje temos a Alemanha, mais um ou outro segurando a barra (do fiscal).
Os EUA também estão com déficit fiscal, juros altos, financiando guerras. Que contexto é esse?
Os EUA abusaram, agiram como se as taxas de juros fossem para sempre negativas em termos reais. O que foi uma péssima gestão de risco. E agora estão pagando o preço. O próprio título do Tesouro americano teve uma forte alta de juros, não faz muito tempo. E por quê? Em parte vem do agigantamento do endividamento público americano. Outros países têm problemas dessa natureza, que têm sido administrados, mas não há garantia de que a situação vai seguir razoavelmente bem comportada, sobretudo quando surgem emergências como a pandemia, guerras, que exigem uma certa folga fiscal para lidar com esses momentos.
O Brasil fez muitas reformas desde 2016, e a agência cita o fortalecimento das instituições. Não é exagerado o País estar a dois degraus do grau de investimento?
Pode ser que sim, quando a gente olha apenas para o risco soberano. Mas o que me surpreendeu foi isso acontecer quando vejo as coisas piorando. De fato, do governo Temer para cá, fica muito claro que reformas importantes aconteceram. Mas, ao mesmo tempo, quando se presta atenção na cacofonia que tem sido o debate público, sobretudo nos sinais que o próprio governo vem dando, quase todas essas reformas foram questionadas. Hoje (sexta-feira) saiu um relatório do Ipea da maior importância, mostrando que a Previdência segue muito deficitária, a despeito da boa reforma feita.
E o governo Lula ainda indexou o salário mínimo, que pressiona a Previdência.
Há uma dificuldade escancarada na área fiscal. Não tem sido uma trajetória de progresso. Não foi até agora. Fui um dos primeiros a apoiar publicamente o arcabouço que o ministro Fernando Haddad apresentou, essencialmente porque o que ele fez foi um movimento em direção contrária ao que o presidente da República vinha defendendo. Foi admirável. Mas não está dando certo. E aí o que vem com essa realidade? Um exemplo: o investimento como proporção do PIB no ano passado foi de 16,5%. É muito baixo, sinal de que o ambiente de negócios vai mal. O Brasil não é a Venezuela nem a Argentina, mas não há nada que sinalize que vamos entrar em um processo de crescimento mais acelerado e sustentável.
Uma diferença para esses países é que nosso balanço de pagamentos está equilibrado.
Mesmo no balanço de pagamentos, com os preços que nós temos hoje para as muitas commodities que nós exportamos, eu esperaria uma situação melhor. Também não é um sinal de saúde absoluta. É um setor extremamente bem sucedido. Tem o que a natureza nos deu. Mas temos déficit em conta corrente de 1,5% do PIB, com o País crescendo pouco, nada muito brilhante.
Quando conversamos com técnicos da equipe econômica em Brasília, há a sensação de que eles querem fazer o ajuste, mas não há respaldo da Presidência. Como o sr. vê a atuação dos ministros Fernando Haddad e Simone Tebet para conduzir essa agenda?
Quando o ministro da Fazenda diz que a carga tributária não vai aumentar, e o presidente quer que o gasto aumente, na aritmética o resultado não fecha. Eu não sou dos que advogam por um Estado mínimo, nem quero um Estado pequeno. Mas o Estado tem de ser eficaz, e aí entra o trabalho do Ministério do Planejamento, que me parece positivo. Destacam-se as revisões de gastos e o trabalho de avaliação de políticas conduzidos pelo secretário Sérgio Firpo, que é um técnico de mão cheia, um acadêmico renomado.
O ministro Fernando Haddad reconhece que a economia é crucial para a reeleição. Teme o risco de que uma piora na área possa abrir espaço para a extrema-direita em 2026?
É preciso ser muito ingênuo para acreditar que essa possibilidade não existe. Essa preocupação pode levar o governo a uma política expansionista, que dependeria de uma colaboração com o Banco Central. Mas esse mecanismo está sendo acionado muito cedo, podendo sair pela culatra antes das eleições.
Que mecanismo?
Um afrouxamento fiscal colossal. A vida é apertada, as demandas sociais são legítimas, tudo isso dificulta a vida do governante. Ele tem de ter muito sangue frio, tem de ter um entendimento muito sofisticado das relações de causa e efeito para tomar as decisões adequadas para a sociedade e o povo, e não para agradar os banqueiros, como dizem alguns.
O teto do arcabouço vai ter de ser flexibilizado, para conter as despesas que estão indexadas, como salário mínimo e pisos da saúde e educação?
Essa situação que nós temos espelha um problema enorme de falta de prioridade do gasto público. Temos também um Congresso que tem muito poder e pouca responsabilidade. É um quadro frágil. Em algum momento vai ter de ser repensado, mas temo que não aconteça durante o atual governo. E temo que isso possa lá na frente gerar uma frustração econômica e uma reversão política.
Qual o grau desse risco?
Se for uma reversão (política) moderada, tudo bem. Sair da centro-esquerda para a centro-direita. Acho normal e até desejável que haja esse pêndulo. Mas se for um governo que caminha mais para a esquerda e produza uma reação para a extrema-direita, aí seria uma desgraça. Já disse algumas vezes que o pêndulo é saudável e desejável, a bola de demolição é que não é. Se o pêndulo for curto, excelente. Se não, estamos tratando de bola de demolição.
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Como fica o Banco Central nessa conjuntura? Temos reunião do Copom na terça e quarta-feira, e há sinais de que o ritmo de corte da Selic pode ser reduzido.
Tenho uma avaliação muito positiva do que o BC vem fazendo, mas me parece que em um momento como este, e aí vale para o mundo inteiro, ele andou se comprometendo desnecessariamente. Deveria ser suficiente para o funcionamento da economia que o BC mantivesse o seu compromisso com a meta. E a meta é 3%, não é 3,5% (como apontam as expectativas do Boletim Focus). Desvios da meta começam pequenos, mas depois ninguém sabe onde vai parar. Eu acho que o BC fez bem em dar uma freada de arrumação. Não tenho muito como não cobrar ajuda do lado fiscal, houve uma deterioração fiscal enorme no primeiro ano de governo. Não vejo saída nem para o BC nem para o Fed (Federal Reserve, o banco central americano), que não a que eles próprios tomaram (de cautela).
Como assim?
Com a política fiscal mais frouxa, a política monetária precisa ser mais apertada. Como a taxa de juros necessária para que a meta seja cumprida está muito alta, a conclusão lógica e mandatória é de que o Banco Central precisa de ajuda. E a única ajuda disponível está no fiscal.
Como vê a transição na presidência do BC. É melhor acelerar o processo?
Não vejo vantagem em acelerar muito esse processo. Se estivesse no BC, na presidência, não entenderia isso como vantajoso. Não tem um prazo razoável, mas são poucos meses para o anúncio. Na verdade, não acho que seja uma grande questão, desde que o próximo presidente do BC seja sabatinado antes do final do ano.
Vamos começar a ver decisões divididas no Copom sobre a taxa Selic?
Os sinais que o BC dá já incluem alguma divergência. Se for de fato uma divergência séria, acho importante que seja compartilhada. Acho que não vai mudar muito o funcionamento. Só pode mudar em caso de uma decisão um tanto irresponsável - aí acho que alguns membros do Copom podem querer se proteger.
O governo pode nomear um novo presidente que queira forçar os juros para baixo?
Além da nova lei, existem dois fatores que jogam a favor de uma certa disciplina na condução da política monetária. Um é o próprio mercado, que pode, sentindo um cheirinho da heterodoxia, falta de comprometimento, ou até de otimismo exagerado, ter uma reação que pode ajudar a limitar o dano. O segundo é mais forte, mas em geral não aparece logo, que é a própria inflação voltar.
O governo enviou a regulamentação da reforma tributária, qual sua visão sobre o projeto?
Considero um grande avanço, mas tenho alguns receios. Li recentemente no Estadão um artigo do Felipe Salto, bem crítico de alguns aspectos. Me assusta o governo não ter condições de responder, porque se tivesse, responderia. Refiro-me a alguns aspectos da governança e da concentração de ajustes ao final do longo período de transição. Vai ser um percurso difícil.