O projeto de decreto legislativo sustando pontos dos Decretos do Executivo sobre o setor do saneamento impede um retrocesso em uma das áreas mais importantes para o bem-estar da população brasileira.
Para além de disputas político-partidárias, o que está em jogo é a capacidade do Brasil quitar uma dívida social gigantesca representada pelo atraso de várias décadas na oferta de serviços básicos de saneamento ambiental. Basta dizer que cerca de cem milhões de brasileiros, em sua maioria nas faixas de renda mais baixas, não recebem serviços de coleta de esgoto.
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Para eliminar o atraso vexatório do saneamento brasileiro é necessário passar dos atuais R$ 17 bilhões de investimento para uma média anual de R$ 36 bilhões, algo sem precedentes na história do setor. Para que tal salto seja possível é indispensável atrair o investimento privado, promovendo a competição pelo mercado e a regulação independente de ingerência política ou econômica. Este foi o motivo pelo qual, depois de mais de década de discussão, foi aprovado o novo marco do saneamento em 2020. O novo arcabouço regulatório não foi um produto do Governo Bolsonaro, mas resultado de esforço amplo de diferentes segmentos da sociedade civil.
Os Decretos nº 11.467/23 e nº 11.466/23 do Governo Lula, editados em meio a uma sanha demolidora de projetos da administração anterior, representaram um retrocesso. Seus dispositivos abriram brecha para que algumas das empresas estatais possam operar sem necessidade sem licitação; atrasam a solução para a situação insustentável de mais de mil contratos irregulares; e adiam a comprovação da capacidade econômico-financeira de algumas companhias estaduais de saneamento básico que mantêm uma reserva de mercado. Reforçaram o vício brasileiro de procrastinação em matéria tão crucial para a saúde, educação e qualidade do meio ambiente para o povo brasileiro.
O Decreto Legislativo aprovado pela Câmara corrige parcialmente os decretos do Executivo ao sustar, dentre outros pontos: i) os §§ 13 a 17 do art. 6º do Decreto nº 11.467/23, que permitem contratos sem licitação para estatais no caso de microrregiões, aglomerações urbanas e regiões metropolitanas; ii) os §§ 1º, 2º e 3º do art. 1º, e o art. 10 do Decreto nº 11.466/23, que afrouxam os critérios para que as estatais comprovem sua capacidade econômico-financeira.
Caberia ao Senado ir além e garantir a independência da Agência Nacional de Água e Saneamento Básico como autarquia responsável pela supervisão regulatória. Isso é essencial para harmonizar as regras de um setor fragmentado no qual atuam quase uma centena de agências infranacionais. Os decretos do Executivo introduziram uma perigosa ambiguidade acerca da competência da ANA, enquanto órgão de Estado, na emissão de normas de referência sem ingerência de órgãos de governo, sujeitos às pressões da conjuntura política.
O Senado também precisa ter a sabedoria de aproveitar pontos positivos dos decretos do Governo Lula. Destaque-se o fim do limite de 25% para realização de Parcerias Público Privadas que merecem estímulo. Esta modalidade demonstrou ser útil para vários segmentos de infraestrutura e para o saneamento em particular.
O novo marco do saneamento permite benefícios sociais comprovados de mais de R$ 1 trilhão, montante comparável a outras reformas estruturais, como a da Previdência ou mesmo a tributária. Urge abandonar os pequenos interesses corporativos, paroquiais ou político-partidários em nome do sucesso do maior programa socioambiental do país e do Planeta. / Gesner Oliveira foi presidente da Sabesp (2007-11), coordena o Centro de Estudos de Infraestrutura & Soluções Ambientais da EAESP-FGV e é sócio da GO Associados.