Foi na quinta-feira, 30, que o Brasil recebeu da Argentina o recado que uma ala do governo Lula já aguardava: a Casa Rosada não assinaria o acordo entre União Europeia e Mercosul na reunião agendada para o próximo dia 7, no Rio de Janeiro.
O encontro de cúpula entre europeus e latinos aconteceria poucos dias antes da troca de presidência no país vizinho, e o governo Fernández optou por não tomar a decisão em meio à transição política. A reunião presencial foi cancelada, e as passagens de europeus para o Brasil, desmarcadas.
O desfecho tirou do horizonte a perspectiva de concluir a negociação do acordo comercial. Integrantes do governo envolvidos com a discussão e analistas ouvidos pelo Estadão apontam que não se trata apenas de postergar a conclusão, mas sim do risco de que a aliança Mercosul-UE não saia do papel.
Membros do alto escalão de três ministérios foram ouvidos pela reportagem e pediram para não ser identificados. Eles acreditam não haver condições de assinar o acordo ainda neste ano e dizem que não está claro quando haverá outra janela de oportunidade política para finalizá-lo.
A percepção é compartilhada por especialistas no assunto. “Fica fora do radar a possibilidade de um acordo com fechamento rápido”, afirma Victor do Prado, membro do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri) e ex-diretor do conselho e do comitê de negociações comerciais da OMC. “Perdeu-se a janela. Retomar esse impulso não é fácil. Não digo que seja impossível, mas vai ser mais complicado”, afirma Prado.
Há uma disputa de narrativa, nos bastidores, sobre qual país irá carregar o ônus pelo fracasso do acordo. Neste domingo, 3, em Dubai, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmou que, se não houver acordo, “pelo menos vai ficar patenteado de quem é a culpa”.
Ele culpou os europeus: “Assuma a responsabilidade de que os países ricos não querem fazer um acordo na perspectiva de fazer qualquer concessão. É sempre ganhar mais. E nós não somos mais colonizados. Somos independentes. E queremos ser tratados com respeito de países independentes, que temos coisas para vender. E as coisas que nós temos para vender têm preço. O que nós queremos é um certo equilíbrio.”
O cancelamento das reuniões nesta semana não foi resultado das críticas recentes do presidente francês, Emmanuel Macron, ao acordo, mas sim da recente eleição na Argentina, que pode mudar os rumos da negociação.
Ao comunicar o Mercosul que não participariam da reunião no Rio de Janeiro, os negociadores argentinos sugeriram que o Brasil também teve sua parcela de responsabilidade no atraso no processo de negociação. Os argentinos indicaram, segundo relatos de quem acompanhou as tratativas nos últimos dias, que o governo Lula teve o tempo que precisou ao longo de 2023 para revisar o que desejava no texto — e agora é a Argentina que pede novo prazo.
Em julho, o Estadão mostrou que a insistência de ministros mais próximos a Lula em retomar as discussões com os europeus sobre o capítulo relativo a compras governamentais que poderão ser feitas após o acordo UE-Mercosul colocava, segundo um setor da Esplanada, o acordo em risco.
A ponderação feita por setores do governo que defendiam retomar o debate sobre o assunto era que é preciso incluir no desenho final do acordo UE-Mercosul temas caros para o atual presidente, como ampliar o espaço para o governo poder usar as compras públicas para induzir uma política nacional de industrialização em setores importantes, como o da saúde. Negociado durante duas décadas, o acordo UE-Mercosul foi assinado em 2019, na gestão de Jair Bolsonaro.
Interlocutores da ala considerada mais liberal na Esplanada disseram às pastas da Casa Civil e Itamaraty, na ocasião, que parte das exceções pleiteadas para serem incluídas no acordo era tecnicamente desnecessária, remetia a um texto de dez anos atrás e atrapalharia o processo de negociação com europeus, podendo inclusive inviabilizar uma conclusão rápida. A leitura desta ala é que o presidente Lula tem vontade de fechar o acordo, mas há integrantes do governo mais próximos aos setores do PT que colocam resistências.
“Me pergunto se as pessoas realmente veem vantagem para superar essas dificuldades. É um equilíbrio de vantagens e desvantagens e esse equilíbrio não está muito claro na cabeça dos responsáveis políticos. O Brasil foi esperto, o Brasil não quis ser o culpado. Quem sai mal na foto é a França”, afirma Prado.
A pressa para fechar o acordo ainda neste ano tinha uma razão objetiva. Durante o segundo semestre de 2023, o Brasil ocupa na presidência pro tempore do Mercosul, e a Espanha, país europeu pró-acordo, preside o Conselho da UE.
A partir do próximo ano, o cenário muda e se torna menos propício ao acordo. “As próximas presidências da UE não têm interesse especial por esse tipo de acordo: Bélgica, Hungria, Polônia, Dinamarca. Não há o mesmo impulso que teria com Espanha ou Portugal”, afirma Victor do Prado.
Além disso, as eleições para o parlamento europeu, que ocorrerão em junho de 2024, podem tornar o ambiente político mais hostil em países como a França. “As declarações do Macron não são novas, mas ele sai como protetor dos agricultores franceses e como protetor do meio ambiente”, afirma Prado.
Os integrantes do governo Lula ouvidos consideram ser necessário aguardar o direcionamento do governo Milei para voltar a negociar. Milei tomará posse em 10 de dezembro. Enquanto candidato, disse se opor à permanência da Argentina no Mercosul e à aliança com os europeus. Nos últimos dias, no entanto, deu sinais de moderação e de disposição para celebrar o acordo.
Apesar de assinado em 2019, o acordo não entrou em vigor. A conclusão completa do texto e o começo do processo para sua implementação ficaram travadas nos últimos anos, pois os europeus resistiam em tratar do assunto com o governo Jair Bolsonaro, diante da piora nos índices de desmatamento na Amazônia. “Ainda que as preocupações ambientais sejam genuínas, elas mascaram a dimensão política interna de nações europeias, a quem o protecionismo agrícola é instrumento político importante”, afirma o professor de relações internacionais da FGV-SP Guilherme Casarões.
Em março, a União Europeia enviou ao Mercosul um protocolo adicional, com novas exigências ambientais. O movimento foi considerado “desbalanceado” por Brasília, que aproveitou a negociação reaberta para incluir a possibilidade de mais exceções para manter a possibilidade de preferência por produtos nacionais nas compras públicas, tema defendido publicamente por Lula como um incentivo à indústria. O Mercosul respondeu com outro protocolo adicional, em cima do qual os dois blocos vinham trabalhando nos últimos meses.
As negociações técnicas avançaram e estavam prestes a ser concluídas, embora nem todas as discussões tenham sido superadas. Na leitura de um integrante da Esplanada dos Ministérios, as exigências que vinham sendo feitas pelo governo Fernández nas últimas etapas de negociação estavam em consonância com as demandas de Brasília.
Se Javier Milei optar por seguir nas negociações, mas abrir mão dos pleitos feitos pelo governo Fernández, o Brasil ficará isolado na negociação com a União Europeia, o que deve expor as resistências ao texto hoje presentes em Brasília.
Mensagem política
O governo brasileiro desenha uma estratégia para minimizar o desfecho negativo desta semana. Diplomatas brasileiros trabalham para que os dois blocos divulguem um comunicado com uma “mensagem política clara” de que houve avanços nas negociações e de que há vontade dos dois lados de manter o engajamento. Ainda durante os dias marcados para a cúpula do Mercosul, no Rio, o bloco deve anunciar um acordo de livre comércio com Cingapura.
“Para o governo Lula é mais importante manter o compromisso da negociação do que efetivar um texto de fato”, afirma Casarões. “Durante sua primeira passagem pela presidência, Lula não priorizou o tema, entendendo as dificuldades de conciliar a demanda do agronegócio brasileiro por novos mercados e a necessidade de proteger setores industriais brasileiros, que teriam que se abrir a produtos europeus. Essa é a razão pela qual as negociações ficaram paralisadas entre 2004 e 2010″, diz o professor da FGV.
Ele afirma que a oposição a Bolsonaro e ao argentino Maurício Macri consideraram a versão do texto assinado em 2019 prejudicial aos interesses econômicos do bloco, “na medida que fazia excessivas concessões nos temas industriais sem a devida contrapartida dos europeus, bastante protecionistas nos temas agrícolas”.
Segundo ele, o tema voltou à pauta, no entanto, “porque Lula entendeu que o seu avanço, no momento, seria importante para que o novo presidente argentino, Javier Milei, que já se pronunciou diversas vezes contra o Mercosul, não tenha incentivos para abandonar o bloco sul-americano”.
A previsão de Casarões é que as negociações sigam indefinidas, em um cenário nebuloso, mas que Brasil e Argentina busquem “articular posições comuns sobre os temas contenciosos do acordo, dando sobrevida ao Mercosul”.