Nos últimos anos, desde o início da pandemia da covid-19, a falta de semicondutores, ou chips, se tornou uma enorme dor de cabeça para indústrias mundo afora. Atrasos na produção de equipamentos eletrônicos ou automóveis se tornaram frequentes pela falta desses produtos. E a má notícia é que ainda deve levar algum tempo para esse fornecimento se regularizar, trazendo implicações para o crescimento e a inflação globais.
A pesquisadora do Federal Reserve (Fed) de Chicago Kristin Dziczek publicou um artigo no qual faz uma análise sobre os motivos de, segundo ela, a crise dos semicondutores ainda não ter acabado. Ela cita, por exemplo, uma seca prolongada em Taiwan, paralisações relacionadas à covid-19 na China e a guerra na Ucrânia. “A combinação desses fatores continua a dificultar o fornecimento de produção suficiente para atender à demanda global de semicondutores”, destaca.
Após pressão popular, medidas de relaxamento foram tomadas pelo governo de Xi Jinping, mas o presidente da Associação Brasileira de Semicondutores (Abisemi), Rogério Nunes, afirma que a pandemia continua preocupando. “A China produz também bens finais, como celulares e computadores, que usam semicondutores. E, se esses produtos não forem fabricados, temos sobra de chips. Então, o que ocorre no país asiático com a pandemia influencia diretamente tanto a oferta quanto demanda”, completa Nunes.
Para o estrategista-chefe do banco Voiter e especialista em China, Roberto Dumas, Xi Jinping está numa “sinuca de bico”: ao flexibilizar, o número de mortes e contaminação está aumentando, gerando caos sanitário, pois a taxa de vacinados é baixa, especialmente entre idosos. Se ele não relaxasse, a população poderia se revoltar ainda mais. Segundo o economista, diante de um potencial novo choque na cadeia de semicondutores, os bancos centrais podem aumentar ainda mais os juros. “Em um momento em que ainda estamos tentando controlar o impacto inflacionário da pandemia e da guerra na Ucrânia, isso prejudica ainda mais o ano de 2023″, completa.
William Castro Alves, estrategista-chefe da Avenue, avalia que o trabalho dos bancos centrais pode ser dificultado, mas faz a ressalva de que a maior parte da inflação vem de aluguel, despesas com saúde, alimentos, energia e fatores menos diretamente ligados à indústria de semicondutores.
Já o analista da Empiricus Matheus Spiess diz que, se esse choque de oferta acontecer, ele impulsionaria a elevação dos preços, o que poderia fazer com que os bancos centrais continuassem a subir juros ou os mantivessem em um nível alto por mais tempo, gerando recessão econômica. “Além disso, os semicondutores teriam um impacto na própria atividade, pois alguns elos da cadeia produtiva ficariam sem operar com a falta do chips, como foi o caso dos automóveis na pandemia”, completa.
Imbróglios geopolíticos
Porém, Spiess ressalta não enxergar espaço para um grande choque de falta de semicondutores, como aconteceu no começo da pandemia, a menos que haja imbróglios geopolíticos graves, como “a possível, mas de pouca probabilidade, invasão chinesa ao território de Taiwan”. Em entrevista ao Estadão/Broadcast, Mark Matthews, chefe de pesquisa na Ásia do Julius Baer, explica que uma invasão chinesa teria um grande impacto, pois Taiwan produz 65% dos semicondutores do mundo e 90% dos chips avançados.
Em 26 de dezembro, as Forças Armadas da China enviaram 71 aviões e sete navios para a região de Taiwan, em uma mostra de força de 24 horas direcionada à ilha. Em resposta, Taiwan decidiu ampliar o período de serviço militar obrigatório, de quatro meses para um ano, em meio à crescente pressão chinesa.
Para Dumas, a potencial invasão pela China está sendo subestimada. “Xi Jinping não para de falar, é difícil acreditar que ele não vai invadir”, alerta. “A China é um bruta participante do supply chain do mundo. O que o mundo está fazendo para diminuir essa dependência em caso de guerra?”, questiona.
Controle americano
Em agosto de 2022, o presidente Joe Biden assinou a Lei de Microchips e Ciência, que forneceu US$ 52 bilhões para incentivar a fabricação de semicondutores nos EUA, e intensificou os controles da era Trump - que, entre 2017 e 2020, realizou uma ampla gama de ações comerciais nas indústrias de alta tecnologia, incluindo tarifas e controles de exportação, contra a China. Na época, o país asiático afirmou que a lei americana “distorceria as cadeias globais de fornecimento de semicondutores e perturbaria o comércio internacional”.
O Barclays estima que essas medidas adotadas pelos EUA desde 2017 provavelmente custaram à China mais de US$ 100 bilhões, com “implicações substanciais para uma indústria chinesa de semicondutores que atualmente está com pouca autossuficiência”. Por outro lado, para Spiess, o trabalho que Biden tem feito pode ser um choque positivo para a indústria e para geração de empregos americana e médio e longo prazo, apesar de piorar a relação entre os países.
Segundo reportagem da agência Reuters, a China está trabalhando em um pacote de apoio de mais de US$ 143 bilhões para sua indústria de semicondutores, em um grande passo em direção à autossuficiência e para conter as medidas dos EUA. Além disso, o país asiático solicitou ajuda à Organização Mundial do Comércio (OMC) contestando as ações americanas.
Matthews explica que os semicondutores podem ser considerados o novo petróleo, pois são uma parte essencial de muitos produtos, incluindo os militares. “Eles são, portanto, a espinha dorsal da economia moderna e um componente do status de superpotência. De 37% em 1990, a participação dos EUA na fabricação global de semicondutores caiu para 11%. Em discurso na inauguração da nova fábrica da Taiwan Semiconductor Manufacturing Company (TSMC) no Arizona, o presidente Biden prometeu voltar a 30%.”
Por outro lado, ele destaca que a China tem intenções claras de se tornar um player dominante nesta área. “Essa ‘guerra de chips’ será uma coisa constante, até que americanos e europeus decidam que construíram fábricas de semicondutores suficientes para não serem mais vulneráveis a interrupções na cadeia de suprimentos na Ásia, ou até que a China esteja satisfeita com seus próprios semicondutores”, completa.
Perspectivas
A agência de classificação de risco Fitch acredita que a indústria global de semicondutores deve enfrentar um período desafiador de elevada volatilidade e ventos contrários significativos “devido a uma deterioração global do ambiente macroeconômico e um período de crescente risco político global”. “Esperamos que o risco geopolítico se torne o maior risco para a indústria de semicondutores em 2023, tanto do lado da oferta quanto do lado da demanda”, prevê a agência. “As interrupções de fornecimento que o setor experimentou no período de 2020-2021 devem melhorar substancialmente em 2023 devido à capacidade expandida das fábrica e correções de estoque, o que aumentará a pressão sobre a demanda. Especialmente na indústria automobilística, espera-se que continuem ocorrendo interrupções.”
De acordo com Spiess, o problema deve ficar principalmente para o lado da demanda, que vai sentir a queda da atividade global no curto prazo, em meio à iminente recessão. Reportagem do The Wall Street Journal mostrou que os estoques de chips já estão crescendo, “refletindo o que está acontecendo na economia em geral: varejistas estão presos com mercadorias em suas prateleiras, e os produtores de uma variedade de produtos em alta demanda no início da pandemia agora enfrentam um excesso”.
“No horizonte de 3 a 5 anos já vemos a retomada de uma perspectiva positiva para o setor ao passo que a produção vai se tornando mais regional e se distanciando de um meio mais refém de conflitos geopolíticos”, destaca Spiess. Nunes afirma ainda que a tendência é que os países busquem estar inseridos na cadeia produtiva de semicondutores de modo que não sejam pegos de surpresa e diminuam a extrema dependência de Taiwan. Ele cita que, de 2019 até 2024, 84 novas fábricas de semicondutores serão instaladas no mundo.