BRASÍLIA – Indefinições dentro do Congresso e na negociação com empresas, além de uma arrecadação mais forte no início do ano, servirão de carta na manga para que o governo evite um bloqueio expressivo de gastos no Orçamento de 2024 já em março – o que aumentaria a pressão política pela revisão da meta de déficit zero, estabelecida pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Na prática, essas incertezas dão um fôlego à equipe econômica e jogam para frente essa discussão.
O primeiro relatório bimestral de receitas e despesas do ano, previsto para o dia 22, vinha sendo considerado pelos especialistas em contas públicas como “a hora da verdade” sobre a meta fiscal e o grande teste de Haddad. Isso porque, na ocasião, os técnicos terão de apontar, formalmente, se o alvo fiscal será ou não cumprido. E, em caso de sinalização de descumprimento, anunciar um contingenciamento (bloqueio preventivo de despesas) – o que poderia afetar investimentos, como o PAC, além de emendas parlamentares e projetos de ministérios.
Só que diversas incertezas orçamentárias – somadas a uma arrecadação mais forte que o previsto em janeiro e em linha com o esperado em fevereiro – devem adiar esse teste, possivelmente até para o segundo semestre, dando sobrevida à meta atual.
A lista de indefinições é encabeçada pela Medida Provisória (MP) que extingue o Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (Perse). O texto também anula benefícios previdenciários a municípios e limita compensações tributárias de empresas. Ou seja, três ações que, enquanto vigentes, possibilitam ao governo prever arrecadações mais expressivas neste ano.
O problema é que a MP já nasceu envolta em polêmica, sendo editada no apagar das luzes de 2023, à revelia do Congresso. Sua sobrevida, portanto, deve ser curta, apenas o suficiente para trazer alívio fiscal nesse primeiro relatório, uma vez que o governo irá enviar projetos de lei sobre esses temas.
Prova disso é que o governo já teve de recuar na reoneração da folha de pagamentos de 17 setores da economia, que também estava prevista na mesma MP, mas foi anulada devido à pressão de parlamentares e empresários – e agora será rediscutida via projeto de lei.
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“Na prática, para o (relatório) bimestral, como a MP segue vigente, isso ajuda o governo a contar com a receita proveniente desse ‘combo’, ainda que a gente saiba que, no futuro próximo, isso vai mudar”, afirma o economista Gabriel Leal de Barros, sócio da Ryo Asset e ex-diretor da Instituição Fiscal Independente (IFI).
Como mostrou o Estadão, o governo já admite que não será possível acabar com o Perse e trabalha na construção de um meio-termo, cujo impacto fiscal ficaria restrito a R$ 8 bilhões em 2024, ante R$ 13,2 bilhões no ano passado. O benefício aos municípios também é alvo de renegociação e lideranças partidárias são enfáticas ao dizer que dificilmente o Congresso irá contra os prefeitos em ano de eleição.
Emendas, ferrovias e Previdência
A lista de indefinições orçamentárias ainda é composta pelo veto do presidente Luiz Inácio Lula da Silva a R$ 5,6 bilhões em emendas de comissão, alvo de críticas ferozes dos parlamentares. A análise desse dispositivo pelo Congresso, porém, só deve ocorrer após o bimestral de março.
Outro item cujo desfecho foi postergado para depois da divulgação do relatório é a cobrança de R$ 25,7 bilhões da Vale em outorgas não pagas na renovação antecipada de concessões ferroviárias, revelada pelo Estadão. O valor está previsto no Orçamento, mas pode ser parcialmente frustrado, como já ocorreu em negociação similar com a MRS Logística, cujo montante pago ficou abaixo das estimativas do governo.
Os especialistas em contas públicas também destacam a subestimativa de despesas da Previdência, que vem reduzindo o patamar de gastos obrigatórios. Barros, da Ryo Asset, projeta ao menos R$ 20 bilhões de defasagem. Tiago Sbardelotto, economista da XP e auditor licenciado do Tesouro Nacional, calcula cerca de R$ 25 bilhões, somando Previdência e Benefício de Prestação Continuada (BPC).
O Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) tem feito uma revisão nos benefícios, inclusive com uso de inteligência artificial no combate a fraudes. O Ministério da Previdência Social projeta uma economia de R$ 10 bilhões decorrente dessas medidas. Pelo Orçamento, a meta é reduzir essas despesas em, ao menos, R$ 12,5 bilhões neste ano – cifra ainda inferior às projeções de defasagem.
Para Sbardelotto, o governo deverá fazer uma correção apenas parcial desses números referentes à Previdência no próximo relatório bimestral, incorporando somente os valores que vieram acima das expectativas em janeiro e fevereiro. Com isso, ele projeta um bloqueio entre R$ 5 bilhões e R$ 6 bilhões no próximo dia 22 de março.
Felipe Salto, economista-chefe e sócio da Warren Rena, também avalia que o governo deverá contingenciar “muito pouco” nesse início de ano. “Isso poderá dar força política ao Haddad para seguir com o plano de manter a meta fiscal, o que até agora deu bastante certo. Em maio, contudo, haverá um novo teste. E assim a cada bimestre”, diz.
“Se a arrecadação não mantiver o desempenho observado em fevereiro, principalmente, dificilmente será possível chegar perto da banda inferior (-0,25% do PIB) da meta zero”, alerta Salto, que foi secretário de Fazenda do Estado de São Paulo e o primeiro diretor-executivo da IFI. O arcabouço fiscal – nova regra para controle das contas públicas – estabelece uma margem de tolerância para a meta de 0,25 ponto porcentual para cima e para baixo.
Revisão da meta no 2º semestre
Uma reavaliação mais conservadora e realista das receitas e despesas do Orçamento, com provável mudança na meta de déficit zero, só deve ocorrer no segundo semestre, projetam os economistas.
Isso porque, em maio, o governo ainda terá estímulos para adotar premissas otimistas. Trata-se da possibilidade de abertura de um crédito adicional de cerca de R$ 15 bilhões – que, segundo as regras do arcabouço fiscal, só poderá ser aberto se a estimativa de receita for maior que a atual. Logo, não haverá disposição para contingenciamentos expressivos, que seriam contraditórios à abertura de mais espaço para gastos.
“Nós vemos alguns ministros, como a Esther Dweck (da Gestão e Inovação em Serviços Públicos), inclusive já contando com esse dinheiro para reajuste de servidores”, destaca Barros, da Ryo Asset.
Além disso, postergar o debate sobre a meta terá custos políticos ao governo, uma vez que aprovar no Congresso um projeto de flexibilização no segundo semestre será mais difícil por causa das eleições municipais, que dominarão a agenda e os interesses dos parlamentares.
Sbardelotto, da XP, reforça essa visão: “Vemos a mudança da meta ocorrendo mais próximo do 2º semestre, em julho-agosto, quando teremos o terceiro relatório bimestral”. Ele aponta que metade do ano já terá transcorrido e o governo terá uma visão mais precisa sobre a arrecadação. “Além disso, é o momento em que a equipe econômica terá de fazer o Orçamento para 2025″, afirma.
O ex-secretário do Tesouro Nacional e economista da Asa Investments, Jeferson Bittencourt, avalia que o tamanho dos contingenciamentos e bloqueios, ao longo do ano, dependerá essencialmente da disposição do governo em revisar “hipóteses excessivamente otimistas”, que seguem contidas nas projeções. “A principal delas é a arrecadação de R$ 97 bilhões com renegociações de dívidas no âmbito do Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais), PGFN (Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional) e Receita Federal”, afirma.
Ele alerta, porém, que há um custo em sustentar essas hipóteses. “Há uma matriz de responsabilidade, onde cada um coloca o seu CPF nas projeções. Se o tempo passa e o governo não consegue entregar, por exemplo, as transações tributárias, vai ficando custoso ante o TCU (Tribunal de Contas da União) manter essas estimativas”, diz.