Acordo de última hora, ajuste de texto em pé: os bastidores da reforma tributária aprovada na Câmara


Negociações se acirraram torno da tributação da cesta básica, das atividades que teriam desconto de alíquota e da gestão do Conselho Federativo, pleito capitaneado por Tarcísio

Por Mariana Carneiro e Adriana Fernandes
Atualização:

BRASÍLIA - O deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB) comeu barrinhas de proteína na tribuna da Câmara dos Deputados após a longa leitura do texto da reforma tributária na Câmara dos Deputados, pouco antes da meia-noite de quarta-feira, 5. A fala, já no final, foi entremeada de intervalos mais alongados que angustiavam seus assessores.

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Encerrada a votação histórica, na madrugada de sexta-feira, 7, Aguinaldo contou à reportagem do Estadão o que aconteceu: a pressão baixou e a vista turvou; pois, na correria das reuniões do dia, havia esquecido de almoçar. Dormir pouco foi a regra nos últimos dias e não só a dele, mas a de secretários de Fazenda, técnicos, governadores, deputados, lobistas e jornalistas.

A leitura do relatório é o rito que marca o início das votações no Legislativo, uma mensagem que, apesar da incredulidade que reinava em Brasília no dia anterior, a reforma tributária agora era para valer -- após mais de três décadas em discussão no País.

Texto foi aprovado com 382 votos no primeiro turno e 375 no segundo. Eram necessários 308. Foto: Zeca Ribeiro/Câmara dos Deputados
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Na noite anterior, governadores dos sete Estados do Sul e Sudeste mais o Mato Grosso do Sul reuniram mais de 200 deputados em um hotel em Brasília. Ainda que nos discursos eles tenham defendido a reforma, a leitura era a de que tinham se unido em demandas impossíveis de serem atendidas sem desfigurar o novo modelo de tributação. Prefeitos e procuradores também tinham invadido a capital para criticar a reforma e pedir o adiamento da votação.

As fake news haviam tomado as redes sociais e o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), não queria a centralização da arrecadação de todos os Estados e municípios no Conselho Federativo. Ele, então, convenceu os pares de que era preciso que os Estados mais populosos assumissem a gestão do comitê. A divisão que isso abriria com o Norte e Nordeste fez com que os políticos em Brasília dormissem (pouco) incrédulos da votação.

Mas o dia em que Aguinaldo comeu as barrinhas começou diferente. Tarcísio e o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, dariam entrevista na porta do Ministério da Fazenda indicando um acordo. O governo aceitava a exigência do governador paulista e iria apoiá-lo. Tarcísio retribuiu o gesto horas depois, convencendo o seu partido, o Republicanos, a fechar questão pela votação em bloco a favor da reforma, e a marcar conversa com o ex-presidente Jair Bolsonaro para tentar atrair também o PL.

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Naquela mesma quarta-feira, Aguinaldo Ribeiro passaria horas reunido com deputados da bancada do agronegócio -- a mais organizada da Câmara, com 300 membros. A lista de exigências era variada (quase todas atendidas), mas a que mais vibrava nas redes sociais era a tributação da cesta básica.

Na primeira versão de seu relatório, Ribeiro fixou que a cesta básica teria alíquota reduzida à metade da alíquota padrão (estimada em 25%). Um estudo da Associação Brasileira de Supermercados (Abras) apontou que isso poderia resultar no aumento do preço dos alimentos. Mas ainda que o governo tenha rebatido afirmando que o cálculo não estava correto, o estudo bastou para irrigar as redes com críticas à reforma, inclusive de Bolsonaro.

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Se para a classe política o ponto de virada para determinar que a reforma vingaria tenha sido a presença (e o discurso) de Tarcísio, para Aguinaldo Ribeiro, foi a sua decisão de zerar a cesta básica naquela quarta-feira.

“A cesta básica foi escolhida para criar uma narrativa como se a reforma fosse atingir os mais pobres, enquanto o que a gente queria era o contrário. Mais das grandes mentiras contra a reforma que foram pregadas”, contou o relator, com a voz rouca, às duas da manhã da sexta-feira, após quase 15 horas de sessão e o painel da Câmara marcar o placar em segundo turno: 375 votos a 113.

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A decisão de fazer uma cesta nacional com uma lista de produtos mais restritos, com alíquota zero, já tinha sido tomada uma semana antes e sinalizada em entrevista ao Estadão: “Não falei para ninguém”, revelou.

A equipe do ministro Haddad era contrária, com o argumento de que a alíquota reduzida não provocaria aumento da carga em relação ao que já acontece hoje. Isso porque os produtos da cesta hoje são desonerados dos impostos federais, mas pagam tributos estaduais.

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Resolvido o problema da cesta básica, faltava uma solução para os Estados. Foi só no dia da votação, mais precisamente três horas antes de a versão final do texto ser protocolada no sistema da Câmara, que a equipe do governador paulista e a de outros Estados do Sul e Sudeste receberam o trecho que honrava a promessa feita por Haddad. Não apenas o chefe da Fazenda havia dado sua palavra, mas principalmente Arthur Lira, o que deu segurança tanto a Tarcísio quanto ao governador do Rio, Cláudio Castro (PL), de que seriam atendidos.

Constituição de pé

Os ajuste de redação foram feitos pelo secretário de Fazenda do Rio, Leonardo Lobo Pires, ao lado de Samuel Kinoshita, de São Paulo, no computador da secretária da liderança do PSD na Câmara, onde estavam acompanhando as negociações políticas que se desenrolaram ora com a frente evangélica, ora com deputados que representam os setores de serviços, que temiam aumento da carga tributária. A Constituição estava sendo reescrita de pé, descreveu um dos que compartilhavam daquele momento. O acordo feito de boca no dia anterior estava honrado e, naquela hora, em papel passado.

O deputado Baleia Rossi (MDB-SP), autor da PEC 45, que fundamentou a atual reforma tributária, afirma que ficou preocupado na sexta-feira anterior à da votação, no dia 30, quando Tarcísio se reuniu com representantes do setor de serviços no Palácio dos Bandeirantes.

Ao aparecer com os principais críticos da proposta, Tarcísio sinalizava que São Paulo, mais uma vez, interditaria a reforma tributária. Esse foi o padrão de todas as tentativas anteriores de mudança no sistema de impostos do País, já bloqueada até pelo atual vice-presidente Geraldo Alckmin quando governador. Desta vez, no governo federal, Alckmin se converteu num defensor ferrenho da reforma.

Na reta final das negociações, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, se tornou peça-chave para a aprovação da reforma tributária na Câmara. Foto: Diogo Zacarias / MINISTERIO DA ECONOMIA

Rossi conta que telefonou para Tarcísio e ouviu uma versão diferente. O governador estava decidido a apoiar a reforma; tão decidido que voaria a Brasília naquele mesmo sábado para uma reunião com Aguinaldo Ribeiro. O encontro duraria quatro horas e Aguinaldo, segundo relatos, anotou tudo o que Tarcísio falou. Aliados do governador e representantes das empresas do setor de serviços, interessados no adiamento da votação, insistiam nos bastidores na versão de que Tarcísio trabalhava, na verdade, para dar bombardear a reforma, como seus antecessores.

O governador paulista, por sua vez, havia estudado profundamente a proposta e estava convencido pessoalmente em apoiá-la, mas com ajustes. O posicionamento levou deputados a ir ao jantar no Palácio dos Bandeirantes, no domingo à noite, com a expectativa de que Tarcísio pediria para adiar a votação até que os ajustes fossem feitos. O pedido não veio, mas a desconfiança ficou no ar até o governador desembarcar na capital, na terça-feira, antevéspera da votação.

O golpe mais duro no governador, segundo narram seus aliados, ocorreria na quinta-feira pela manhã, quando foi ao PL na expectativa de ter uma conversa a sós com Bolsonaro. Tarcísio esperava ter um papo reservado e franco e convencê-lo, como nos tempos em que ele era ministro da Infraestrutura do ex-presidente.

A conversa se transformou numa assembleia do PL, em que o governador tentou se defender em vão de críticas contra a reforma, vindas principalmente de Bolsonaro. O Estadão apurou que o governador “sentiu” o golpe.

Na reta final da votação, as conversas de bastidores se desenrolaram na sala onde são feitas as reuniões de líderes, no piso inferior ao do plenário da Câmara. Naquele lugar, onde há uma grande mesa de reuniões, Aguinaldo Ribeiro, Baleia Rossi, Reginaldo Lopes (PT-MG), Arthur Lira e outros líderes da Câmara ouviram os pedidos de última hora que chegavam de governadores do Centro-Oeste, prefeitos de capitais e setores econômicos que ainda tentavam tratamento diferenciado na proposta.

‘Enorme avanço’

Não à toa, logo após a votação do texto principal, uma série de pedidos feitos no varejo foram condensados em uma emenda aglutinativa, apelidada de “cavalo de Troia”, que foi aprovada com 379 votos na Câmara. Nela, apareceram benefícios a igrejas, a times de futebol e até mesmo a possibilidade de os Estados criarem um novo tributo, como mostrou o Estadão. Ponto que será retomado no Senado, onde ajustes serão ser feitos.

No Senado também será dirimido o impasse entre os Estados do Nordeste e Sudeste em torno da partilha do fundo bilionário que será criado, com dinheiro da União, para diminuir desigualdades regionais. São Paulo interditou a discussão na Câmara, o que foi chamado pelos nordestinos de “preço Tarcísio” para apoiar a reforma. As capitais também consideram que foram pouco atendidas.

Apesar das exceções, o secretário de reforma de Haddad, Bernard Appy, que desenhou a espinha dorsal da reforma, comemorou o resultado num grupo de WhatsApp de tributaristas: “Highlanders, o resultado de hoje é uma construção coletiva. Mesmo com mais exceções do que gostaríamos, é um enorme avanço”, escreveu às 0h56 de sexta-feira. Num canto do plenário, emocionado, convidava a equipe para comemorar.

O cronograma foi cumprido, como prometido, até a sexta-feira, antes da viagem prevista do presidente da Câmara aos EUA -- onde, segundo seus colegas, ele iria para o cruzeiro do Wesley Safadão. Com o estilo trator de Lira para acelerar a votação, nas redes sociais, o cantor foi chamado de “craque do jogo” e “padroeiro da reforma”.

BRASÍLIA - O deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB) comeu barrinhas de proteína na tribuna da Câmara dos Deputados após a longa leitura do texto da reforma tributária na Câmara dos Deputados, pouco antes da meia-noite de quarta-feira, 5. A fala, já no final, foi entremeada de intervalos mais alongados que angustiavam seus assessores.

Encerrada a votação histórica, na madrugada de sexta-feira, 7, Aguinaldo contou à reportagem do Estadão o que aconteceu: a pressão baixou e a vista turvou; pois, na correria das reuniões do dia, havia esquecido de almoçar. Dormir pouco foi a regra nos últimos dias e não só a dele, mas a de secretários de Fazenda, técnicos, governadores, deputados, lobistas e jornalistas.

A leitura do relatório é o rito que marca o início das votações no Legislativo, uma mensagem que, apesar da incredulidade que reinava em Brasília no dia anterior, a reforma tributária agora era para valer -- após mais de três décadas em discussão no País.

Texto foi aprovado com 382 votos no primeiro turno e 375 no segundo. Eram necessários 308. Foto: Zeca Ribeiro/Câmara dos Deputados

Na noite anterior, governadores dos sete Estados do Sul e Sudeste mais o Mato Grosso do Sul reuniram mais de 200 deputados em um hotel em Brasília. Ainda que nos discursos eles tenham defendido a reforma, a leitura era a de que tinham se unido em demandas impossíveis de serem atendidas sem desfigurar o novo modelo de tributação. Prefeitos e procuradores também tinham invadido a capital para criticar a reforma e pedir o adiamento da votação.

As fake news haviam tomado as redes sociais e o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), não queria a centralização da arrecadação de todos os Estados e municípios no Conselho Federativo. Ele, então, convenceu os pares de que era preciso que os Estados mais populosos assumissem a gestão do comitê. A divisão que isso abriria com o Norte e Nordeste fez com que os políticos em Brasília dormissem (pouco) incrédulos da votação.

Mas o dia em que Aguinaldo comeu as barrinhas começou diferente. Tarcísio e o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, dariam entrevista na porta do Ministério da Fazenda indicando um acordo. O governo aceitava a exigência do governador paulista e iria apoiá-lo. Tarcísio retribuiu o gesto horas depois, convencendo o seu partido, o Republicanos, a fechar questão pela votação em bloco a favor da reforma, e a marcar conversa com o ex-presidente Jair Bolsonaro para tentar atrair também o PL.

Naquela mesma quarta-feira, Aguinaldo Ribeiro passaria horas reunido com deputados da bancada do agronegócio -- a mais organizada da Câmara, com 300 membros. A lista de exigências era variada (quase todas atendidas), mas a que mais vibrava nas redes sociais era a tributação da cesta básica.

Na primeira versão de seu relatório, Ribeiro fixou que a cesta básica teria alíquota reduzida à metade da alíquota padrão (estimada em 25%). Um estudo da Associação Brasileira de Supermercados (Abras) apontou que isso poderia resultar no aumento do preço dos alimentos. Mas ainda que o governo tenha rebatido afirmando que o cálculo não estava correto, o estudo bastou para irrigar as redes com críticas à reforma, inclusive de Bolsonaro.

Se para a classe política o ponto de virada para determinar que a reforma vingaria tenha sido a presença (e o discurso) de Tarcísio, para Aguinaldo Ribeiro, foi a sua decisão de zerar a cesta básica naquela quarta-feira.

“A cesta básica foi escolhida para criar uma narrativa como se a reforma fosse atingir os mais pobres, enquanto o que a gente queria era o contrário. Mais das grandes mentiras contra a reforma que foram pregadas”, contou o relator, com a voz rouca, às duas da manhã da sexta-feira, após quase 15 horas de sessão e o painel da Câmara marcar o placar em segundo turno: 375 votos a 113.

A decisão de fazer uma cesta nacional com uma lista de produtos mais restritos, com alíquota zero, já tinha sido tomada uma semana antes e sinalizada em entrevista ao Estadão: “Não falei para ninguém”, revelou.

A equipe do ministro Haddad era contrária, com o argumento de que a alíquota reduzida não provocaria aumento da carga em relação ao que já acontece hoje. Isso porque os produtos da cesta hoje são desonerados dos impostos federais, mas pagam tributos estaduais.

Resolvido o problema da cesta básica, faltava uma solução para os Estados. Foi só no dia da votação, mais precisamente três horas antes de a versão final do texto ser protocolada no sistema da Câmara, que a equipe do governador paulista e a de outros Estados do Sul e Sudeste receberam o trecho que honrava a promessa feita por Haddad. Não apenas o chefe da Fazenda havia dado sua palavra, mas principalmente Arthur Lira, o que deu segurança tanto a Tarcísio quanto ao governador do Rio, Cláudio Castro (PL), de que seriam atendidos.

Constituição de pé

Os ajuste de redação foram feitos pelo secretário de Fazenda do Rio, Leonardo Lobo Pires, ao lado de Samuel Kinoshita, de São Paulo, no computador da secretária da liderança do PSD na Câmara, onde estavam acompanhando as negociações políticas que se desenrolaram ora com a frente evangélica, ora com deputados que representam os setores de serviços, que temiam aumento da carga tributária. A Constituição estava sendo reescrita de pé, descreveu um dos que compartilhavam daquele momento. O acordo feito de boca no dia anterior estava honrado e, naquela hora, em papel passado.

O deputado Baleia Rossi (MDB-SP), autor da PEC 45, que fundamentou a atual reforma tributária, afirma que ficou preocupado na sexta-feira anterior à da votação, no dia 30, quando Tarcísio se reuniu com representantes do setor de serviços no Palácio dos Bandeirantes.

Ao aparecer com os principais críticos da proposta, Tarcísio sinalizava que São Paulo, mais uma vez, interditaria a reforma tributária. Esse foi o padrão de todas as tentativas anteriores de mudança no sistema de impostos do País, já bloqueada até pelo atual vice-presidente Geraldo Alckmin quando governador. Desta vez, no governo federal, Alckmin se converteu num defensor ferrenho da reforma.

Na reta final das negociações, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, se tornou peça-chave para a aprovação da reforma tributária na Câmara. Foto: Diogo Zacarias / MINISTERIO DA ECONOMIA

Rossi conta que telefonou para Tarcísio e ouviu uma versão diferente. O governador estava decidido a apoiar a reforma; tão decidido que voaria a Brasília naquele mesmo sábado para uma reunião com Aguinaldo Ribeiro. O encontro duraria quatro horas e Aguinaldo, segundo relatos, anotou tudo o que Tarcísio falou. Aliados do governador e representantes das empresas do setor de serviços, interessados no adiamento da votação, insistiam nos bastidores na versão de que Tarcísio trabalhava, na verdade, para dar bombardear a reforma, como seus antecessores.

O governador paulista, por sua vez, havia estudado profundamente a proposta e estava convencido pessoalmente em apoiá-la, mas com ajustes. O posicionamento levou deputados a ir ao jantar no Palácio dos Bandeirantes, no domingo à noite, com a expectativa de que Tarcísio pediria para adiar a votação até que os ajustes fossem feitos. O pedido não veio, mas a desconfiança ficou no ar até o governador desembarcar na capital, na terça-feira, antevéspera da votação.

O golpe mais duro no governador, segundo narram seus aliados, ocorreria na quinta-feira pela manhã, quando foi ao PL na expectativa de ter uma conversa a sós com Bolsonaro. Tarcísio esperava ter um papo reservado e franco e convencê-lo, como nos tempos em que ele era ministro da Infraestrutura do ex-presidente.

A conversa se transformou numa assembleia do PL, em que o governador tentou se defender em vão de críticas contra a reforma, vindas principalmente de Bolsonaro. O Estadão apurou que o governador “sentiu” o golpe.

Na reta final da votação, as conversas de bastidores se desenrolaram na sala onde são feitas as reuniões de líderes, no piso inferior ao do plenário da Câmara. Naquele lugar, onde há uma grande mesa de reuniões, Aguinaldo Ribeiro, Baleia Rossi, Reginaldo Lopes (PT-MG), Arthur Lira e outros líderes da Câmara ouviram os pedidos de última hora que chegavam de governadores do Centro-Oeste, prefeitos de capitais e setores econômicos que ainda tentavam tratamento diferenciado na proposta.

‘Enorme avanço’

Não à toa, logo após a votação do texto principal, uma série de pedidos feitos no varejo foram condensados em uma emenda aglutinativa, apelidada de “cavalo de Troia”, que foi aprovada com 379 votos na Câmara. Nela, apareceram benefícios a igrejas, a times de futebol e até mesmo a possibilidade de os Estados criarem um novo tributo, como mostrou o Estadão. Ponto que será retomado no Senado, onde ajustes serão ser feitos.

No Senado também será dirimido o impasse entre os Estados do Nordeste e Sudeste em torno da partilha do fundo bilionário que será criado, com dinheiro da União, para diminuir desigualdades regionais. São Paulo interditou a discussão na Câmara, o que foi chamado pelos nordestinos de “preço Tarcísio” para apoiar a reforma. As capitais também consideram que foram pouco atendidas.

Apesar das exceções, o secretário de reforma de Haddad, Bernard Appy, que desenhou a espinha dorsal da reforma, comemorou o resultado num grupo de WhatsApp de tributaristas: “Highlanders, o resultado de hoje é uma construção coletiva. Mesmo com mais exceções do que gostaríamos, é um enorme avanço”, escreveu às 0h56 de sexta-feira. Num canto do plenário, emocionado, convidava a equipe para comemorar.

O cronograma foi cumprido, como prometido, até a sexta-feira, antes da viagem prevista do presidente da Câmara aos EUA -- onde, segundo seus colegas, ele iria para o cruzeiro do Wesley Safadão. Com o estilo trator de Lira para acelerar a votação, nas redes sociais, o cantor foi chamado de “craque do jogo” e “padroeiro da reforma”.

BRASÍLIA - O deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB) comeu barrinhas de proteína na tribuna da Câmara dos Deputados após a longa leitura do texto da reforma tributária na Câmara dos Deputados, pouco antes da meia-noite de quarta-feira, 5. A fala, já no final, foi entremeada de intervalos mais alongados que angustiavam seus assessores.

Encerrada a votação histórica, na madrugada de sexta-feira, 7, Aguinaldo contou à reportagem do Estadão o que aconteceu: a pressão baixou e a vista turvou; pois, na correria das reuniões do dia, havia esquecido de almoçar. Dormir pouco foi a regra nos últimos dias e não só a dele, mas a de secretários de Fazenda, técnicos, governadores, deputados, lobistas e jornalistas.

A leitura do relatório é o rito que marca o início das votações no Legislativo, uma mensagem que, apesar da incredulidade que reinava em Brasília no dia anterior, a reforma tributária agora era para valer -- após mais de três décadas em discussão no País.

Texto foi aprovado com 382 votos no primeiro turno e 375 no segundo. Eram necessários 308. Foto: Zeca Ribeiro/Câmara dos Deputados

Na noite anterior, governadores dos sete Estados do Sul e Sudeste mais o Mato Grosso do Sul reuniram mais de 200 deputados em um hotel em Brasília. Ainda que nos discursos eles tenham defendido a reforma, a leitura era a de que tinham se unido em demandas impossíveis de serem atendidas sem desfigurar o novo modelo de tributação. Prefeitos e procuradores também tinham invadido a capital para criticar a reforma e pedir o adiamento da votação.

As fake news haviam tomado as redes sociais e o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), não queria a centralização da arrecadação de todos os Estados e municípios no Conselho Federativo. Ele, então, convenceu os pares de que era preciso que os Estados mais populosos assumissem a gestão do comitê. A divisão que isso abriria com o Norte e Nordeste fez com que os políticos em Brasília dormissem (pouco) incrédulos da votação.

Mas o dia em que Aguinaldo comeu as barrinhas começou diferente. Tarcísio e o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, dariam entrevista na porta do Ministério da Fazenda indicando um acordo. O governo aceitava a exigência do governador paulista e iria apoiá-lo. Tarcísio retribuiu o gesto horas depois, convencendo o seu partido, o Republicanos, a fechar questão pela votação em bloco a favor da reforma, e a marcar conversa com o ex-presidente Jair Bolsonaro para tentar atrair também o PL.

Naquela mesma quarta-feira, Aguinaldo Ribeiro passaria horas reunido com deputados da bancada do agronegócio -- a mais organizada da Câmara, com 300 membros. A lista de exigências era variada (quase todas atendidas), mas a que mais vibrava nas redes sociais era a tributação da cesta básica.

Na primeira versão de seu relatório, Ribeiro fixou que a cesta básica teria alíquota reduzida à metade da alíquota padrão (estimada em 25%). Um estudo da Associação Brasileira de Supermercados (Abras) apontou que isso poderia resultar no aumento do preço dos alimentos. Mas ainda que o governo tenha rebatido afirmando que o cálculo não estava correto, o estudo bastou para irrigar as redes com críticas à reforma, inclusive de Bolsonaro.

Se para a classe política o ponto de virada para determinar que a reforma vingaria tenha sido a presença (e o discurso) de Tarcísio, para Aguinaldo Ribeiro, foi a sua decisão de zerar a cesta básica naquela quarta-feira.

“A cesta básica foi escolhida para criar uma narrativa como se a reforma fosse atingir os mais pobres, enquanto o que a gente queria era o contrário. Mais das grandes mentiras contra a reforma que foram pregadas”, contou o relator, com a voz rouca, às duas da manhã da sexta-feira, após quase 15 horas de sessão e o painel da Câmara marcar o placar em segundo turno: 375 votos a 113.

A decisão de fazer uma cesta nacional com uma lista de produtos mais restritos, com alíquota zero, já tinha sido tomada uma semana antes e sinalizada em entrevista ao Estadão: “Não falei para ninguém”, revelou.

A equipe do ministro Haddad era contrária, com o argumento de que a alíquota reduzida não provocaria aumento da carga em relação ao que já acontece hoje. Isso porque os produtos da cesta hoje são desonerados dos impostos federais, mas pagam tributos estaduais.

Resolvido o problema da cesta básica, faltava uma solução para os Estados. Foi só no dia da votação, mais precisamente três horas antes de a versão final do texto ser protocolada no sistema da Câmara, que a equipe do governador paulista e a de outros Estados do Sul e Sudeste receberam o trecho que honrava a promessa feita por Haddad. Não apenas o chefe da Fazenda havia dado sua palavra, mas principalmente Arthur Lira, o que deu segurança tanto a Tarcísio quanto ao governador do Rio, Cláudio Castro (PL), de que seriam atendidos.

Constituição de pé

Os ajuste de redação foram feitos pelo secretário de Fazenda do Rio, Leonardo Lobo Pires, ao lado de Samuel Kinoshita, de São Paulo, no computador da secretária da liderança do PSD na Câmara, onde estavam acompanhando as negociações políticas que se desenrolaram ora com a frente evangélica, ora com deputados que representam os setores de serviços, que temiam aumento da carga tributária. A Constituição estava sendo reescrita de pé, descreveu um dos que compartilhavam daquele momento. O acordo feito de boca no dia anterior estava honrado e, naquela hora, em papel passado.

O deputado Baleia Rossi (MDB-SP), autor da PEC 45, que fundamentou a atual reforma tributária, afirma que ficou preocupado na sexta-feira anterior à da votação, no dia 30, quando Tarcísio se reuniu com representantes do setor de serviços no Palácio dos Bandeirantes.

Ao aparecer com os principais críticos da proposta, Tarcísio sinalizava que São Paulo, mais uma vez, interditaria a reforma tributária. Esse foi o padrão de todas as tentativas anteriores de mudança no sistema de impostos do País, já bloqueada até pelo atual vice-presidente Geraldo Alckmin quando governador. Desta vez, no governo federal, Alckmin se converteu num defensor ferrenho da reforma.

Na reta final das negociações, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, se tornou peça-chave para a aprovação da reforma tributária na Câmara. Foto: Diogo Zacarias / MINISTERIO DA ECONOMIA

Rossi conta que telefonou para Tarcísio e ouviu uma versão diferente. O governador estava decidido a apoiar a reforma; tão decidido que voaria a Brasília naquele mesmo sábado para uma reunião com Aguinaldo Ribeiro. O encontro duraria quatro horas e Aguinaldo, segundo relatos, anotou tudo o que Tarcísio falou. Aliados do governador e representantes das empresas do setor de serviços, interessados no adiamento da votação, insistiam nos bastidores na versão de que Tarcísio trabalhava, na verdade, para dar bombardear a reforma, como seus antecessores.

O governador paulista, por sua vez, havia estudado profundamente a proposta e estava convencido pessoalmente em apoiá-la, mas com ajustes. O posicionamento levou deputados a ir ao jantar no Palácio dos Bandeirantes, no domingo à noite, com a expectativa de que Tarcísio pediria para adiar a votação até que os ajustes fossem feitos. O pedido não veio, mas a desconfiança ficou no ar até o governador desembarcar na capital, na terça-feira, antevéspera da votação.

O golpe mais duro no governador, segundo narram seus aliados, ocorreria na quinta-feira pela manhã, quando foi ao PL na expectativa de ter uma conversa a sós com Bolsonaro. Tarcísio esperava ter um papo reservado e franco e convencê-lo, como nos tempos em que ele era ministro da Infraestrutura do ex-presidente.

A conversa se transformou numa assembleia do PL, em que o governador tentou se defender em vão de críticas contra a reforma, vindas principalmente de Bolsonaro. O Estadão apurou que o governador “sentiu” o golpe.

Na reta final da votação, as conversas de bastidores se desenrolaram na sala onde são feitas as reuniões de líderes, no piso inferior ao do plenário da Câmara. Naquele lugar, onde há uma grande mesa de reuniões, Aguinaldo Ribeiro, Baleia Rossi, Reginaldo Lopes (PT-MG), Arthur Lira e outros líderes da Câmara ouviram os pedidos de última hora que chegavam de governadores do Centro-Oeste, prefeitos de capitais e setores econômicos que ainda tentavam tratamento diferenciado na proposta.

‘Enorme avanço’

Não à toa, logo após a votação do texto principal, uma série de pedidos feitos no varejo foram condensados em uma emenda aglutinativa, apelidada de “cavalo de Troia”, que foi aprovada com 379 votos na Câmara. Nela, apareceram benefícios a igrejas, a times de futebol e até mesmo a possibilidade de os Estados criarem um novo tributo, como mostrou o Estadão. Ponto que será retomado no Senado, onde ajustes serão ser feitos.

No Senado também será dirimido o impasse entre os Estados do Nordeste e Sudeste em torno da partilha do fundo bilionário que será criado, com dinheiro da União, para diminuir desigualdades regionais. São Paulo interditou a discussão na Câmara, o que foi chamado pelos nordestinos de “preço Tarcísio” para apoiar a reforma. As capitais também consideram que foram pouco atendidas.

Apesar das exceções, o secretário de reforma de Haddad, Bernard Appy, que desenhou a espinha dorsal da reforma, comemorou o resultado num grupo de WhatsApp de tributaristas: “Highlanders, o resultado de hoje é uma construção coletiva. Mesmo com mais exceções do que gostaríamos, é um enorme avanço”, escreveu às 0h56 de sexta-feira. Num canto do plenário, emocionado, convidava a equipe para comemorar.

O cronograma foi cumprido, como prometido, até a sexta-feira, antes da viagem prevista do presidente da Câmara aos EUA -- onde, segundo seus colegas, ele iria para o cruzeiro do Wesley Safadão. Com o estilo trator de Lira para acelerar a votação, nas redes sociais, o cantor foi chamado de “craque do jogo” e “padroeiro da reforma”.

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