BRASÍLIA – A proposta de reforma tributária deve prever um sistema de pagamento para diminuir a sonegação de impostos e fraudes no País. O chamado split payment possibilita que o novo Imposto sobre Valor Agregado (IVA), que será criado com a reforma para fundir tributos atuais, seja pago já no momento da compra. Ou seja: pelo mecanismo, o banco separa, já na hora do pagamento, o imposto para os cofres dos governos (federal, estadual e municipal) e o valor destinado para quem forneceu o bem ou serviço.
“Na hora que você paga, o montante do imposto é recolhido automaticamente, vinculado ao próprio instrumento de pagamento. E a parte que é do fornecedor vai direto para o fornecedor”, antecipa o secretário extraordinário para a reforma tributária do Ministério da Fazenda, Bernard Appy. Em entrevista ao Estadão, Appy afirma que o mecanismo em estudo reduz o risco de sonegação e de uso de “créditos frios” – feitos por empresas laranjas para fraudar o Fisco.
Adotado por vários países, o modelo IVA permite que cada etapa da cadeia produtiva pague o imposto referente ao valor que adicionou ao produto ou serviço, evitando uma tributação em cascata. Se, por exemplo, o IVA for de 25%, um produto de R$ 100 terá imposto de R$ 25, que deverá ser dividido por toda a cadeia de produção (produtor, atacadista, distribuidor, varejista).
Atualmente, cada uma dessas etapas da cadeia é tributada separadamente e os impostos vão se acumulando até o consumidor final. Com o IVA, as empresas poderiam abater, no recolhimento do imposto, o valor pago anteriormente na cadeia produtiva. A ideia é que o IVA reúna tributos federais (como PIS, Cofins e IPI), estaduais (ICMS) e municipais (ISS).
Appy afirmou que a proposta em discussão na Câmara dos Deputados poderá ter uma trava para impedir que Estados e municípios tenham perda de arrecadação com medidas aprovadas pelo Congresso, como ocorreu com a desoneração dos combustíveis no governo Bolsonaro. Atacado diretamente pelo prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, que o chamou de “técnico autoritário”, Appy disse que está “em paz com o Paes” e que acredita no diálogo para enfrentar as resistências das capitais.
Ele detalhou ainda como pode funcionar o “cashback” do imposto pago em serviços de educação e saúde – uma alternativa à redução de alíquota para oferecer tratamento diferenciado a alguns setores – e o cronograma da transição, com a extinção dos tributos atuais até 2031.
A seguir, os principais trechos da entrevista.
O governo vai enviar uma proposta nova de reforma tributária ou vai usar as que já estão no Congresso? O ministro Haddad havia dito inicialmente que enviaria uma proposta até abril.
O que vamos fazer é apoiar o Congresso na elaboração da emenda constitucional da reforma tributária a partir dos textos que já estão lá. O governo vai apoiar o trabalho do relator (deputado Aguinaldo Ribeiro) – discutir alternativas, apresentar sugestões que o relator pode ou não incorporar. É um trabalho de avaliar custos e benefícios das diferentes alternativas colocadas para discussão.
A proposta será, então, do Congresso?
É uma proposta do Congresso que conta com apoio do governo.
O presidente da Câmara, Arthur Lira, disse que o governo não tem base para aprovar a reforma. Há um excesso de otimismo?
Ele próprio falou que deve ser aprovada na Câmara no primeiro semestre deste ano. Uma pesquisa mostrou que 68% dos deputados acreditavam que a reforma seria votada neste ano. Existe um ambiente positivo. Ela tem o apoio dos presidentes da Câmara e do Senado, e do Executivo.
O governo prometeu que a reforma será neutra, sem aumento da carga tributária. Haverá um gatilho para garantir a promessa?
Vai ter. A cada ano, será fixada uma alíquota com base em cálculos que mostram que se estará mantendo a carga tributária. A alíquota de referência (do novo imposto) terá de ser aprovada pelo Senado todo ano, durante a transição. Não é fazer de uma vez e depois não se ajusta mais. Vai se fazendo o ajuste ao longo da transição.
Um ponto de atenção das empresas é se o crédito do IVA ficará condicionado ao pagamento do tributo pelo fornecedor. Será criado o chamado ‘split payment’, que recolhe o imposto automaticamente?
O “split payment” está como uma possibilidade nas duas propostas. Eu acho que provavelmente deve passar, sim. Não vai passar como uma coisa determinativa; vai passar como uma possibilidade.
Como funcionaria?
As duas PECs têm dois dispositivos. Um deles diz que o crédito do imposto poderá ser condicionado ao recolhimento: eu tenho crédito se o meu fornecedor recolher o imposto. O segundo dispositivo diz que o imposto poderá ser cobrado no momento da liquidação ou pagamento. Os dois juntos caminham para esse modelo de “split payment” – em que, na hora que você paga, o montante do imposto é recolhido automaticamente, vinculado ao próprio instrumento de pagamento. E a parte que é do fornecedor vai direto para o fornecedor. Se o adquirente tiver direito a crédito, ele inclusive recebe automaticamente, em tempo real, o crédito dele.
Esse modelo já pronto para ser implementado?
Não está. Ele exige uma construção técnica que é perfeitamente possível com a tecnologia que nós temos hoje. Mas exige uma série de ajustes de sistemas, como sistema de pagamento. É uma inovação que está sendo discutida.
Quais as vantagens desse modelo de cobrança?
A vantagem é que reduz muito o risco de sonegação, porque o próprio recolhimento do imposto se dá no pagamento. A segunda vantagem é que reduz o risco de créditos frios, um problema que existe hoje.
O que é um crédito frio?
Quando tem uma empresa montada com laranjas. Uma empresa que fica operando um tempo com faturamento baixinho; aí, de repente, ela emite um caminhão de nota fiscal, dá crédito para quem adquiriu aquele produto e a empresa desaparece, ou os sócios são laranjas. Cria-se o crédito que é uma fraude.
O setor produtivo quer o ‘split payment’?
Sim, eles querem. A PEC tem de abrir a possibilidade (para esse instrumento), mas a regulamentação tem de ficar para a lei complementar.
Como o governo pretende enfrentar as resistências dos setores, como serviços e agronegócio?
Vai ter de ser resolvido exatamente na apresentação do relatório. Embora a discussão tenha começado com o modelo ideal sem nenhuma exceção, sabemos que vão acabar entrando algumas excepcionalidades. O tratamento favorecido poderia ser via diferenciais de alíquota, mudanças nas regras de creditamento ou isenção. E, na PEC 110, se abriu mais uma possibilidade: a devolução do imposto, e não é só para as famílias de baixa renda. Poderia ser inclusive para setores específicos, como educação.
O sr. apoia essa medida?
Eu gosto da ideia. Quem vai decidir quais setores vão ter tratamento diferenciado é o Congresso. O papel do governo é participar da discussão e falar dos prós e contras de diferentes alternativas.
Como seria a sistemática de devolução?
É um “cashback” para as pessoas, o consumidor. Por exemplo: educação básica para uma família de classe média custa R$ 600, R$ 700 por mês. Então, você fala o seguinte: olha, eu vou devolver o imposto integral. Se o imposto é 20%, dos R$ 700, é R$ 140 por mês. Devolve-se o imposto incidente na despesa com educação até R$ 140 por mês. Nesse sentido, é desonerada completamente uma família de classe média baixa, que faz um esforço enorme para ter o filho numa escola privada. Mas uma família rica, que tem um filho numa escola que custa mais, receberia uma parte de volta do imposto que ela pagou. Essa é uma possibilidade.
A reforma poderá incluir um trava de segurança para que Estados e municípios não tenham perda de arrecadação com medidas aprovadas pelo Congresso?
Está em discussão. A ideia básica é fazer com que qualquer mudança que reduza a arrecadação dos Estados e municípios tenha de ser compensada com um aumento da alíquota de referência do novo imposto. Se for aprovada uma mudança na lei, como a desoneração da gasolina, teria de aumentar a alíquota geral do imposto. É bom do ponto de vista federativo, porque dá segurança de que não haverá medidas tomadas no âmbito federal que afetem a arrecadação.
Os prefeitos das capitais dizem que não foram chamados para a negociação do acordo fechado pelo governo com os Estados, que compensou em R$ 26,9 bilhões as perdas com a desoneração do ICMS – tributo compartilhado com os municípios. Eles acham que foi uma sinalização ruim para a governança de um novo tributo.
Mas o que pegou pior foi a desoneração dos combustíveis feita no ano passado com recurso dos Estados e municípios. No modelo em discussão, se tiver alguma mudança que afete a arrecadação dos municípios, vai ter de ter um aumento compensatório.
A resistência das capitais é forte. Elas não querem perder o ISS, tributo cobrado pelos municípios sobre serviços. O prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, até mesmo o chamou de ‘técnico autoritário’.
Ele fez e depois eu mandei uma mensagem para ele. Aí, ele me respondeu. Foi (declaração) pesada até por uma distorção do que saiu no jornal. Está tudo em paz com o Paes. Entre nós está tudo bem.
O presidente Lula não tem falado muito de reforma tributária, como ocorreu na campanha. Ele vai realmente entrar em campo e defendê-la?
Eu acredito que sim. É o tempo dele na política. Mas, na hora que for preciso entrar em campo, acredito que entrará, sim.
A transição da reforma dos impostos sobre consumo durará quanto tempo?
A transição dos tributos federais é rápida, imediata. Um ano depois de aprovada a lei complementar, é possível fazer a transição do PIS/Cofins. No caso dos ICMS e ISS, o início demora um pouco, e a partir daí ela é feita em quatro ou cinco anos. Suponha que se aprove a emenda constitucional este ano, e a lei complementar no primeiro semestre do ano que vem: poderia começar a cobrar a CBS (Contribuição Social sobre Bens e Serviços, que deve unir PIS, Cofins e IPI) em meados de julho de 2025, o IBS (Imposto sobre Bens e Serviços, junção de ICMS e ISS) em janeiro de 2027. A transição estaria completa em 2030 ou 2031, dependendo se serão quatro ou cinco anos. Significa que em 2030 ou 2031 deixaram de existir os tributos atuais.
Os críticos reclamam que falta o governo botar na mesa a regulamentação da PEC, já que proposta deixa pontos relevantes para um legislação posterior. Como resolver esse impasse?
Não se pode colocar detalhe de lei em um texto constitucional. Não faz sentido. A negociação política terá de ser feita de forma a dar segurança para todos os agentes envolvidos de que eles serão contemplados. É um trabalho que está sendo construído pelo relator, que vamos apoiar. Entendo que as pessoas falem que estão preocupadas com a regulamentação. A gente sabe que não vai aprovar se não tiver segurança de que o texto que está lá tenha o necessário para poder viabilizar a aprovação. Não se vai votar uma coisa aérea; mas algo que dê segurança para quem está voltando de que será atendido.
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Como fica a segunda etapa da reforma tributária, que é a reforma do Imposto de Renda? O governo também vai aproveitar o texto que já está tramitando no Senado?
O mais provável é que a gente envie uma proposta nova. A ideia é fazer isso depois de aprovada a reforma do consumo.
Dificilmente, então, haverá tempo para aprovar a reforma do IR em 2023?
É. Pode ser que alguma parte seja antecipada, mas não tenho certeza. Pode-se fazer uma parte e a outra depois.
Existe a expectativa de que a segunda parte da reforma contribua para aumentar a arrecadação.
Tem de esperar para ver como vai sair o novo regime fiscal (a nova regra que vai substituir o teto de gastos, que desde 2017 atrela o crescimento das despesas à inflação).
Quem é Bernard Appy
Economista, é o atual secretário extraordinário de reforma tributária do Ministério da Fazenda. O cargo foi criado pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, para conduzir as negociações técnicas da proposta em tramitação do Congresso.
De 2015 a 2022, foi diretor do Centro de Cidadania Fiscal, um “think tank” voltado ao desenvolvimento de propostas de aprimoramento do sistema tributário brasileiro.
A proposta de reforma desenhada por ele no CCiF foi encampada pelo deputado Baleia Rossi (MDB-SP) na PEC 45, que servirá de base para a proposta de reforma que o governo Lula quer aprovar em 2023.
É formado pela USP. Entre 2003 e 2009 foi secretário-executivo, secretário de Política Econômica e secretário de Reformas Econômico-Fiscais do Ministério da Fazenda. Neste período, também foi presidente do Conselho de Administração do Banco do Brasil. Também foi sócio e diretor da LCA Consultores e diretor da BM&FBOVESPA.