‘As pessoas não acreditam mais que o governo terá uma política fiscal sustentável’, diz economista


Para Luiz Fernando Figueiredo, pacote de contenção de gastos a ser anunciado pelo governo pode até impedir que a situação das contas públicas piore até o fim do atual mandato de Lula, em 2026, mas não vai garantir a solução do problema ao longo do tempo

Por José Fucs
Atualização:
Entrevista comLuiz Fernando FigueiredoEx-diretor do Banco Central e presidente do conselho de administração da JiveMauá Investments

O economista Luiz Fernando Figueiredo, ex-diretor do Banco Central e presidente do conselho de administração da JiveMauá Investments, uma empresa de gestão de recursos, não tem ilusão em relação à situação das contas públicas no governo Lula. “As pessoas simplesmente não acreditam mais que esse governo esteja comprometido com uma política fiscal sustentável. Não acreditam porque ele já demonstrou ‘n’ vezes que não está”, afirma.

Segundo Figueiredo, o pacote de contenção de gastos que o governo deve anunciar nestes dias poderá até impedir que haja uma piora do quadro até o fim do atual mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2026, mas não vai resolver o problema fiscal do País ao longo do tempo. “O mercado está tão negativo que, se o governo entregar alguma coisa razoável, vai surpreender positivamente”, diz. “Agora, vamos ver o que vai acontecer na prática, porque não adianta ficar falando, falando, falando, e depois fazer tudo diferente.”

Nesta entrevista ao Estadão, ele fala também sobre a perspectiva de o Banco Central promover novos aumentos de juros, para “esfriar” a economia e conter as pressões inflacionárias, e sobre a “incompatibilidade” da atual política fiscal do governo com a política monetária praticada pela instituição. Para Figueiredo, o próximo presidente da República, seja quem for, terá de realizar um duro ajuste fiscal a partir de 2027, para colocar em ordem as finanças públicas. “O que o Lula recebeu de herança bendita ele vai deixar de herança maldita”, afirma. Confira a seguir os principais trechos da entrevista.

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Como o sr. está vendo a política fiscal no governo Lula?

O governo, como a gente sabe, está expandindo muito os gastos. Isso tem uma série de consequências: no déficit público, no endividamento, nos riscos dos ativos. Agora, há outro aspecto, cujo efeito também é muito negativo, que a gente tem de levar em conta: o governo está expandindo tanto os gastos que a economia está andando mais do que poderia. Hoje, o Brasil está crescendo na faixa de 3% do PIB (Produto Interno Bruto) ao ano e boa parte disso se deve à expansão dos gastos públicos. É algo que os economistas chamam de “impulso fiscal”, que é um indicador que mostra o quanto essa política ajudando a economia a crescer. Em 2023, o impulso fiscal chegou 2% do PIB. Neste ano, ele diminuiu um pouco, mas ainda está entre 1% e 1,5% do PIB, mais para 1,5% do PIB. É muita coisa, considerando que o nosso crescimento potencial, ou seja, o nível de crescimento que o País pode ter sem superaquecer a economia e gerar pressões inflacionárias, é de 2% a 2,5% do PIB ao ano. Do ponto de vista da atividade econômica, isso está tendo um impacto tão grande que o Banco Central já disse algumas vezes que a atual política fiscal é incompatível com a política monetária praticada pela instituição.

O que está levando o Banco Central a dizer que essa gastança promovida pelo governo é incompatível com a política monetária?

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Se o governo expande muito os gastos quando o Banco Central está tentando brecar a economia, para evitar que a atividade econômica fique superaquecida e haja um aumento da inflação, acontece um desequilíbrio. É como se você estivesse num carro em que o motorista acelera e breca ao mesmo tempo. Quando isso ocorre, há um conflito e o carro pode até capotar. Na economia, isso significa que o breque tem de ser mais forte. Se o governo não estivesse acelerando muito a atividade econômica, o Banco Central poderia ser mais gentil no breque. É simples assim. É por isso que, a partir de um juro que já era altíssimo, de 10,5% ao ano, o Banco Central está tendo de subir ainda mais a taxa. Nós estávamos com um juro de 10,5% ao ano e a economia continuava em ritmo acelerando. O Banco Central vinha reduzindo o juro e a inflação estava vindo para baixo. Mas, com essa expansão fiscal toda, a atividade econômica ficou muito mais forte e o Banco Central teve de abortar o processo de corte dos juros. Essa é uma consequência muito negativa de você ter tanta expansão de gasto.

Para Figueiredo, o que está acontecendo com os juros, o dólar e a Bolsa "é um um sintoma de que a gente não está não está fazendo a coisa certa"  Foto: Werther Santana/Estadão

Como isso está afetando o mercado financeiro?

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Esse conjunto de coisas acaba se refletindo nas expectativas, na confiança dos agentes econômicos. O que os mercados estão nos dizendo? Os ativos brasileiros estão nos dizendo que se está praticando uma série de medidas que vão colocar o Brasil lá na frente numa situação muito pior do que a que ele está hoje. O Banco Central ter de parar de reduzir os juros e começar a subir de novo as taxas com a inflação em 4,5% ao ano é uma loucura. Hoje, os títulos de longuíssimo prazo, para 2050, 2060, estão pagando inflação mais 6,70%, 6,80% de juros ao ano. É um absurdo! É um juro que não existe em lugar nenhum do mundo. Em 2024, a Bolsa brasileira está com uma queda em dólar de 22%, enquanto a Bolsa americana está subindo 25% e as Bolsas europeias estão subindo, em média, 5%. A depreciação do real em relação ao dólar está em quase 20% no mesmo período. O que aconteceu com o câmbio é uma barbaridade. E por que tudo isso? Porque todos estão com receio do que vem pela frente. Isso é um sintoma de que a gente não está fazendo a coisa certa. Enquanto o mundo deu uma esfriada, vem reduzindo os juros, baixando a inflação, o Brasil está indo na direção oposta, porque tem feito um conjunto de políticas para o lado errado. Hoje, o Brasil é muito mais dependente do que acontece localmente que do que ocorre lá fora. O País está crescendo 3%, o investimento está até aumentando, embora ainda seja baixo em relação a outros países emergentes, tem um desemprego baixo, mas quando você olha para a frente, não tem como ficar animado. Realmente não tem.

O sr. falou que o governo está fazendo um monte de coisas para o lado errado. Além da expansão dos gastos, o que mais, na sua opinião, o governo tem feito de errado na economia?

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Várias coisas. A primeira é esse intervencionismo gigante nas estatais e onde mais der para ele intervir. O intervencionismo só não está sendo maior porque o Congresso tem barrado o que dá para barrar. Há também uma narrativa muito forte do “nós contra eles”. Eu não sei para quem essa narrativa faz bem, porque para o País não é, certo? A própria briga do presidente Lula com o Banco Central tem sido muito ruim. Outra coisa é a insegurança jurídica crescente que há no País, com uma série de decisões que se tem tomado, inclusive com efeito retroativo, como no caso em que o STF (Supremo Tribunal Federal) decidiu que o ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) deve incidir sobre a base do PIS/Cofins (Programa de Integração Social e Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social). Isso afetou não só o que as empresas pagam, mas também o que deveriam ter pago de imposto.

Agora, o governo vem prometendo há várias semanas um pacote de corte de gastos, que deve sair por estes dias, pelo que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, falou. Como isso deve mudar esse quadro que o sr. traçou?

Finalmente, o governo está olhando para o gasto. Está discutindo um pacote de corte de despesas que, pelo que está sendo dito, parece que será mais para bom do que para ruim. Depois, ainda vai ter de passar pelo Congresso. Dependendo do que vier, já que ainda não foi anunciado, isso pode melhorar um pouco as expectativas. Mas, como até agora só veio o pior, como toda vez que houve muito gasto o governo mudou a meta (de resultado primário) e ainda tirou o excesso de gasto do arcabouço fiscal, está todo mundo querendo ver primeiro o que vai acontecer, para avaliar depois.

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A rigor, decorridos quase dois anos desde a posse do presidente Lula, o governo não cortou nada substancial nas despesas. Isso acaba contribuindo para gerar esse tipo de incerteza em relação à política fiscal, não?

Com certeza. Hoje existe uma negatividade muito grande. As pessoas simplesmente não acreditam mais que esse governo esteja comprometido com uma política fiscal sustentável ao longo do tempo. Não acreditam porque ele já demonstrou “n” vezes que não está. Quando o governo vai lá e tira mais de R$ 100 bilhões do arcabouço para falar que vai cumprir a meta, fica complicado. Ele não está cumprindo a meta. Está gastando R$ 100 bilhões a mais do que podia gastar. Então, para quê serve o arcabouço? Até por conta disso, o governo agora tem uma oportunidade. O mercado está tão negativo que, se o governo entregar alguma coisa razoável, vai surpreender positivamente. Vamos ver o que será anunciado, como é que será esse pacote de contenção de gastos. E vamos ver o que vai acontecer na prática, porque não adianta ficar falando, falando, falando, e depois fazer tudo diferente.

Foi a mudança feita na meta fiscal lá em abril que provocou essa piora tão grande nas expectativas

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O sr. pessoalmente, acredita que essa “surpresa positiva” vai ocorrer?

Eu acho que o governo não irá na direção de resolver o problema e gerar sustentabilidade fiscal no tempo, como eu disse há pouco. Isso não vai acontecer. Mas haverá, sim, na minha visão, uma contenção da piora fiscal. A situação vai continuar ruim, mas, na margem, não vai piorar. Acredito que haverá um esforço para não colocar nada mais fora do arcabouço e para não deixar que aqueles mínimos constitucionais continuem a crescer muito mais do que o arcabouço pode aguentar. Então, até em função do pessimismo que existe hoje, eu acredito que o pacote vai vir mais para positivo do que para negativo. Agora, eu espero que o governo não venha com mais uma tentativa de aumento de arrecadação. Acho que isso não será bem visto. O próprio (deputado Arthur) Lira (presidente da Câmara) falou outro dia: “Olha, vocês vão ter de olhar para o gasto. Não vão conseguir resolver a questão fiscal via arrecadação”. Dito isso, eu acredito que, na margem, o impulso fiscal vai ser menor. Isso vai acabar atrapalhando menos a política monetária. É provável que a gente tenha um processo melhor na política monetária do que a gente está estimando hoje. Eventualmente, o Banco Central não vai precisar subir tanto mais o nível da taxa de juros. Acredito que a taxa básica, que hoje está em 11,25% ao ano, irá até 13%, 13,5% ao ano, mas não muito além disso. Se isso se concretizar, acho possível, até provável, que, no último trimestre do ano que vem, o Banco Central já possa começar a reduzir os juros novamente.

O sr. acredita que esse pacote de corte de gastos vai permitir o cumprimento da meta de zerar o déficit nas contas públicas em 2025?

Pode ser que esse pacote gere, sim, uma situação de maior sustentabilidade fiscal, de pelo menos manter os gastos dentro do arcabouço. Acredito que o governo não vá querer mexer mais nessa meta, não. Foi a mudança feita na meta lá em abril que provocou essa piora tão grande nas expectativas dos agentes econômicos.

Se o Lula não tivesse essa narrativa horrorosa contra o Banco Central, com certeza o cenário hoje seria diferente

Considerando isso que o sr. está colocando, como se encaixa a troca do presidente do Banco Central, em janeiro? Até que ponto o mercado acredita que o Gabriel Galípolo, que foi indicado pelo presidente Lula para substituir o atual presidente da instituição, Roberto Campos Neto, vai manter essa política monetária de alta dos juros, para esfriar um pouco a economia?

Há vários aspectos aí que a gente tem de levar em conta. O primeiro é que o Galípolo já está há quase um ano e meio no Banco Central, como diretor de Política Monetária. Ele tomou um “banho de loja” nesse período, teve um aprendizado grande, com uma turma espetacular. O Roberto e esses caras todos que estão lá hoje são muito bons. Eu estive quatro anos no Banco Central e a cada seis meses eu falava: “Meu deus, como eu aprendi aqui um monte de coisas”. É impressionante o quanto a gente aprende. O segundo aspecto é que o governo tem vindo com uma narrativa muito ruim contra o Banco Central, mas a prática tem sido melhor que a narrativa. E o Galípolo é uma pessoa que tem alguma experiência no mercado e está mostrando que quer tomar decisões pelo lado técnico. Os outros dois diretores indicados pelo atual governo, também. O Galípolo deu uma certa escorregada quando ele disse “não, porque o Lula está topando a independência do Banco Central”. Como assim? O Lula não tem nada a ver com isso. A independência foi uma medida aprovada pelo Congresso. O Banco Central passou a ser um ente de Estado e não mais de governo. Então, quando ele fala um negócio desse você fala “opa, espera aí”. Mas, na prática, ele tem se mostrado firme. Nessa alta de juro, ele tem sido o mais vocal. Agora, nós temos três novos diretores a serem indicados no atual governo e, dependendo do perfil, da história de cada um deles, a gente vai ver se a política monetária daqui para a frente será ok ou se vai ficar comprometida.

Quer dizer, apesar desse histórico relativamente positivo do Galípolo, ainda há dúvidas em relação ao que pode acontecer após a saída do Campos Neto do Banco Central. É isso?

Sem dúvida. Isso só a prática realmente vai demonstrar. É um pouco aquela história: como é que você ganha credibilidade? Vai fazendo coisas corretas que, em algum momento, o pessoal vai falar: “Opa, ele está indo pelo caminho certo”. Se o Lula não tivesse essa narrativa horrorosa contra o Banco Central, com certeza seria diferente. Pode estar certo de que uma parte considerável da alta de juros tem a ver com isso.

Teve também o agravante, se não me engano, de que o Galípolo participou de uma reunião outro dia no Palácio do Planalto com o Lula e com o ministro Fernando Haddad. Isso também gerou ruído no mercado.

Ter esse tipo de reunião às vezes faz parte. Outros presidentes do Banco Central tiveram. Mas ele está perto demais. Você tem de manter uma certa distância. O próprio Roberto Campos mantinha uma certa distância, para deixar claro que era independente.

Quem for governar o País a partir de 2027 terá de fazer um enorme ajuste nas contas públicas

Para finalizar, olhando para a frente, levando em conta tudo isso que o sr. está falando, como o sr. acha que estará a questão fiscal no fim do governo Lula, em 2026?

Como eu falei, não acredito que esse governo vá tratar a questão fiscal do jeito que é necessário. Não acredito. Eu acho que, no máximo, ele pode conter uma piora expressiva. Isso quer dizer que quem for governar o País a partir de 2027 terá de fazer um enorme ajuste nas contas públicas, para tornar a política fiscal sustentável. É como aquele médico com quem você tem de marcar uma consulta com muita antecedência. A gente já tem uma consulta marcada com o médico para 2027. Considerando que o déficit primário do País está na faixa de 0,5% do PIB ao ano, isso significa que a gente precisa de um superávit em torno de 2% a 2,5% do PIB para que a dívida pública pare de crescer. Nós estamos falando, então, de um ajuste fiscal de mais ou menos R$ 250 bilhões. É claro que isso não será feito num ano só, mas terá de começar, de um jeito ou de outro, em 2027. Ou nós vamos começar a fazer um ajuste que vai tornar o nosso endividamento sustentável ou a inflação vai subir se o novo governo não estiver focado nisso. Uma das duas coisas vai acontecer. Se a gente faltar na consulta com o médico, a gente vai pegar uma baita pneumonia. Agora, se a gente for ao médico, começar a tomar um remédio para combater o problema, eventualmente isso vai ser uma gripe que vai passar. Eu acho que não tem conversa. Isso vai ter de acontecer.

Por que o sr. diz que a gente terá de fazer esse ajuste de qualquer forma a partir de 2027?

Porque a nossa dívida pública já estará num nível bem superior a 80% de PIB. E, como a gente tem um custo muito alto para rolar a dívida, não tem jeito. Se a gente tivesse uma política fiscal razoável, que apontasse para sustentabilidade, o juro cairia bastante e o próprio custo de rolagem da dívida, também. Só que não é isso o que acontece. O Brasil teima em ir sempre para o lado errado, de ficar sempre à beira do precipício, sendo que seria muito mais fácil se fizesse o contrário. Por isso, é que a gente tem um juro real de 7%, 8%, 9% ao ano. É uma loucura!

O sr. está dizendo, então, que o próximo presidente, a ser eleito em 2026, seja quem for, vai receber uma herança maldita do ponto de vista fiscal?

Exatamente. O que o Lula recebeu de herança bendita ele vai deixar de herança maldita.

O economista Luiz Fernando Figueiredo, ex-diretor do Banco Central e presidente do conselho de administração da JiveMauá Investments, uma empresa de gestão de recursos, não tem ilusão em relação à situação das contas públicas no governo Lula. “As pessoas simplesmente não acreditam mais que esse governo esteja comprometido com uma política fiscal sustentável. Não acreditam porque ele já demonstrou ‘n’ vezes que não está”, afirma.

Segundo Figueiredo, o pacote de contenção de gastos que o governo deve anunciar nestes dias poderá até impedir que haja uma piora do quadro até o fim do atual mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2026, mas não vai resolver o problema fiscal do País ao longo do tempo. “O mercado está tão negativo que, se o governo entregar alguma coisa razoável, vai surpreender positivamente”, diz. “Agora, vamos ver o que vai acontecer na prática, porque não adianta ficar falando, falando, falando, e depois fazer tudo diferente.”

Nesta entrevista ao Estadão, ele fala também sobre a perspectiva de o Banco Central promover novos aumentos de juros, para “esfriar” a economia e conter as pressões inflacionárias, e sobre a “incompatibilidade” da atual política fiscal do governo com a política monetária praticada pela instituição. Para Figueiredo, o próximo presidente da República, seja quem for, terá de realizar um duro ajuste fiscal a partir de 2027, para colocar em ordem as finanças públicas. “O que o Lula recebeu de herança bendita ele vai deixar de herança maldita”, afirma. Confira a seguir os principais trechos da entrevista.

Como o sr. está vendo a política fiscal no governo Lula?

O governo, como a gente sabe, está expandindo muito os gastos. Isso tem uma série de consequências: no déficit público, no endividamento, nos riscos dos ativos. Agora, há outro aspecto, cujo efeito também é muito negativo, que a gente tem de levar em conta: o governo está expandindo tanto os gastos que a economia está andando mais do que poderia. Hoje, o Brasil está crescendo na faixa de 3% do PIB (Produto Interno Bruto) ao ano e boa parte disso se deve à expansão dos gastos públicos. É algo que os economistas chamam de “impulso fiscal”, que é um indicador que mostra o quanto essa política ajudando a economia a crescer. Em 2023, o impulso fiscal chegou 2% do PIB. Neste ano, ele diminuiu um pouco, mas ainda está entre 1% e 1,5% do PIB, mais para 1,5% do PIB. É muita coisa, considerando que o nosso crescimento potencial, ou seja, o nível de crescimento que o País pode ter sem superaquecer a economia e gerar pressões inflacionárias, é de 2% a 2,5% do PIB ao ano. Do ponto de vista da atividade econômica, isso está tendo um impacto tão grande que o Banco Central já disse algumas vezes que a atual política fiscal é incompatível com a política monetária praticada pela instituição.

O que está levando o Banco Central a dizer que essa gastança promovida pelo governo é incompatível com a política monetária?

Se o governo expande muito os gastos quando o Banco Central está tentando brecar a economia, para evitar que a atividade econômica fique superaquecida e haja um aumento da inflação, acontece um desequilíbrio. É como se você estivesse num carro em que o motorista acelera e breca ao mesmo tempo. Quando isso ocorre, há um conflito e o carro pode até capotar. Na economia, isso significa que o breque tem de ser mais forte. Se o governo não estivesse acelerando muito a atividade econômica, o Banco Central poderia ser mais gentil no breque. É simples assim. É por isso que, a partir de um juro que já era altíssimo, de 10,5% ao ano, o Banco Central está tendo de subir ainda mais a taxa. Nós estávamos com um juro de 10,5% ao ano e a economia continuava em ritmo acelerando. O Banco Central vinha reduzindo o juro e a inflação estava vindo para baixo. Mas, com essa expansão fiscal toda, a atividade econômica ficou muito mais forte e o Banco Central teve de abortar o processo de corte dos juros. Essa é uma consequência muito negativa de você ter tanta expansão de gasto.

Para Figueiredo, o que está acontecendo com os juros, o dólar e a Bolsa "é um um sintoma de que a gente não está não está fazendo a coisa certa"  Foto: Werther Santana/Estadão

Como isso está afetando o mercado financeiro?

Esse conjunto de coisas acaba se refletindo nas expectativas, na confiança dos agentes econômicos. O que os mercados estão nos dizendo? Os ativos brasileiros estão nos dizendo que se está praticando uma série de medidas que vão colocar o Brasil lá na frente numa situação muito pior do que a que ele está hoje. O Banco Central ter de parar de reduzir os juros e começar a subir de novo as taxas com a inflação em 4,5% ao ano é uma loucura. Hoje, os títulos de longuíssimo prazo, para 2050, 2060, estão pagando inflação mais 6,70%, 6,80% de juros ao ano. É um absurdo! É um juro que não existe em lugar nenhum do mundo. Em 2024, a Bolsa brasileira está com uma queda em dólar de 22%, enquanto a Bolsa americana está subindo 25% e as Bolsas europeias estão subindo, em média, 5%. A depreciação do real em relação ao dólar está em quase 20% no mesmo período. O que aconteceu com o câmbio é uma barbaridade. E por que tudo isso? Porque todos estão com receio do que vem pela frente. Isso é um sintoma de que a gente não está fazendo a coisa certa. Enquanto o mundo deu uma esfriada, vem reduzindo os juros, baixando a inflação, o Brasil está indo na direção oposta, porque tem feito um conjunto de políticas para o lado errado. Hoje, o Brasil é muito mais dependente do que acontece localmente que do que ocorre lá fora. O País está crescendo 3%, o investimento está até aumentando, embora ainda seja baixo em relação a outros países emergentes, tem um desemprego baixo, mas quando você olha para a frente, não tem como ficar animado. Realmente não tem.

O sr. falou que o governo está fazendo um monte de coisas para o lado errado. Além da expansão dos gastos, o que mais, na sua opinião, o governo tem feito de errado na economia?

Várias coisas. A primeira é esse intervencionismo gigante nas estatais e onde mais der para ele intervir. O intervencionismo só não está sendo maior porque o Congresso tem barrado o que dá para barrar. Há também uma narrativa muito forte do “nós contra eles”. Eu não sei para quem essa narrativa faz bem, porque para o País não é, certo? A própria briga do presidente Lula com o Banco Central tem sido muito ruim. Outra coisa é a insegurança jurídica crescente que há no País, com uma série de decisões que se tem tomado, inclusive com efeito retroativo, como no caso em que o STF (Supremo Tribunal Federal) decidiu que o ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) deve incidir sobre a base do PIS/Cofins (Programa de Integração Social e Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social). Isso afetou não só o que as empresas pagam, mas também o que deveriam ter pago de imposto.

Agora, o governo vem prometendo há várias semanas um pacote de corte de gastos, que deve sair por estes dias, pelo que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, falou. Como isso deve mudar esse quadro que o sr. traçou?

Finalmente, o governo está olhando para o gasto. Está discutindo um pacote de corte de despesas que, pelo que está sendo dito, parece que será mais para bom do que para ruim. Depois, ainda vai ter de passar pelo Congresso. Dependendo do que vier, já que ainda não foi anunciado, isso pode melhorar um pouco as expectativas. Mas, como até agora só veio o pior, como toda vez que houve muito gasto o governo mudou a meta (de resultado primário) e ainda tirou o excesso de gasto do arcabouço fiscal, está todo mundo querendo ver primeiro o que vai acontecer, para avaliar depois.

A rigor, decorridos quase dois anos desde a posse do presidente Lula, o governo não cortou nada substancial nas despesas. Isso acaba contribuindo para gerar esse tipo de incerteza em relação à política fiscal, não?

Com certeza. Hoje existe uma negatividade muito grande. As pessoas simplesmente não acreditam mais que esse governo esteja comprometido com uma política fiscal sustentável ao longo do tempo. Não acreditam porque ele já demonstrou “n” vezes que não está. Quando o governo vai lá e tira mais de R$ 100 bilhões do arcabouço para falar que vai cumprir a meta, fica complicado. Ele não está cumprindo a meta. Está gastando R$ 100 bilhões a mais do que podia gastar. Então, para quê serve o arcabouço? Até por conta disso, o governo agora tem uma oportunidade. O mercado está tão negativo que, se o governo entregar alguma coisa razoável, vai surpreender positivamente. Vamos ver o que será anunciado, como é que será esse pacote de contenção de gastos. E vamos ver o que vai acontecer na prática, porque não adianta ficar falando, falando, falando, e depois fazer tudo diferente.

Foi a mudança feita na meta fiscal lá em abril que provocou essa piora tão grande nas expectativas

O sr. pessoalmente, acredita que essa “surpresa positiva” vai ocorrer?

Eu acho que o governo não irá na direção de resolver o problema e gerar sustentabilidade fiscal no tempo, como eu disse há pouco. Isso não vai acontecer. Mas haverá, sim, na minha visão, uma contenção da piora fiscal. A situação vai continuar ruim, mas, na margem, não vai piorar. Acredito que haverá um esforço para não colocar nada mais fora do arcabouço e para não deixar que aqueles mínimos constitucionais continuem a crescer muito mais do que o arcabouço pode aguentar. Então, até em função do pessimismo que existe hoje, eu acredito que o pacote vai vir mais para positivo do que para negativo. Agora, eu espero que o governo não venha com mais uma tentativa de aumento de arrecadação. Acho que isso não será bem visto. O próprio (deputado Arthur) Lira (presidente da Câmara) falou outro dia: “Olha, vocês vão ter de olhar para o gasto. Não vão conseguir resolver a questão fiscal via arrecadação”. Dito isso, eu acredito que, na margem, o impulso fiscal vai ser menor. Isso vai acabar atrapalhando menos a política monetária. É provável que a gente tenha um processo melhor na política monetária do que a gente está estimando hoje. Eventualmente, o Banco Central não vai precisar subir tanto mais o nível da taxa de juros. Acredito que a taxa básica, que hoje está em 11,25% ao ano, irá até 13%, 13,5% ao ano, mas não muito além disso. Se isso se concretizar, acho possível, até provável, que, no último trimestre do ano que vem, o Banco Central já possa começar a reduzir os juros novamente.

O sr. acredita que esse pacote de corte de gastos vai permitir o cumprimento da meta de zerar o déficit nas contas públicas em 2025?

Pode ser que esse pacote gere, sim, uma situação de maior sustentabilidade fiscal, de pelo menos manter os gastos dentro do arcabouço. Acredito que o governo não vá querer mexer mais nessa meta, não. Foi a mudança feita na meta lá em abril que provocou essa piora tão grande nas expectativas dos agentes econômicos.

Se o Lula não tivesse essa narrativa horrorosa contra o Banco Central, com certeza o cenário hoje seria diferente

Considerando isso que o sr. está colocando, como se encaixa a troca do presidente do Banco Central, em janeiro? Até que ponto o mercado acredita que o Gabriel Galípolo, que foi indicado pelo presidente Lula para substituir o atual presidente da instituição, Roberto Campos Neto, vai manter essa política monetária de alta dos juros, para esfriar um pouco a economia?

Há vários aspectos aí que a gente tem de levar em conta. O primeiro é que o Galípolo já está há quase um ano e meio no Banco Central, como diretor de Política Monetária. Ele tomou um “banho de loja” nesse período, teve um aprendizado grande, com uma turma espetacular. O Roberto e esses caras todos que estão lá hoje são muito bons. Eu estive quatro anos no Banco Central e a cada seis meses eu falava: “Meu deus, como eu aprendi aqui um monte de coisas”. É impressionante o quanto a gente aprende. O segundo aspecto é que o governo tem vindo com uma narrativa muito ruim contra o Banco Central, mas a prática tem sido melhor que a narrativa. E o Galípolo é uma pessoa que tem alguma experiência no mercado e está mostrando que quer tomar decisões pelo lado técnico. Os outros dois diretores indicados pelo atual governo, também. O Galípolo deu uma certa escorregada quando ele disse “não, porque o Lula está topando a independência do Banco Central”. Como assim? O Lula não tem nada a ver com isso. A independência foi uma medida aprovada pelo Congresso. O Banco Central passou a ser um ente de Estado e não mais de governo. Então, quando ele fala um negócio desse você fala “opa, espera aí”. Mas, na prática, ele tem se mostrado firme. Nessa alta de juro, ele tem sido o mais vocal. Agora, nós temos três novos diretores a serem indicados no atual governo e, dependendo do perfil, da história de cada um deles, a gente vai ver se a política monetária daqui para a frente será ok ou se vai ficar comprometida.

Quer dizer, apesar desse histórico relativamente positivo do Galípolo, ainda há dúvidas em relação ao que pode acontecer após a saída do Campos Neto do Banco Central. É isso?

Sem dúvida. Isso só a prática realmente vai demonstrar. É um pouco aquela história: como é que você ganha credibilidade? Vai fazendo coisas corretas que, em algum momento, o pessoal vai falar: “Opa, ele está indo pelo caminho certo”. Se o Lula não tivesse essa narrativa horrorosa contra o Banco Central, com certeza seria diferente. Pode estar certo de que uma parte considerável da alta de juros tem a ver com isso.

Teve também o agravante, se não me engano, de que o Galípolo participou de uma reunião outro dia no Palácio do Planalto com o Lula e com o ministro Fernando Haddad. Isso também gerou ruído no mercado.

Ter esse tipo de reunião às vezes faz parte. Outros presidentes do Banco Central tiveram. Mas ele está perto demais. Você tem de manter uma certa distância. O próprio Roberto Campos mantinha uma certa distância, para deixar claro que era independente.

Quem for governar o País a partir de 2027 terá de fazer um enorme ajuste nas contas públicas

Para finalizar, olhando para a frente, levando em conta tudo isso que o sr. está falando, como o sr. acha que estará a questão fiscal no fim do governo Lula, em 2026?

Como eu falei, não acredito que esse governo vá tratar a questão fiscal do jeito que é necessário. Não acredito. Eu acho que, no máximo, ele pode conter uma piora expressiva. Isso quer dizer que quem for governar o País a partir de 2027 terá de fazer um enorme ajuste nas contas públicas, para tornar a política fiscal sustentável. É como aquele médico com quem você tem de marcar uma consulta com muita antecedência. A gente já tem uma consulta marcada com o médico para 2027. Considerando que o déficit primário do País está na faixa de 0,5% do PIB ao ano, isso significa que a gente precisa de um superávit em torno de 2% a 2,5% do PIB para que a dívida pública pare de crescer. Nós estamos falando, então, de um ajuste fiscal de mais ou menos R$ 250 bilhões. É claro que isso não será feito num ano só, mas terá de começar, de um jeito ou de outro, em 2027. Ou nós vamos começar a fazer um ajuste que vai tornar o nosso endividamento sustentável ou a inflação vai subir se o novo governo não estiver focado nisso. Uma das duas coisas vai acontecer. Se a gente faltar na consulta com o médico, a gente vai pegar uma baita pneumonia. Agora, se a gente for ao médico, começar a tomar um remédio para combater o problema, eventualmente isso vai ser uma gripe que vai passar. Eu acho que não tem conversa. Isso vai ter de acontecer.

Por que o sr. diz que a gente terá de fazer esse ajuste de qualquer forma a partir de 2027?

Porque a nossa dívida pública já estará num nível bem superior a 80% de PIB. E, como a gente tem um custo muito alto para rolar a dívida, não tem jeito. Se a gente tivesse uma política fiscal razoável, que apontasse para sustentabilidade, o juro cairia bastante e o próprio custo de rolagem da dívida, também. Só que não é isso o que acontece. O Brasil teima em ir sempre para o lado errado, de ficar sempre à beira do precipício, sendo que seria muito mais fácil se fizesse o contrário. Por isso, é que a gente tem um juro real de 7%, 8%, 9% ao ano. É uma loucura!

O sr. está dizendo, então, que o próximo presidente, a ser eleito em 2026, seja quem for, vai receber uma herança maldita do ponto de vista fiscal?

Exatamente. O que o Lula recebeu de herança bendita ele vai deixar de herança maldita.

O economista Luiz Fernando Figueiredo, ex-diretor do Banco Central e presidente do conselho de administração da JiveMauá Investments, uma empresa de gestão de recursos, não tem ilusão em relação à situação das contas públicas no governo Lula. “As pessoas simplesmente não acreditam mais que esse governo esteja comprometido com uma política fiscal sustentável. Não acreditam porque ele já demonstrou ‘n’ vezes que não está”, afirma.

Segundo Figueiredo, o pacote de contenção de gastos que o governo deve anunciar nestes dias poderá até impedir que haja uma piora do quadro até o fim do atual mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2026, mas não vai resolver o problema fiscal do País ao longo do tempo. “O mercado está tão negativo que, se o governo entregar alguma coisa razoável, vai surpreender positivamente”, diz. “Agora, vamos ver o que vai acontecer na prática, porque não adianta ficar falando, falando, falando, e depois fazer tudo diferente.”

Nesta entrevista ao Estadão, ele fala também sobre a perspectiva de o Banco Central promover novos aumentos de juros, para “esfriar” a economia e conter as pressões inflacionárias, e sobre a “incompatibilidade” da atual política fiscal do governo com a política monetária praticada pela instituição. Para Figueiredo, o próximo presidente da República, seja quem for, terá de realizar um duro ajuste fiscal a partir de 2027, para colocar em ordem as finanças públicas. “O que o Lula recebeu de herança bendita ele vai deixar de herança maldita”, afirma. Confira a seguir os principais trechos da entrevista.

Como o sr. está vendo a política fiscal no governo Lula?

O governo, como a gente sabe, está expandindo muito os gastos. Isso tem uma série de consequências: no déficit público, no endividamento, nos riscos dos ativos. Agora, há outro aspecto, cujo efeito também é muito negativo, que a gente tem de levar em conta: o governo está expandindo tanto os gastos que a economia está andando mais do que poderia. Hoje, o Brasil está crescendo na faixa de 3% do PIB (Produto Interno Bruto) ao ano e boa parte disso se deve à expansão dos gastos públicos. É algo que os economistas chamam de “impulso fiscal”, que é um indicador que mostra o quanto essa política ajudando a economia a crescer. Em 2023, o impulso fiscal chegou 2% do PIB. Neste ano, ele diminuiu um pouco, mas ainda está entre 1% e 1,5% do PIB, mais para 1,5% do PIB. É muita coisa, considerando que o nosso crescimento potencial, ou seja, o nível de crescimento que o País pode ter sem superaquecer a economia e gerar pressões inflacionárias, é de 2% a 2,5% do PIB ao ano. Do ponto de vista da atividade econômica, isso está tendo um impacto tão grande que o Banco Central já disse algumas vezes que a atual política fiscal é incompatível com a política monetária praticada pela instituição.

O que está levando o Banco Central a dizer que essa gastança promovida pelo governo é incompatível com a política monetária?

Se o governo expande muito os gastos quando o Banco Central está tentando brecar a economia, para evitar que a atividade econômica fique superaquecida e haja um aumento da inflação, acontece um desequilíbrio. É como se você estivesse num carro em que o motorista acelera e breca ao mesmo tempo. Quando isso ocorre, há um conflito e o carro pode até capotar. Na economia, isso significa que o breque tem de ser mais forte. Se o governo não estivesse acelerando muito a atividade econômica, o Banco Central poderia ser mais gentil no breque. É simples assim. É por isso que, a partir de um juro que já era altíssimo, de 10,5% ao ano, o Banco Central está tendo de subir ainda mais a taxa. Nós estávamos com um juro de 10,5% ao ano e a economia continuava em ritmo acelerando. O Banco Central vinha reduzindo o juro e a inflação estava vindo para baixo. Mas, com essa expansão fiscal toda, a atividade econômica ficou muito mais forte e o Banco Central teve de abortar o processo de corte dos juros. Essa é uma consequência muito negativa de você ter tanta expansão de gasto.

Para Figueiredo, o que está acontecendo com os juros, o dólar e a Bolsa "é um um sintoma de que a gente não está não está fazendo a coisa certa"  Foto: Werther Santana/Estadão

Como isso está afetando o mercado financeiro?

Esse conjunto de coisas acaba se refletindo nas expectativas, na confiança dos agentes econômicos. O que os mercados estão nos dizendo? Os ativos brasileiros estão nos dizendo que se está praticando uma série de medidas que vão colocar o Brasil lá na frente numa situação muito pior do que a que ele está hoje. O Banco Central ter de parar de reduzir os juros e começar a subir de novo as taxas com a inflação em 4,5% ao ano é uma loucura. Hoje, os títulos de longuíssimo prazo, para 2050, 2060, estão pagando inflação mais 6,70%, 6,80% de juros ao ano. É um absurdo! É um juro que não existe em lugar nenhum do mundo. Em 2024, a Bolsa brasileira está com uma queda em dólar de 22%, enquanto a Bolsa americana está subindo 25% e as Bolsas europeias estão subindo, em média, 5%. A depreciação do real em relação ao dólar está em quase 20% no mesmo período. O que aconteceu com o câmbio é uma barbaridade. E por que tudo isso? Porque todos estão com receio do que vem pela frente. Isso é um sintoma de que a gente não está fazendo a coisa certa. Enquanto o mundo deu uma esfriada, vem reduzindo os juros, baixando a inflação, o Brasil está indo na direção oposta, porque tem feito um conjunto de políticas para o lado errado. Hoje, o Brasil é muito mais dependente do que acontece localmente que do que ocorre lá fora. O País está crescendo 3%, o investimento está até aumentando, embora ainda seja baixo em relação a outros países emergentes, tem um desemprego baixo, mas quando você olha para a frente, não tem como ficar animado. Realmente não tem.

O sr. falou que o governo está fazendo um monte de coisas para o lado errado. Além da expansão dos gastos, o que mais, na sua opinião, o governo tem feito de errado na economia?

Várias coisas. A primeira é esse intervencionismo gigante nas estatais e onde mais der para ele intervir. O intervencionismo só não está sendo maior porque o Congresso tem barrado o que dá para barrar. Há também uma narrativa muito forte do “nós contra eles”. Eu não sei para quem essa narrativa faz bem, porque para o País não é, certo? A própria briga do presidente Lula com o Banco Central tem sido muito ruim. Outra coisa é a insegurança jurídica crescente que há no País, com uma série de decisões que se tem tomado, inclusive com efeito retroativo, como no caso em que o STF (Supremo Tribunal Federal) decidiu que o ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) deve incidir sobre a base do PIS/Cofins (Programa de Integração Social e Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social). Isso afetou não só o que as empresas pagam, mas também o que deveriam ter pago de imposto.

Agora, o governo vem prometendo há várias semanas um pacote de corte de gastos, que deve sair por estes dias, pelo que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, falou. Como isso deve mudar esse quadro que o sr. traçou?

Finalmente, o governo está olhando para o gasto. Está discutindo um pacote de corte de despesas que, pelo que está sendo dito, parece que será mais para bom do que para ruim. Depois, ainda vai ter de passar pelo Congresso. Dependendo do que vier, já que ainda não foi anunciado, isso pode melhorar um pouco as expectativas. Mas, como até agora só veio o pior, como toda vez que houve muito gasto o governo mudou a meta (de resultado primário) e ainda tirou o excesso de gasto do arcabouço fiscal, está todo mundo querendo ver primeiro o que vai acontecer, para avaliar depois.

A rigor, decorridos quase dois anos desde a posse do presidente Lula, o governo não cortou nada substancial nas despesas. Isso acaba contribuindo para gerar esse tipo de incerteza em relação à política fiscal, não?

Com certeza. Hoje existe uma negatividade muito grande. As pessoas simplesmente não acreditam mais que esse governo esteja comprometido com uma política fiscal sustentável ao longo do tempo. Não acreditam porque ele já demonstrou “n” vezes que não está. Quando o governo vai lá e tira mais de R$ 100 bilhões do arcabouço para falar que vai cumprir a meta, fica complicado. Ele não está cumprindo a meta. Está gastando R$ 100 bilhões a mais do que podia gastar. Então, para quê serve o arcabouço? Até por conta disso, o governo agora tem uma oportunidade. O mercado está tão negativo que, se o governo entregar alguma coisa razoável, vai surpreender positivamente. Vamos ver o que será anunciado, como é que será esse pacote de contenção de gastos. E vamos ver o que vai acontecer na prática, porque não adianta ficar falando, falando, falando, e depois fazer tudo diferente.

Foi a mudança feita na meta fiscal lá em abril que provocou essa piora tão grande nas expectativas

O sr. pessoalmente, acredita que essa “surpresa positiva” vai ocorrer?

Eu acho que o governo não irá na direção de resolver o problema e gerar sustentabilidade fiscal no tempo, como eu disse há pouco. Isso não vai acontecer. Mas haverá, sim, na minha visão, uma contenção da piora fiscal. A situação vai continuar ruim, mas, na margem, não vai piorar. Acredito que haverá um esforço para não colocar nada mais fora do arcabouço e para não deixar que aqueles mínimos constitucionais continuem a crescer muito mais do que o arcabouço pode aguentar. Então, até em função do pessimismo que existe hoje, eu acredito que o pacote vai vir mais para positivo do que para negativo. Agora, eu espero que o governo não venha com mais uma tentativa de aumento de arrecadação. Acho que isso não será bem visto. O próprio (deputado Arthur) Lira (presidente da Câmara) falou outro dia: “Olha, vocês vão ter de olhar para o gasto. Não vão conseguir resolver a questão fiscal via arrecadação”. Dito isso, eu acredito que, na margem, o impulso fiscal vai ser menor. Isso vai acabar atrapalhando menos a política monetária. É provável que a gente tenha um processo melhor na política monetária do que a gente está estimando hoje. Eventualmente, o Banco Central não vai precisar subir tanto mais o nível da taxa de juros. Acredito que a taxa básica, que hoje está em 11,25% ao ano, irá até 13%, 13,5% ao ano, mas não muito além disso. Se isso se concretizar, acho possível, até provável, que, no último trimestre do ano que vem, o Banco Central já possa começar a reduzir os juros novamente.

O sr. acredita que esse pacote de corte de gastos vai permitir o cumprimento da meta de zerar o déficit nas contas públicas em 2025?

Pode ser que esse pacote gere, sim, uma situação de maior sustentabilidade fiscal, de pelo menos manter os gastos dentro do arcabouço. Acredito que o governo não vá querer mexer mais nessa meta, não. Foi a mudança feita na meta lá em abril que provocou essa piora tão grande nas expectativas dos agentes econômicos.

Se o Lula não tivesse essa narrativa horrorosa contra o Banco Central, com certeza o cenário hoje seria diferente

Considerando isso que o sr. está colocando, como se encaixa a troca do presidente do Banco Central, em janeiro? Até que ponto o mercado acredita que o Gabriel Galípolo, que foi indicado pelo presidente Lula para substituir o atual presidente da instituição, Roberto Campos Neto, vai manter essa política monetária de alta dos juros, para esfriar um pouco a economia?

Há vários aspectos aí que a gente tem de levar em conta. O primeiro é que o Galípolo já está há quase um ano e meio no Banco Central, como diretor de Política Monetária. Ele tomou um “banho de loja” nesse período, teve um aprendizado grande, com uma turma espetacular. O Roberto e esses caras todos que estão lá hoje são muito bons. Eu estive quatro anos no Banco Central e a cada seis meses eu falava: “Meu deus, como eu aprendi aqui um monte de coisas”. É impressionante o quanto a gente aprende. O segundo aspecto é que o governo tem vindo com uma narrativa muito ruim contra o Banco Central, mas a prática tem sido melhor que a narrativa. E o Galípolo é uma pessoa que tem alguma experiência no mercado e está mostrando que quer tomar decisões pelo lado técnico. Os outros dois diretores indicados pelo atual governo, também. O Galípolo deu uma certa escorregada quando ele disse “não, porque o Lula está topando a independência do Banco Central”. Como assim? O Lula não tem nada a ver com isso. A independência foi uma medida aprovada pelo Congresso. O Banco Central passou a ser um ente de Estado e não mais de governo. Então, quando ele fala um negócio desse você fala “opa, espera aí”. Mas, na prática, ele tem se mostrado firme. Nessa alta de juro, ele tem sido o mais vocal. Agora, nós temos três novos diretores a serem indicados no atual governo e, dependendo do perfil, da história de cada um deles, a gente vai ver se a política monetária daqui para a frente será ok ou se vai ficar comprometida.

Quer dizer, apesar desse histórico relativamente positivo do Galípolo, ainda há dúvidas em relação ao que pode acontecer após a saída do Campos Neto do Banco Central. É isso?

Sem dúvida. Isso só a prática realmente vai demonstrar. É um pouco aquela história: como é que você ganha credibilidade? Vai fazendo coisas corretas que, em algum momento, o pessoal vai falar: “Opa, ele está indo pelo caminho certo”. Se o Lula não tivesse essa narrativa horrorosa contra o Banco Central, com certeza seria diferente. Pode estar certo de que uma parte considerável da alta de juros tem a ver com isso.

Teve também o agravante, se não me engano, de que o Galípolo participou de uma reunião outro dia no Palácio do Planalto com o Lula e com o ministro Fernando Haddad. Isso também gerou ruído no mercado.

Ter esse tipo de reunião às vezes faz parte. Outros presidentes do Banco Central tiveram. Mas ele está perto demais. Você tem de manter uma certa distância. O próprio Roberto Campos mantinha uma certa distância, para deixar claro que era independente.

Quem for governar o País a partir de 2027 terá de fazer um enorme ajuste nas contas públicas

Para finalizar, olhando para a frente, levando em conta tudo isso que o sr. está falando, como o sr. acha que estará a questão fiscal no fim do governo Lula, em 2026?

Como eu falei, não acredito que esse governo vá tratar a questão fiscal do jeito que é necessário. Não acredito. Eu acho que, no máximo, ele pode conter uma piora expressiva. Isso quer dizer que quem for governar o País a partir de 2027 terá de fazer um enorme ajuste nas contas públicas, para tornar a política fiscal sustentável. É como aquele médico com quem você tem de marcar uma consulta com muita antecedência. A gente já tem uma consulta marcada com o médico para 2027. Considerando que o déficit primário do País está na faixa de 0,5% do PIB ao ano, isso significa que a gente precisa de um superávit em torno de 2% a 2,5% do PIB para que a dívida pública pare de crescer. Nós estamos falando, então, de um ajuste fiscal de mais ou menos R$ 250 bilhões. É claro que isso não será feito num ano só, mas terá de começar, de um jeito ou de outro, em 2027. Ou nós vamos começar a fazer um ajuste que vai tornar o nosso endividamento sustentável ou a inflação vai subir se o novo governo não estiver focado nisso. Uma das duas coisas vai acontecer. Se a gente faltar na consulta com o médico, a gente vai pegar uma baita pneumonia. Agora, se a gente for ao médico, começar a tomar um remédio para combater o problema, eventualmente isso vai ser uma gripe que vai passar. Eu acho que não tem conversa. Isso vai ter de acontecer.

Por que o sr. diz que a gente terá de fazer esse ajuste de qualquer forma a partir de 2027?

Porque a nossa dívida pública já estará num nível bem superior a 80% de PIB. E, como a gente tem um custo muito alto para rolar a dívida, não tem jeito. Se a gente tivesse uma política fiscal razoável, que apontasse para sustentabilidade, o juro cairia bastante e o próprio custo de rolagem da dívida, também. Só que não é isso o que acontece. O Brasil teima em ir sempre para o lado errado, de ficar sempre à beira do precipício, sendo que seria muito mais fácil se fizesse o contrário. Por isso, é que a gente tem um juro real de 7%, 8%, 9% ao ano. É uma loucura!

O sr. está dizendo, então, que o próximo presidente, a ser eleito em 2026, seja quem for, vai receber uma herança maldita do ponto de vista fiscal?

Exatamente. O que o Lula recebeu de herança bendita ele vai deixar de herança maldita.

Entrevista por José Fucs

É repórter especial do Estadão. Jornalista desde 1983, foi repórter especial e editor de Economia da revista Época, editor-chefe da revista Pequenas Empresas & Grandes Negócios, editor-executivo da Exame e repórter do Estadão, da Gazeta Mercantil e da Folha. Leia publicações anteriores a 18/4/23 em www.estadao.com.br/politica/blog-do-fucs/

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