Estes são anos de enormes transformações, algumas em curso. E uma delas é a que já está acontecendo nas cidades. A crise do coronavírus não é a principal causa dessas mudanças, mas está acelerando a percepção de que acontecem.
Os escritórios da XP Investimentos, por exemplo, estão se transferindo da Avenida Faria Lima, em São Paulo, onde se concentram hoje as instalações do sistema financeiro do País, para São Roque, a 60 quilômetros do centro. Isso não está acontecendo apenas porque a pandemia assim passou a exigir. A corretora está de mudança porque entendeu que poderia obter melhores resultados se se afastasse do sufoco imposto pela cidade grande. O isolamento social ajudou a entender as vantagens proporcionadas pelo trabalho em casa (home office), mas não produziu essas vantagens. Por trás desse movimento, que provavelmente será acompanhado por empresas de todos os setores, está a enorme transformação que está acontecendo no trabalho.
O coordenador do curso de Arquitetura e Urbanismo da Faculdade Armando Alvares Penteado (FAAP), Marcos de Oliveira Costa, lembra que a origem e o desenvolvimento das cidades estão fortemente ligados às condições do trabalho do ser humano. Milêniosatrás, as aldeias e os aglomerados de pessoas surgiram para facilitar o escoamento dos excedentes de produção obtidos pelas sociedades agrícolas ou para facilitar a contratação de serviços.
Nas sociedades industriais, foi preciso deixar estoques de mão de obra à disposição para executar tarefas no chão de fábrica assim que fossem necessários para garantir e aumentar a produção. As ferrovias atuaram para deslocar para os subúrbios os conglomerados quase sempre caóticos em que se transformaram os centros urbanos.
Mas o encarecimento das moradias e os congestionamentos de trânsito voltaram a infernizar as cidades, por mais que novos centros aparecessem. “Esse paradigma está em crise porque a vida moderna proporcionou a tecnologia de informação e a internet. Com esses instrumentos, proliferaram novas formas de trabalho”, explica o professor. As distâncias dos eventuais centros de decisão nos negócios deixaram de ser relevantes para a vida urbana e para o desempenho de grande número de ocupações e de atividades, desde que se possa contar com boa conexão de comunicações.
“Como o trabalho que garante melhor remuneração será executado remotamente, será inevitável o deslocamento de renda das grandes cidades para municípios menores. As metrópoles ficarão com a parcela da população de mais baixa renda”, aposta Costa.
Por aí se pode ter ideia do impacto potencial sobre o consumo, sobre o mercado imobiliário e sobre a mobilidade urbana, que, por sua vez, está fadada a mudar a paisagem de bairros inteiros. “Localidades com problemas de conexão vão perder atratividade”, especula o professor.
Mobilidade
Para Luciano Soares, professor de Engenharia do Insper, a cidade do futuro não terá tanta gente presa em engarrafamentos quilométricos a caminho do trabalho ou na volta para casa: “Idas e vindas dentro das cidades ficarão para o atendimento do lazer, como cinema, restaurantes ou caminhadas no parque”.
São razões que reduzirão a importância de possuir veículo próprio. Os deslocamentos tenderão a se concentrar em serviços sob demanda, como os da Uber ou do Cabify. E Soares avisa: tampouco haverá motoristas de aplicativos. As empresas investem hoje bilhões de dólares para viabilizar projetos de carros autônomos. E aí poderemos ter um efeito colateral positivo: com muitos carros sem condutores nas ruas, tenderá a se reduzir a poluição, tanto a atmosférica como a sonora. E, mais importante, o veículo será mais eficiente.
O antropólogo Lucas Lopes de Moraes, coordenador do Núcleo de Antropologia Urbana da Universidade de São Paulo, adverte que o avanço da tecnologia não deve ser visto como salvação. Muitas vezes, novos aparelhos e melhores possibilidades de conexão apenas reforçam mazelas antigas. Ele lembra que São Paulo mantém os mesmos problemas de mobilidade e de moradia que existiam nos anos 1980, quando a sociedade apenas começava a se informatizar.
Ou seja, por si sós, a chegada de carros autônomos e de drones e o maior emprego de tecnologia podem acelerar mudanças, mas não vão resolver graves problemas urbanos de sempre.
De todo modo, as eleições municipais vêm vindo aí. Um bom momento para debater os problemas urbanos, sejam os antigos, os novos ou os futuros. / COM GUILHERME GUERRA