THE NEW YORK TIMES - Uma incorporadora chinesa que servia de modelo num setor repleto de empresas com gosto pelo risco está na corda bamba e à beira de um default. Com pouco dinheiro, uma das maiores gestoras de ativos da China deixou de pagar os investidores. E bilhões de dólares saíram das bolsas de valores do país.
Na China, agosto tem sido uma experiência vertiginosa.
O que começou há três anos como medidas severas contra o comportamento arriscado das construtoras e, em seguida, uma desaceleração imobiliária subsequente, evoluiu de forma perigosa e rápida neste mês. A economia como um todo tem sido ameaçada e a confiança dos consumidores, das empresas e dos investidores abalada.
Até agora, os formuladores de políticas da China, que costumam ser pragmáticos, pouco fizeram para amenizar as preocupações e parecem determinados a reduzir a dependência econômica do país do setor imobiliário.
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“O que está acontecendo no mercado imobiliário chinês é realmente sem precedentes”, disse Charles Chang, que lidera as classificações de crédito de empresas da Grande China na Standard & Poor’s.
Nas últimas três décadas, conforme a população da China aumentava e as pessoas migravam aos montes para ambientes mais urbanos em busca de melhores oportunidades, as incorporadoras não conseguiam construir apartamentos modernos rápido o suficiente, e o setor imobiliário se tornou o motor de uma economia em transformação.
Ele empregava milhões e oferecia uma forma das famílias investirem suas economias. Atualmente, o setor é responsável por mais de 25% de toda a atividade econômica.
A dependência da China do setor imobiliário foi lucrativa durante um período que parecia ser um boom sem fim das construções, mas se transformou em dívidas após anos de empréstimos e construções em excesso. Quando a China estava crescendo mais rápido, os excessos foram disfarçados, com as incorporadoras tomando mais empréstimos para pagar as dívidas crescentes.
No entanto, agora a China está tendo dificuldades para recuperar o prumo depois de deixar para trás os lockdowns paralisantes impostos por seus líderes, e muitos de seus problemas econômicos têm raízes no setor imobiliário.
Os consumidores chineses estão gastando menos, em parte porque uma queda nos preços dos imóveis afetou suas economias, muitas delas atreladas às propriedades. Os empregos em áreas ligadas à habitação — construção, paisagismo, pintura —, que já foram abundantes, estão desaparecendo. E a incerteza sobre até onde a crise pode se alastrar está deixando empresas de todos os tamanhos com medo de gastar.
Os governos locais, que dependem da venda de terras para as incorporadoras para bancar os programas municipais, estão reduzindo os serviços.
Instituições financeiras conhecidas como empresas fiduciárias, que investem bilhões de dólares em nome de empresas e indivíduos ricos, estão encarando prejuízos por empréstimos arriscados concedidos ao setor imobiliário, provocando reclamações de investidores furiosos.
A crise é um problema criado pelo próprio governo. As agências reguladoras permitiram que as incorporadoras se atolassem em dívidas para financiar uma estratégia de crescimento a qualquer custo durante décadas. Então intervieram repentina e drasticamente em 2020 para evitar uma bolha imobiliária. Elas interromperam o fluxo de dinheiro barato para as maiores empresas do setor imobiliário da China, deixando muitas com pouco dinheiro.
Uma após a outra, as empresas começaram a vir abaixo, pois não podiam pagar suas contas. Mais de 50 incorporadoras chinesas deram calote ou não conseguiram pagar dívidas nos últimos três anos, segundo a agência de classificação de crédito Standard & Poor’s. Os defaults escancararam uma realidade do boom imobiliário da China: o modelo de empréstimo para construção só funciona enquanto os preços continuam subindo.
Conforme a crise se agravava, os formuladores de políticas chineses contrariaram os apelos para intervir com um grande pacote de resgate. Em vez disso, optaram por gestos menores, como flexibilizar as exigências de hipotecas e reduzir as taxas de juros.
Em um editorial na sexta-feira, o jornal estatal “Diário Econômico” (Economic Daily) disse que levaria um tempo até que as políticas recentes surtissem efeito: “Devemos estar seriamente conscientes de que o processo de atenuar o risco não pode ser concluído da noite para o dia, e o mercado deve dar a isso uma certa dose de paciência”.
Os formuladores de políticas toleraram as consequências das medidas severas contra o setor imobiliário porque mesmo as empresas que não conseguem pagar todas as dívidas continuaram a construir e entregar apartamentos.
A China Evergrande, por exemplo, deixou de pagar US$ 300 bilhões em dívidas em 2021 e, mesmo assim, conseguiu terminar e entregar 300 mil apartamentos dos mais de um milhão pelos quais recebeu dinheiro, mas não conseguiu finalizar antes de quebrar. A Evergrande entrou com pedido de proteção contra falência nos Estados Unidos na quinta-feira.
Mas muita coisa mudou nos últimos meses. As famílias estão evitando despesas altas e as vendas de apartamentos despencaram. Esse impacto mudou a sorte da Country Garden, uma gigante do setor imobiliário que já foi apresentada como modelo pelo governo. A empresa está prevendo um prejuízo de até US$ 7,6 bilhões no primeiro semestre do ano e diz estar enfrentando o maior desafio de seus negócios em três décadas de história.
A Country Garden tem apenas algumas semanas para conseguir o dinheiro para pagar os juros de alguns de seus títulos ou fazer como outras empresas e dar calote. Ela também deve centenas de bilhões de dólares por contas não pagas.
Essas incorporadoras assustaram os compradores de imóveis que já estavam reticentes. Em julho, as vendas de imóveis novos pelas cem maiores incorporadoras da China caíram 33% em comparação com o ano anterior, de acordo com dados da China Real Estate Information Corp. As vendas também caíram 28% em junho.
Os investidores temem que os formuladores de políticas não estejam agindo rápido o bastante para impedir uma crise maior.
“Não acho que eles já tenham encontrado a solução certa para resolver os problemas”, disse Ting Lu, economista-chefe na China da Nomura. Ele e seus colegas alertaram que a queda nas vendas de imóveis e a inadimplência das incorporadoras podem levar a uma reação em cadeia que ameaça a economia como um todo.
O temor se espalhou por outros mercados. Em Hong Kong, onde muitas das maiores empresas da China estão listadas, a confiança caiu tão drasticamente que as ações despencaram e o mercado entrou em uma tendência de baixa, uma queda de 21% em relação ao pico registrado em janeiro. Nas últimas duas semanas, os investidores retiraram US$ 7,5 bilhões das ações chinesas.
Os problemas do setor imobiliário também estão se espalhando para o chamado sistema bancário paralelo da China de empresas financeiras fiduciárias. Estas instituições oferecem investimentos com retornos maiores do que os dos depósitos bancários convencionais e investem com frequência em projetos imobiliários.
Os problemas mais recentes surgiram no início deste mês. Duas empresas chinesas de capital aberto informaram ter feito investimentos com a Zhongrong International Trust, que administra cerca de US$ 85 bilhões em ativos, e disseram que a Zhongrong não pagou às empresas o que devia a elas. Não ficou claro se estes investimentos estavam ligados ao setor imobiliário, mas a Zhongrong era um dos principais acionistas de vários projetos de incorporadoras inadimplentes, de acordo com o jornal South China Morning Post. A Zhongrong não respondeu ao convite de posicionamento enviado por e-mail pelo Times.
Um grupo de investidores chineses furiosos se reuniu do lado de fora dos escritórios da Zhongrong em Pequim, exigindo que a empresa “devolvesse o dinheiro” e pedindo uma explicação. Não se sabe ao certo quando o protesto ocorreu; vídeos dele foram publicados no Douyin, a versão chinesa do TikTok, este mês.
A manifestação fez lembrar de outros atos de rebeldia na China com raízes na crise imobiliária. Tais eventos são raros, mas existem alguns exemplos recentes.
Em fevereiro, milhares de aposentados em Wuhan confrontaram policiais para protestar contra os cortes no seguro médico fornecido pelo governo para idosos. Essas reduções eram um sinal da pressão sobre os governos locais provocada em parte pela desaceleração do setor imobiliário que prejudicou as vendas de terras, uma fonte estável de receita.
No ano passado, centenas de milhares de proprietários de imóveis se recusaram a pagar as hipotecas dos apartamentos inacabados. Alguns publicaram vídeos de protesto nas redes sociais, enquanto coletivos de proprietários acompanharam os boicotes on-line.
Ambas as manifestações chamaram a atenção, mas a força delas diminuiu aos poucos quando o governo interveio para limitar as discussões nas redes sociais, ao mesmo tempo em que adotou algumas medidas para aliviar as tensões. Na semana passada, foi publicado um novo vídeo do lado de fora dos escritórios da Zhongrong no qual não se via protestos, mas carros e vans da polícia estacionados por ali e nas imediações.