BRASÍLIA – Coordenador do Observatório Fiscal do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre) da Fundação Getúlio Vargas, o economista Manoel Pires diz que o cenário para as contas públicas não é um filme do ator norte-americano Tom Cruise, Minority Report, em que o protagonista tem de ficar adivinhando os crimes do futuro.
Em entrevista ao Estadão, o especialista da área fiscal avalia que uma mudança na meta de zerar o déficit das contas do governo no primeiro ano do novo arcabouço fiscal pode trazer risco reputacional para o governo Lula. Mas ponderou que o sucesso da equipe do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, depende de entregar um Orçamento de 2024 “exequível” e, ao mesmo tempo, que melhore o resultado fiscal.
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“Não posso fazer uma discussão de política fiscal baseada em quando o Haddad vai mudar a meta fiscal ou não”, afirma. Ele avalia que um cenário de mudança da meta pode acontecer com as medidas de aumento de gastos que estão sendo aprovadas pelo Congresso. Na sua avaliação, grandes contingenciamentos (bloqueios) de despesas não se sustentam depois de serem adotados.
Para ele, as medidas tributárias adotadas pelo ministro têm mérito no sentido de trazer mais justiça, sem impacto negativo na atividade econômica. Os críticos das medidas apontam, justamente, que o pacote aumentando a cobrança de tributos das empresas pode afetar o crescimento da economia. “Do ponto de vista econômico, elas refletem um ajuste sensato, razoável. A questão é se esse ajuste vai acontecer na velocidade desejada para atingir a meta”, avalia.
“Existem dois instrumentos para resolver a questão fiscal: gasto (redução) e a tributação. O ideal é conciliar as duas coisas. Se o governo focar só em um, fica difícil resolver o problema”, diz.
Pires é ácido à decisão do governo de associar medidas de corte de despesas ao combate de fraudes na concessão de benefícios da Previdência Social. “Trazer essas questões para a discussão do Orçamento no curto prazo é uma abordagem absolutamente equivocada”. A seguir, os principais trechos da entrevista.
O sr. acredita que o governo vai cumprir a meta de zerar o déficit das contas públicas no ano que vem?
Eu tenho evitado tratar esse tema como algo binário entre cumprir e não cumprir a meta fiscal. Esse debate já está na rua de certa forma, mas não dá para avaliar finanças públicas só por conta disso. É importante e não quero diminuir. Temos que tratar desse tema, mas existem outras questões que precisam ser consideradas.
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O próprio Banco Central não está vendo esse ponto de cumprimento da meta de forma binária, mas de sinalização para o futuro...
Estamos falando de um contexto em que a regra fiscal mudou. Temos um Orçamento elaborado pela primeira vez com a nova regra – e isso tem de ser acomodado. O governo está apresentando uma série de medidas para melhorar a situação e tem a discussão do mérito delas. Tudo isso faz parte do combo. Tenho falado que eu tenho evitado fazer Minority Report (filme de 2002), em que Tom Cruise tem que ficar adivinhando crimes do futuro. Não posso fazer uma discussão de política fiscal baseada em quando o Haddad vai mudar a meta fiscal ou não. É uma discussão importante, mas tem um monte de outras coisas para serem consideradas.
Como avalia o desafio de zerar o déficit em 2024 à luz de um planejamento estratégico fiscal de médio e longo prazos?
O governo encaminhou o projeto de Orçamento prevendo o Orçamento equilibrado. No final das contas, o papel da equipe econômica é criar condições para solvência da dívida pública, melhorando o resultado fiscal. Mas, ao mesmo tempo, entregar um Orçamento exequível dentro das prioridades de políticas do governo. O sucesso da equipe econômica depende muito de conciliar esses dois elementos fundamentais da política fiscal. Precisamos separar a discussão do novo arcabouço fiscal, que é o conjunto de regras para a elaboração e execução do Orçamento daqui para frente, da discussão da meta fiscal, que remete à estratégia de política fiscal que a equipe econômica está apresentando. Tem que avaliar se a despesa vai ser alocada de uma maneira mais adequada daqui para frente.
E do ponto de vista da meta fiscal?
Tem que considerar se as medidas que o governo está apresentando do ponto de vista fiscal são razoáveis dentro do contexto da economia. Nesse aspecto, o governo apresentou várias medidas que vão na linha de reduzir distorções. São medidas que, ao meu ver, têm pouco impacto negativo sobre atividade econômica, apesar de fazer uma política fiscal contracionista do ponto de vista da tributação. Obviamente que o alcance da meta fiscal depende muito do sucesso dessas medidas que estão sendo implementadas, como o projeto de lei do Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais); mas há incertezas em relação às estimativas de previsão de arrecadação que estão contempladas no Orçamento. Por outro lado, tem as medidas em tramitação. Elas são menos incertas do ponto de vista do potencial arrecadatório; são medidas clássicas de tributação do Imposto de Renda, principalmente, mas existe a incerteza em relação à forma que serão aprovadas. Hoje, o esforço maior do governo é criar condições para viabilizar a aprovação dessas medidas ao longo do segundo semestre.
Mesmo com as medidas aprovadas, a dívida pública segue com trajetória de alta. Esse ponto é muito ruim para a economia e confiança na política fiscal.
Nas minhas contas, o governo chegando próximo de 1% do PIB de superávit primário, ficaremos próximos da zona de sustentabilidade.
Quando?
O resultado que equilibra a dívida é em torno de 1% (do PIB). O que vejo é um esforço para chegar a isso. Temos umas projeções no Ibre mostrando que a arrecadação de commodities cresce muito a partir de 2026, quando o ciclo de commodities, principalmente de petróleo, atinge o seu ápice. A receita governamental vai aumentar muito. Vamos chegar no nível de arrecadação que o Paulo Guedes teve no ano passado, só que aquilo foi aumento de preço e vamos chegar por conta de crescimento de quantidade.
Até que ponto o cumprimento da meta é importante? Qual o risco de flexibilização da meta para que ela seja cumprida? O que os defensores da mudança da meta fiscal não querem é enfrentar um contingenciamento forte de despesas em 2024...
A melhor forma de entender o arcabouço é que ele reflete, por um lado, um série de restrições do governo com relação a eventuais cortes de despesas e, ao mesmo tempo, ajuda em alguns defeitos que as regras fiscais anteriores tinham, no sentido de oferecer uma pouco mais flexibilidade. Por um lado, do ponto de vista institucional, o arcabouço traz dois ganhos importantes em relação à forma com que a gente pensava a regra fiscal, que é oferecer uma pouco mais de flexibilidade e melhora a gestão do ponto de vista do enforcement (aplicação). Ele apresenta medidas mais proporcionais para casos em que você possa eventualmente ter dificuldade para cumprir a meta; ter um conjunto de sanções mais claras, o que antes não acontecia.
As sanções são suficientes?
Do ponto de vista das características do arcabouço fiscal, eu vejo as restrições governamentais falando muito mais fortes. Estamos falando de um governo de esquerda que tem uma preocupação social e que vem na esteira de uma agenda de corte de gastos a que ele se contrapôs durante muitos anos. A reforma da Previdência, compressão dos salários dos servidores. O governo, nos últimos anos, ficou sempre na iminência de ficar numa situação de shutdown (paralisação da máquina pública). Isso gerou um esgarçamento do tecido social e da gestão pública. O governo foi eleito para resolver isso. Essa é uma restrição forte no desenho do novo arcabouço. O governo tem uma estratégia de ajuste que muda o foco da discussão. Dado que precisa reorganizar a administração pública de alguma forma, a solução para fazer o ajuste foi do lado das receitas. Existem dois instrumentos para resolver a questão fiscal: gasto (redução) e a tributação. O ideal é conciliar as duas coisas. Se o governo focar só em um, fica difícil resolver o problema. Até o momento, o que eu vejo medidas muito sensatas do ponto de vista econômico e do mérito.
Quais?
Me refiro à tributação de (fundos) offshore (no exterior), de fundos fechados (exclusivos), dos incentivos fiscais, a própria questão do voto de qualidade (voto de “minerva” do Carf. Se deixa da forma como estava, tem um viés do empate muito claro pró-contribuinte, pró-litígio. Tem os créditos do ICMS do PIS/Cofins, que era uma questão não resolvida na decisão do STF (Supremo Tribunal Federal). Todas essas iniciativas têm um potencial de arrecadação relevante são justas – seja do ponto de vista do mérito, do sentido de justiça tributária e, ao corrigir distorções, há evidência empírica mostrando que o impacto sobre a atividade econômica é muito baixo. Do ponto de vista econômico, elas refletem um ajuste sensato, razoável. A questão é se esse ajuste vai acontecer na velocidade desejada para atingir a meta. O que espero do arcabouço e do conjunto medidas é que a gente consiga melhorar a situação fiscal dentro de um ciclo de governo. Se o governo apresentar uma melhora significativa ao longo dos quatro anos, vamos sair melhor.
Politicamente, o que acontecerá se o ministro Haddad, em 2024, tiver de fazer um grande contingenciamento caso haja frustração do pacote de medidas de aumento de receitas?
Volto ao meu ponto inicial. A ambição da equipe econômica é combinar as duas coisas: criar condições para cumprir a meta e para que o Orçamento seja exequível. Se, ao final das contas, for levado a fazer um contingenciamento (bloqueio preventivo de despesas) muito forte, a nossa experiência passada é que eles não se sustentam. Em 2017, no governo Temer, com o ministro Henrique Meirelles fez um contingenciamento de R$ 35 bilhões e, no meio do ano, tiveram que desfazer e fizeram mudando a meta fiscal. O Meirelles já mudou naquele ano e mudou no ano seguinte. A nossa experiência passada é que os contingenciamentos substanciais não se sustentam ao longo do tempo; inclusive, criam dificuldade de gestão política por parte do governo. Muitas vezes o governo precisa administrar o Orçamento e fazer gestão política junto ao Congresso para aprovar suas medidas. É importante ter essa inteligência política na hora de tomar essas decisões.
O sr. está dizendo que, mais cedo ou mais tarde, a meta será alterada?
Esse é um cenário possível diante de eventuais circunstâncias de não aprovação das medidas e aprovação de medidas que geram despesas por parte do Congresso. Algumas a gente está vendo, aumento de FPM (Fundo de Participação dos Municípios) para os municípios, desoneração da folha de pagamento, PEC dos ex-territórios... São temas que precisam ser tratados para não incorrer nesse tipo de situação. Se as medidas arrecadatórias não se materializarem, de fato tem uma probabilidade de mudança de meta. Isso tem custo, mas acho que a perspectiva mais correta é trabalhar dentro do arcabouço com um cenário de melhora gradual do resultado fiscal nos próximos anos.
Mas foi Haddad que colocou essa meta fiscal apertada. Não há risco de credibilidade para o próprio arcabouço caso, no primeiro ano de vigência, tenha de haver mudança da meta?
Esse é um custo que pode acontecer.
O presidente da Câmara, Arthur Lira, e economistas de dentro e fora do mercado estão cobrando uma ação do lado das despesas. Até agora, não se viu nenhuma medida de corte de despesas e, muito menos, de gastos tributários (subsídios) – que foi a primeira ação prometida na época da transição pelo vice-presidente Geraldo Alckmin, em meio à negociação da PEC da Transição.
No governo anterior, a questão das receitas ficou muito abandonada, um cuidado que não se teve. Politicamente, fica mais palatável retomar algum nível de controle pelo lado das receitas. Eu entendo um pouco a decisão do governo de inverter um pouco a lógica porque tem muita coisa para se fazer, inclusive, por causa de decisões recentes que foram tomadas que fragmentaram a base de tributação. Estamos vendo várias medidas sendo tomadas, o que não víamos nos anos anteriores. Do lado das despesas, fizemos a reforma da Previdência; está em curso com os seus defeitos. O governo passado fez um congelamento de salários dos servidores. As maiores balas de prata foram tratadas, de alguma forma. O que eu vejo agora é que, à medida que o governo está apresentando as medidas tributárias e algumas delas criam algum tipo de constrangimento para o Congresso votar – são politicamente difíceis de serem votadas, mesmo as com mérito –, existe uma resistência do Congresso. Eu vejo o Congresso cobrar do governo outras medidas que possam eventualmente ser mais palatáveis, como a reforma administrativa. Esse um jogo que está em construção.
E quem ganha o jogo?
Há uma série de ações e reações. À medida que o presidente da Câmara questionou a necessidade de mandar uma reforma administrativa, o Haddad apresentou a discussão do projeto dos supersalários. Dentro desse jogo político, tem as medidas que estão começando a criar alguma tipo de configuração. Eu vejo que existe uma tendência para a discussão das fraudes e avaliação do gasto de longo prazo. Essas questões são super importantes e têm que funcionar no dia a dia do governo. Mas trazer essas questões para a discussão do Orçamento no curto prazo é uma abordagem absolutamente equivocada.
Por quê?
Elas são importantes de longo prazo, mas elas não têm esse potencial de resolver as questões que nós estamos tratando. As questões principais envolvem salário do servidor, salário mínimo, mínimos constitucionais (pisos de saúde e educação). Essas questões é que geram algum tipo de conflito no arcabouço fiscal. É importante, em algum momento, o governo tratar desses temas para criar condições de longo prazo para o arcabouço. Se isso não for feito –o que a equipe econômica deve tratar –, vamos ter ao longo do tempo de reavaliar o arcabouço fiscal.
O que o sr. chama de reavaliar? Mudar a trajetória de metas?
Pelo arcabouço fiscal, tem um limite para o gasto. E, por dentro do Orçamento, há gastos que crescem de forma totalmente diferente do limite global. O Orçamento deste ano tem um aumento de R$ 50 bilhões do mínimo constitucional para a saúde. Isso ocupa o espaço fiscal. Tem a decisão salário mínimo, que impacta a Previdência, e faz com que a despesa cresça de forma mais acelerada. Todas essas decisões ocupam espaço da nova regra fiscal. Tem uma inconsistência entre a dimensão micro e macro do Orçamento. Isso precisa ser tratado de maneira adequada. Isso não vai ser resolvido com combate à fraude da Previdência. A ordem de grandeza da discussão é completamente diferente.
O sr. não aposta no corte dos chamados gastos tributários, como benefícios, incentivos e subsídios?
Gasto tributário é receita. Muitas dessas coisas que o Haddad está fazendo tentam uniformizar a tributação em vários níveis. Aí, tem a questão de narrativa. A forma como ele está viabilizando isso é focar essa tributação no extrato de renda mais elevado. A questão distributiva entrou no mérito nesse rol de medidas neste momento. A Receita classifica gasto tributário quando tributa o contribuinte de forma diferenciada em relação aos demais. Os incentivos fiscais do IRPJ (Imposto de Renda Pessoa Jurídica) são um grande incentivo fiscal, mas não é tratado como gasto tributário porque todo mundo tem a mesma renúncia. Assim, como a dedutibilidade dos Juros sobre Capital Próprio (JCP). Tudo que ele está fazendo tem foco em renúncia fiscal.
O presidente Lira está colocando a reforma administrativa. Como avalia esse debate?
Há duas dimensões. Primeiro, já foi uma reforma administrativa porque houve congelamento dos salários. Gasto com folha no governo federal em termos de porcentual de PIB nunca foi tão baixo como é hoje. O ajuste macro já foi feito. Existe questões que podem ser tratadas. Por exemplo: a despeito do congelamento de salários, temos um salário de entrada muito maior do que os da iniciativa privada. Poderia, eventualmente criar espaço fiscal, dando reajuste só para determinados níveis de carreira mais avançado e congelando os salários de entrada. Essa é uma medida que poderia ser feita. Tem a questão da reforma da Previdência dos militares, que aumentou o gasto ao invés de reduzir. Tem a questão dos supersalários que o Haddad quis colocar. Esses são os grandes itens da discussão financeira que podem ser tratados. Evidentemente, tem um discussão de eficiência da reforma administrativa, de como alocar servidor, como contratar, a digitalização e como ela muda a demanda pelo serviço público. Me parece que essas questões mais institucionais estão sendo tratadas no contexto da reforma administrativa.