RIO - A quebra do banco americano Lehman Brothers, em setembro de 2008, fez o dólar disparar e resultou em perdas bilionárias para empresas brasileiras, que operavam com os chamados “derivativos tóxicos”, que apostavam numa cotação mais baixa da moeda americana. Diversos bancos se coordenaram para renegociar dívidas e evitar uma quebradeira geral. Em alguns casos, a saída foram fusões e aquisições, como ocorreu com Sadia e Aracruz. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) teve de intervir para salvar companhias.
Não há dados oficiais, mas estimativas apontam que pelo menos 200 empresas se envolveram nessas operações arriscadas. Em 2009, o Banco de Compensações Internacionais (BIS), banco central dos bancos centrais, estimou as perdas do setor privado nacional em US$ 25 bilhões. Estudo dos ex-diretores do Banco Central (BC) Mário Mesquita e Mário Torós estimou que a exposição às operações era de US$ 37 bilhões em setembro de 2008.
Os casos mais emblemáticos foram da fabricante de celulose Aracruz, que perdeu US$ 2,1 bilhões, e da gigante de alimentos Sadia, com rombo de R$ 2,5 bilhões. Especialistas e fontes que acompanharam a crise refutaram, em entrevistas ao Estado, que tenha havido problema sistêmico, capaz de contaminar bancos e empresas de forma generalizada.
Para alguns, regras bancárias e de mercado, mais rígidas no Brasil do que em outros países, frearam uma disseminação ainda maior dos "derivativos tóxicos". Para outros, a coordenação entre os bancos evitou o pior. O trabalho começou com um combate ao "incêndio", liquidando os títulos arriscados, com prejuízo para as empresa. A partir daí, vinha a reestruturação, com alongamento de dívida e, em alguns casos, mudança de controle.
Na Aracruz, a venda para a Votorantim Celulose e Papel (VCP) vinha sendo negociada desde agosto, antes de o problema aparecer. Com o rombo dos derivativos, o negócio só foi adiante por causa do BNDES.
Se a dimensão exata das perdas nas empresas familiares de médio porte é difícil de ser mensurada, os rombos em duas companhias abertas de destaque na Bolsa chamaram a atenção também para falhas de gestão. "Os conselhos falavam de governança, mas não exerciam seu papel", disse o advogado Otávio Yazbek, ex-diretor da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), o órgão regulador do mercado.
Segundo Yazbek, para reagir à crise, a CVM criou novas regras, obrigando as empresas a informarem ao mercado sobre riscos com derivativos. Em outra frente, usou os processos administrativos contra executivos e conselheiros da Aracruz e da Sadia, concluídos anos depois, para frisar que os conselheiros, que procuraram se eximir de culpa, devem exercer o "dever de diligência", ou seja, precisam questionar e se informar sobre os atos da direção da empresa.
Os diretores financeiros, Isac Zagury, da Aracruz, e Adriano Ferreira, da Sadia, foram responsabilizados pelas próprias companhias, inclusive na Justiça - Ferreira ganhou a disputa, enquanto Zagury chegou a um acordo para encerrar a ação.
Na CVM, o processo da Sadia foi julgado no fim de 2010, condenando dez dos 14 acusados a pagarem R$ 2,6 milhões em multas. O processo da Aracruz terminou em acordo, em 2013, com 14 acusados pagando multas de R$ 14,7 milhões para fugir da condenação.
"Houve uma evolução importante dos mecanismos de governança", disse Alexsandro Broedel, ex-diretor da CVM e relator do processo contra a Sadia, que hoje é diretor de relações com investidores do Itaú.
Hoje as empresas não se arriscam mais em "derivativos tóxicos". Os bancos também melhoraram seus controles. Para um executivo que há dez anos atuava em um banco de investimentos, as companhias subestimaram riscos, mas também houve casos de instituições financeiras imprudentes.
Bancos de investimento de médio porte, especialmente estrangeiros, foram os que mais ofereceram os títulos. "Foi um desserviço que os bancos ofereceram. Os títulos eram lucrativos, mas com uma dose de risco absurda", disse o executivo, sob condição do anonimato.
BNDES investiu R$ 2,8 bilhões nas operações envolvendo Aracruz e Sadi
Técnicos do BNDES viveram momentos de tensão entre 2008 e 2009. A instituição de fomento trabalhou na coordenação de bancos para reestruturar dívidas e viabilizar operações de fusão e aquisição em empresas atingidas pela crise internacional, algumas por causa dos derivativos. Nas operações envolvendo Aracruz e Sadia, o BNDES investiu R$ 2,8 bilhões.
Após aportar R$ 2,4 bilhões, o BNDES ficou com pouco mais de 30% da Fibria, gigante formada com a fusão da Aracruz com a VCP, em 2009. Nove anos depois, com a aquisição da Fibria pela Suzano, anunciada em março deste ano, o banco embolsará cerca de R$ 8,5 bilhões e ainda manterá 11,1% na nova gigante mundial da celulose. "O processo terminou pelas forças do mercado viabilizando o desinvestimento do banco", disse a diretora de Investimento do BNDES, Eliane Lustosa, garantindo que o banco saiu ganhando.
No caso da Sadia, a participação do BNDES foi mais modesta, com R$ 400 milhões de investimento, também em 2009, na fusão com a Perdigão, formando a BRF. Segundo uma das fontes ouvida pelo Estado, a participação do banco de fomento nesse caso foi mais de coordenação.
O BNDES ainda atuou na reestruturação de dívidas de empresas do setor sucroalcooleiro. As usinas foram atingidas pela crise de 2008 no fim de um ciclo de investimentos. De dez operações reestruturadas, três ou quatro envolviam perdas com derivativos, disse a fonte.
Contratos podem ser usados por empresas como mecanismo de proteção
Derivativos são contratos cujo valor é derivado de outro ativo, como commoditties (soja, minério de ferro etc.) ou ações, taxas de juros e moedas. O dólar, que é um ativo, pode ser comprado e vendido no mercado à vista. Já o direito de comprar o dólar a certo valor até certa data é um derivativo.
Esses contratos são muitas vezes usados por investidores para obter ganhos, mas também servem, para empresas com receita ou dívidas em dólar, como mecanismo de proteção, ou "hedge", no jargão do mercado. O objetivo aí é garantir, no futuro, uma negociação por uma cotação cambial pré-definida.
Na crise de 2008, os derivativos "tóxicos", conhecidos como "target forward", previam que, caso o dólar ficasse com a cotação acima da definida, o prejuízo para o investidor poderia ser aumentado.
Em contrapartida, ofereciam um ganho um pouco maior caso o dólar ficasse abaixo da cotação definida. O dólar vinha caindo desde 2003, então as empresas que fizeram as operações vinham ganhando. Até que tudo mudou em 15 de setembro de 2008.