BRASÍLIA - Médico, professor de jiu-jitsu, costureira, psicólogo, garçom, vaqueiro. Ao menos 156 profissões pleiteiam, hoje, em algum projeto de lei empilhado nos escaninhos do Congresso Nacional, a criação de um piso salarial nacional para a categoria.
A mobilização política pelo estabelecimento de um salário-base entrou nos holofotes pelo impasse envolvendo os profissionais da enfermagem. A categoria teve seu piso aprovado pelo Congresso e sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro e depois suspenso pelo Supremo Tribunal Federal, que questionou a origem dos recursos para essa conta e o impacto financeiro para Estados e municípios. A disputa expõe uma tendência que ganhou força nos últimos anos: buscar o Legislativo para estabelecer remunerações.
O Estadão fez um levantamento dos projetos de lei que tramitam no Congresso, seja para criação de piso salarial, seja para revisão de salário-base já existente. Os dados foram coletados junto à Câmara dos Deputados, ao Senado e à Associação Nacional de Hospitais Privados (Anahp). Entre os 156 projetos que aguardam apreciação no Legislativo, há propostas antigas, como a que cria um piso para motoristas de ônibus, texto apresentado em 1988; mas a maior parte dessas iniciativas é bem mais recente.
Nada menos que 74 projetos de lei que tratam de piso salarial foram apresentados no Congresso de 2019 para cá – quase metade do total que tramita no Legislativo sobre esse assunto. Só em 2021, por exemplo, foram apresentadas 28 propostas de criação de piso, o que equivale a mais de dois projetos de lei por mês. Neste ano, oito novas ideias foram enviadas para análise.
Especialistas em direito trabalhista reconhecem que, em algumas situações, a criação de um piso nacional pode auxiliar determinada categoria, ao estabelecer um valor mínimo de remuneração geral. Muitas vezes, porém, a depender da forma como isso é feito, acaba criando regras que ignoram uma realidade básica: a profunda diferença de custo de vida em cada região do País.
A definição do piso salarial serve, basicamente, para apontar qual é a remuneração mínima que determinada categoria vai receber, seja da iniciativa privada, seja do serviço público. Esses pisos, muitas vezes, são resultado de negociações entre empresas e instituições que representam os trabalhadores, como sindicatos e associações. O Congresso, no entanto, tem se tornado um “atalho” para definir esses valores, ou porque uma categoria não tem forte representação sindical, ou porque os acordos coletivos se arrastam por muito tempo.
“O piso salarial definido no Congresso é, na prática, uma interferência do Estado na livre negociação entre empregador e empregado. Isso poderia ser feito por meio de convenções coletivas”, diz Washington Barbosa, professor de Direito Trabalhista do Meu Curso Educacional.
Algumas propostas apresentadas argumentam ter usado como base médias nacionais. Em março do ano passado, por exemplo, o senador Zequinha Marinho (PSC/PA) apresentou o projeto de lei 1071, com o objetivo de regulamentar a profissão de técnico em eletricidade e fixar o piso salarial para a categoria em R$ 2.230, valor que deveria ser corrigido anualmente pela inflação.
Ao defender sua proposta, Marinho disse que o piso pleiteado foi baseado na média do salário nacional que é pago a esses profissionais, conforme dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged). “Um técnico em eletricidade e eletrotécnica ganha, em média, R$ 2.440,46 no mercado de trabalho brasileiro, para uma jornada de trabalho de 43 horas semanais”, afirmou.
A regulamentação e o piso salarial da categoria, segundo o senador, são medidas “imprescindíveis” para manter a qualidade dos serviços. “Esses profissionais devem ter habilitação especializada, pois atividades relacionadas ao seu ramo de atividade exigem seriedade e profissionalismo, não mais comportando pessoas inabilitadas”, declarou.
Busca por Legislativo tenta driblar acordos coletivos entre patrão e empregadores
O aumento no número de projetos de lei que tentam impor a criação de pisos salariais embute a tentativa de driblar a busca por acordos coletivos entre trabalhadores e empregadores, avaliam especialistas.
O advogado trabalhista Carlos Eduardo Ambiel, professor de Direito da FAAP, afirma que a criação dos pisos salariais é uma prática antiga e que, quando feita de forma negociada, pode ter efeito benéfico para determinada categoria. O problema começa, no entanto, quando essa decisão deixa de ser resultado de negociações setoriais e passa a ser objeto restrito de interesses políticos, que ignoram, muitas vezes, os efeitos práticos daquilo que será decidido.
“A própria expressão ‘piso salarial’ nasce dos acordos e convenções coletivas em que a categoria negocia e estabelece esse valor. Acontece que, hoje, isso entrou na esfera legislativa e passou a ser resultado de forças políticas, de parlamentares que querem agradar a determinado setor, ignorando os impactos financeiros do que será decidido e o fato de que cada local tem a sua realidade”, comenta Ambiel.
Um exemplo é o PL 1.365, apresentado neste ano, para aumentar o piso salarial de médicos e cirurgiões dentistas. O texto que tramita no Senado determina que o salário mínimo desses profissionais seja fixado em R$ 10.991,19 para uma jornada de trabalho de 20 horas semanais. Os médicos já possuem piso salarial estabelecido por lei há mais de 50 anos, desde 1961. “Esse critério pode até fazer sentido em uma cidade como São Paulo, mas será que é viável numa pequena cidade no interior de Goiás, nos rincões do País, ignorando tudo que envolve a realidade local?”, questiona Ambiel. “O resultado disso, muitas vezes, é a precarização do trabalho e demissões.”
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Denominador comum
O salário mínimo, todo ano reajustado pelo governo federal, tem por objetivo balizar o rendimento básico que qualquer trabalhador deve ter. Porém, devido às peculiaridades econômicas locais, cada Estado do País trata de estabelecer o seu salário mínimo regional. Enquanto o salário mínimo federal neste ano é de R$ 1.212, o mínimo de São Paulo, por exemplo, está fixado em R$ 1.284.
“O salário mínimo é um instrumento necessário em muitas regiões do País, por causa das diferenças regionais. A própria criação de valores nos Estados procura reconhecer isso. Agora, quando o debate do piso salarial de categorias acontece por meio de uma imposição legislativa, fica difícil, porque a mudança da realidade econômica não acontece apenas por uma vontade legislativa”, diz Rafael Lara Martins, advogado e mestre em Direito do Trabalho do escritório Lara Martins Advogados e presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em Goiás.
O impasse sobre o piso salarial da enfermagem envolve não apenas os efeitos da definição nacional do salário sobre categoria. Falta esclarecer quem vai, afinal, pagar a conta extra – algo que o setor de saúde já estima em cerca de R$ 10,5 bilhões por ano para os cofres municipais.
Cadê o dinheiro
O piso da enfermagem sancionado pelo presidente Bolsonaro estabelece o valor-base de R$ 4.750 para enfermeiros, R$ 3.325 para técnicos de enfermagem e R$ 2.375 para auxiliares de enfermagem e parteiras. A decisão de suspender o piso foi tomada pelo ministro do STF Luís Roberto Barroso e acompanhada pela maioria da corte. O magistrado deu 60 dias para entidades públicas e privadas de saúde se manifestarem sobre o impacto da medida na situação financeira de Estados e municípios.
Agora, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, tenta chegar a um acordo com o ministro da Economia, Paulo Guedes, sobre formas de viabilizar o pagamento do piso salarial dos enfermeiros. Quatro propostas foram levadas a Guedes, na tentativa de evitar o sangramento financeiro em Estados e municípios que dependem de recursos da União para bancar a fatura, além da manutenção das santas casas e hospitais filantrópicos sem fins lucrativos, que geralmente vivem situações financeiras delicadas.
“É legítimo buscar melhoria de remuneração, sempre, mas será que o Congresso é o melhor caminho? O que vemos, em determinadas situações, é que há falta de consistência econômica e que, em ano eleitoral, o populismo de apoio a essas medidas aumenta”, diz o advogado trabalhista Rafael Lara Martins.
Em 2015, quando o então deputado Adalberto Cavalcanti (PTB-PE) apresentou um projeto para defender um piso salarial para os vaqueiros, justificou que, “diante da importância e da complexidade da atividade desempenhada pelos vaqueiros de todo o Brasil, não nos parece razoável que a categoria não possua um piso salarial a fim de garantir os direitos básicos desses profissionais cujo trabalho é de fundamental importância para a pecuária nacional”.
Ninguém refutou a importância da categoria profissional, mas o projeto ainda não andou e segue no aguardo de avaliação das comissões da Câmara. Apesar do aumento de projetos nos últimos anos, a busca do atalho legislativo pelas categorias profissionais não é recente.
O professor de Direito Trabalhista Washington Barbosa lembra que, mesmo antes da criação da própria Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que é de 1943, pisos salariais já tinham sido regulamentados pelo parlamento, como o dos ferroviários e dos operadores de telégrafo. “Naquela época, eram as profissões com maior poder político. O que vemos na história, de maneira geral, quando estudamos teorias da remuneração e emprego, é que a ideia de forçar o mercado a pagar um valor superior acaba levando à precarização e redução de oferta de vagas.”