A discussão sobre o pagamento pelo uso excessivo de tráfego na web pelas empresas gigantes de tecnologia, ou big techs - como Netflix, Google, Meta, Amazon - às operadoras de internet móvel e fixa, como Claro e Vivo, está ganhando corpo no Brasil, com ambas as partes lapidando os argumentos para defender seus interesses.
As big techs são as principais responsáveis pela explosão no tráfego de dados nas redes, em virtude do consumo crescente de vídeo, música e redes sociais nos últimos anos. Esse aumento no consumo de banda exige investimentos das teles para aumentar a capacidade dos seus serviços de internet fixa e móvel.
Pela legislação atual, a neutralidade da rede impede que as teles façam uma cobrança diferenciada por tráfego de vídeo e áudio, que consome mais banda, em relação à navegação em sites, por exemplo.
Desde 2016, um despacho da Anatel proíbe as operadoras de reduzir a velocidade ou cobrar pelo tráfego extra, após o consumo da franquia de internet. Com isso, os custos sobem e as empresas têm uma dificuldade maior de repassá-los aos clientes.
Regulamentação até o fim do ano
A discussão já está bastante avançada na Europa, onde já existem propostas em análise, e ganhou corpo no Brasil desde fevereiro, quando a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) abriu uma consulta pública para avaliar a necessidade de se estabelecer regras específicas para os grandes usuários das redes. A autarquia espera ter essa regulamentação pronta até o fim do ano que vem.
A possível divisão dos custos de uso das redes entre as teles e big techs foi tema de debate realizado pelo Instituto para Reforma das Relações entre Estado e Empresa (Iree) na noite de quinta-feira, 15, em São Paulo.
O presidente da Claro, José Félix, afirmou no evento que a Meta (Facebook, Whatsapp e Instagram) responde por 20,1% do tráfego de dados dos clientes da operadora. Em seguida vêm o Google (dono do YouTube e do Gmail), com 17,6%, e a Netflix, 15,1%. Em sua avaliação, há uma situação injusta de mercado, uma vez que o faturamento das operadoras não cresceu na mesma proporção que o das provedores de conteúdo. Por outro lado, o custo para construção das redes avançou exponencialmente. “É totalmente injusto”, disse.
Para ele, a neutralidade das rede deve ser revisada. Sem isso, as teles poderiam pressionar provedores a fechar acordos comerciais. “Vamos desregular o mercado, deixar que as partes se resolvam”, disse. “Vou negociar com o Google, sim. Eu não vou massacrar ele. É mais fácil ele me massacrar”, brincou.
A vice-presidente da Telefônica Brasil (dona da Vivo), Camilla Tapias, disse que as operadoras têm limitações econômicas porque seria complicado aumentar o preço para o consumidor final. “Os consumidores não têm condições de suportar a manutenção do crescimento de gastos com as redes sozinhos”, afirmou. “O que cobramos não é suficiente para suportar esse crescimento exponencial do tráfego.”
Outro problema está na regulação. “O problema está dado e bem delineado”, afirmou. “Temos insuficiência de retorno econômico das operadoras para arcar com esse crescimento das redes”.
Efeito cascata
A visão das operadoras, entretanto, é contestada pela Internet Society, organização global que defende a liberdade dos provedores de conteúdo. Para a assessora sênior de Políticas e Advocacy da instituição no Brasil, Paula Bernardi, uma eventual cobrança das big techs implicaria no repasse desses custos onerando o consumidor final.
“Os usuários são os geradores de tráfego ao acessar determinado serviço na Internet. Eles já pagaram pelo pacote de dados. Se houver cobrança pelo uso das redes pelas grandes empresas, haveria efeito cascata de repasse desse custo ao consumidor final”, diz. Além disso, ela considera inviável que os provedores de conteúdo venham a negociar contratos específicos com as diversas operadoras de internet móvel e fixa espalhadas em cada um dos países.
Empresas como Google e Meta também foram convidadas para participar do debate no Iree, mas não enviaram representantes.
O que diz o poder público
O presidente da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), Carlos Baigorri, disse que as plataformas digitais ficaram grandes demais e que passaram a incomodar. “São como uma planta em um aquário que começa a crescer e a tomar todo o espaço até que fica uma situação insustentável”, afirmou.
Esse incômodo atinge as operadoras, que reclamam da pressão de custos; a sociedade, que vem sofrendo com disseminação de notícias falsas nas redes; e até o próprio poder público, disse ele.
“Essas empresas (big techs) têm poder de influência muito grande sobre a sociedade brasileira. É até maior que do presidente da República. Se o presidente Lula fizer uma manifestação nos canais de rádio e tv, talvez não tenha a mesma repercussão que uma manifestação do Telegram em sua rede”, disse Baigorri.
Segundo ele, as grandes empresas devem ser chamadas a assumir determinadas responsabilidades pelo uso das redes - o que hoje não está previsto na legislação. “Nenhum grande poder pode ficar ‘unchecked’” (não checado)”, disse.
O conselheiro da Anatel, Arthur Coimbra, afirmou que a solução possivelmente passará pela permissão para que as empresas cheguem a um acordo entre si. “Nesse debate, é comum vermos as teles de um lado e as plataformas de outro. Mas, na verdade, elas estão do mesmo lado. Se o barco afundar, todas vão afundar. Então, talvez exista espaço para uma solução privada, uma conversa entre as partes. A Anatel vai fazer o seu papel, de debater o caso”, disse, referindo-se à consulta pública que foi aberta.
Por sua vez, o professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e ex-conselheiro do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), Cleveland Prates, alertou que uma eventual intervenção regulatória pode alterar a estrutura de preços dos serviços de Internet e aplicações de uma maneira imprevisível e ineficiente, além de até mesmo vir a inibir a inovação e a competição no setor.
Uma saída possível, em sua opinião, seria dar liberdade para que as empresas fechem acordos entre si. “A melhor forma é estimular que as partes conversem e cheguem a acordos privados”, disse Prates.
Outra alternativa seria permitir às teles cobrar dos usuários finais pela quantidade de dados consumidos, assim como já acontece nas contas de luz e água, por exemplo. Isso ajudaria a inibir o consumo desenfreado, como streaming de vídeo ligado sem ninguém assistindo, o que aliviaria o tráfego desnecessário das redes. Prates também recomendou a revisão do custo regulatório de modo a desonar as operadoras.