Economista do Council on Foreign Relations (Conselho de Relações Exteriores, think-thank americano), Brad Setser já passou pelo Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e trabalhou com o agora famoso Nouriel Roubini, o economista que previu mais acuradamente a atual crise financeira global. Estudioso do gigantesco acúmulo de reservas internacionais pelos países emergentes nos últimos anos, Setser acha que o Brasil tem dólares suficientes para se defender da crise, e só poderia ter problemas se a turbulência se agravasse ainda mais e perdurasse por muito tempo. Para Setser, um observador atento dos Brics (Brasil, Rússia, Índia e China), a linha de swap de US$ 30 bilhões estendida pelo Fed (Federal Reserve, banco central americano) ao Brasil é "um prêmio" pela prudência da política econômica brasileira, e significa uma mudança na forma pela qual o País é visto pela comunidade financeira internacional. Setser considera que a tão propalada mudança da arquitetura financeira internacional já começou, e diz que mais foi feito nessa direção nas últimas três semanas do que no longo período de discussão do assunto que sucedeu as crises financeiras do fim dos anos 90. Ele cita como mudanças profundas, que o deixaram surpreendido, a extensão ilimitada pelo Fed de linhas de dólares ("swaps") para países europeus, e também (de forma limitada) para Brasil, Coréia, México e Cingapura. A seguir, a entrevista: Como a crise financeira vai afetar os Brics? A crise tem três impactos amplos, que afetam todo mundo, mas em graus diferentes. O primeiro é uma significativa desaceleração no crescimento da demanda por produtos manufaturados, notadamente nos Estados Unidos e na Europa, e isso vai ter um forte impacto na China. O segundo efeito, que afetou a Rússia de forma particularmente forte, mas também atingiu o Brasil, é que a crise financeira e bancária levou a uma forte redução do crédito para as economias emergentes. Isso gerou uma pressão para baixo nas moedas da maioria destes países, e quase todos tiveram de gastar suas reservas para compensar a retirada de financiamento bancário internacional. A Rússia ficou numa situação particularmente ruim, por causa da extensão em que o setor privado russo tomou emprestado do sistema financeiro internacional. E, finalmente, há a grande oscilação do ciclo econômico global, que causou uma significativa correção no preço das commodities. Isso terá impacto na Rússia, por causa do petróleo, e no Brasil, por causa do minério de ferro e muitas outras commodities que o País exporta. As reservas brasileiras são suficientes para enfrentar esta crise? As reservas brasileiras são substancialmente maiores do que suas dívidas de curto prazo. O Brasil tem a vantagem de, adicionalmente às reservas, dispor agora de acesso a US$ 30 bilhões do Fed na linha de swap, e provavelmente poderia sacar no novo instrumento de financiamento de curto prazo do FMI. Então o Brasil tem pelo menos US$ 30 bilhões, e talvez até US$ 50 bilhões, em crédito adicional. O único cenário no qual poderia haver mais pressão do que o Brasil poderia agüentar seria aquele em que qualquer um com exposição ao real tentaria fazer um hedge dessa posição. Para isso, seria preciso um choque ainda mais forte do que o que vimos até agora, um longo período no qual o País financiaria com as suas reservas não apenas uma queda de curto prazo no crédito bancário, mas teria de gastá-las também para suprir o déficit em conta corrente. Não subestimo o risco para o Brasil, mas ainda acho que está em melhor situação do que muitas outras economias emergentes. As economias emergentes sofrerão um impacto na economia real tão forte quanto aquele que já começa a afetar os países ricos? Estou cada vez mais preocupado com a possibilidade de que a desaceleração dos emergentes, de forma agregada, seja comparável em escala àquela experimentada pelos países ricos. A Rússia vai ter uma desaceleração bem aguda, que também ocorrerá em muitos países do Leste europeu. Bem, no caso da China pode-se dizer que um crescimento de 6%, que muitos já acham que possa ocorrer no início de 2009, é mais rápido do que o de muitos países num ano bom. Mas é uma significativa desaceleração a partir do nível de 11%, 12%. Quanto ao Brasil, minha esperança é de que, com a medidas tomadas para reduzir a vulnerabilidade, o País possa ajustar-se gradualmente, e a parada súbita seja apenas dos fluxos de capital, mas não da economia. O mundo está caminhando para uma nova arquitetura financeira internacional, o chamado "novo Bretton Woods"? Minha visão provavelmente é influenciada pelo fato de ter trabalhado no Departamento do Tesouro durante o último esforço para reforma da arquitetura financeira internacional. E confesso que fiquei chocado com o fato de que as mudanças acordadas nas últimas três semanas sejam, em certo sentido, muito maiores e muito mais significativas do que as que foram acordadas depois das crises de 1997, 1998 e 1999, quando houve um período muito mais longo de debate e reflexão sobre a reforma da arquitetura. O fato de que o Fed forneceu US$ 500 bilhões em crédito para os bancos europeus é indicativo da escala da mudança. É impactante que o Fed concorde em emprestar para os bancos centrais europeus literalmente sem limites, com o instrumento do "swap" (troca de dólares por euros), para que estes possam cumprir o papel de emprestadores de última instância de dólares para o sistema bancário europeu. E há também o novo instrumento de financiamento de curto prazo do FMI. Olhando para a frente, ainda há alguns pontos necessários sobre os quais ainda não se chegou a um acordo, como tornar o FMI substancialmente maior do que ele é hoje, e recalibrar o peso dos votos no Fundo para refletir a crescente importância dos países emergentes na economia global. O Brasil foi um dos quatro países emergentes que também teve acesso à linha de swap do Fed, como o sr. mencionou, embora de forma limitada. Qual o significado disso? Acho que é o reconhecimento de que o Brasil fez muitas coisas para reduzir a sua vulnerabilidade a crises financeiras. Foi um prêmio para as políticas econômicas prudentes que o Brasil praticou nos últimos poucos anos. Se você é gestor de política econômica nos Estados Unidos, com experiência de crises em mercados emergentes, é difícil não ficar impressionado com o fato de que o governo do Brasil saiu de uma posição de devedor líquido internacional para a de credor líquido internacional. Houve uma mudança na maneira pela qual o Brasil é visto na comunidade financeira internacional. Por outro lado, a concessão do swap também reflete o fato de que o Brasil é sistemicamente importante, e deixá-lo de fora poderia ser um sinal para que os investidores fizessem ainda mais hedge da sua exposição ao País, o que poderia acabar criando uma situação ruim. Qual será o papel do presidente Obama na montagem dessa nova arquitetura? Teremos uma noção muito melhor quando ele escolher o seu secretário do Tesouro e sua equipe econômica. Minha suposição é de que o governo Obama terá mais inclinação do que o governo Bush para contemplar a hipótese de um FMI maior como parte da solução para os problemas financeiros dos mercados emergentes. Certamente, um governo Obama será mais favorável do que o de Bush a propostas que aumentem o nível de regulação no sistema financeiro americano. Por outro lado, nos últimos três meses Bush abriu mão de muitas posições ideológicas, e reagiu de forma muito pragmática à crise. Várias mudanças importantes, como o instrumento de financiamento de curto prazo do FMI, e a extensão do swap do Fed para países emergentes, já ocorreram sob o comando do Bush, porque os eventos assim exigiram. De alguma forma, a administração do Bush já abraçou algumas das idéias que estavam circulando entre os assessores do Obama.