BRASÍLIA – Em meio a cobranças no mercado financeiro por um corte de gastos estrutural, que garanta a sustentabilidade do arcabouço fiscal, deputados dizem que um eventual endurecimento das propostas apresentadas pelo governo Lula não virá do Congresso sem que o Poder Executivo proponha um ajuste maior. Em um movimento contrário, parlamentares resistem a mexer no Benefício de Prestação Continuada (BPC), pago a idosos e pessoas com deficiência de baixa renda, e o pacote corre risco de desidratação.
O governo enviou três propostas do pacote fiscal para a Câmara. Os deputados aprovaram ontem a urgência de dois projetos relacionados aos novos gatilhos do arcabouço, ao ganho do salário mínimo e à revisão em programas sociais, como o Benefício de Prestação Continuada (BPC). Um deles foi aprovado com apenas três votos além do necessário.
Há ainda uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC), que também mexe no BPC, nos supersalários do funcionalismo público e no Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb).
Os parlamentares, contudo, ainda não se comprometeram em aprovar o conteúdo dos projetos. Líderes da Câmara e articuladores do Palácio do Planalto afirmam que o pacote será aprovado ainda neste ano; a dúvida, no entanto, é sobre o tamanho do ajuste. Além disso, há ainda alguns obstáculos, como o impasse envolvendo o pagamento de emendas parlamentares após decisão do Supremo Tribunal Federal (STF).
Economistas e integrantes do mercado financeiro avaliam que o pacote é insuficiente para garantir o equilíbrio das contas públicas. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, manifestou confiança nas propostas, mas admitiu a necessidade de novas medidas no futuro e não descartou voltar ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
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No Congresso, integrantes da esquerda e da direita concordam o diagnóstico de que é impossível manter o arcabouço fiscal intacto e as regras atuais dos benefícios da Previdência Social, vinculados ao salário mínimo, e dos pisos de saúde e educação, que crescem conforme a arrecadação do governo. O remédio proposto é que é diferente. Uma ala pressiona por cortes mais duros e outra por mudanças no arcabouço.
Uma das principais resistências na Câmara é em relação às mudanças no BPC. O benefício é pago para idosos e pessoas com deficiência de baixa renda, no valor de um salário mínimo. O pacote aumenta os critérios para calcular a renda das famílias e proíbe a retirada de rendas não previstas em lei. Na prática, isso pode fazer com que pessoas não tenham mais direito ao benefício por ultrapassar a renda de um quarto do salário mínimo.
Conforme o Estadão mostrou, quase um terço dos benefícios do BPC para pessoas com deficiência foi concedido por decisões judiciais, que triplicaram em três anos. O ministro Fernando Haddad afirmou que o governo precisa combater o que ele chamou de “indústria de liminares”. Uma das questões é que a Justiça dá a uma pessoa o direito de receber o pagamento quando o governo não possui o registro da deficiência ou não concorda com os critérios para aferir essa deficiência.
‘Munição para a direita’
A resistência a mexer no BPC começa no partido de Lula. “Tem coisa para ser modificada. A esquerda não topa mexer no BPC. É um contrassenso mexer com os mais carentes e isso está dando inclusive munição para a direita nos criticar e criticar o governo”, disse o deputado Zé Neto (PT-BA).
“Eu espero que a equipe econômica do governo do presidente Lula possa rever essa posição, porque nós não podemos cortar ou dificultar o acesso das pessoas com deficiência e dos idosos ao benefício de prestação continuada”, afirmou Valmir Assunção (PT-BA).
Em entrevista ao Estadão, o deputado Pedro Paulo (PSD-RJ), autor de uma PEC que propõe medidas mais drásticas para o governo para controlar as contas, como desindexação de benefícios ao salário mínimo e mudanças nos pisos de saúde e educação, afirmou que não há disposição atualmente no governo e no Congresso para endurecer o pacote.
“(A proposta do) BPC do jeito que está não está gerando muita economia e está gerando muita resistência”, afirmou Pedro Paulo, para quem as propostas são tímidas diante do desajuste nas contas do governo.
“Tem o discurso ‘o governo não botou a cara, não teve coragem e quer que o Parlamento tenha esse desgaste, vamos deixar esse desgaste para o governo’. É uma racionalidade óbvia que funciona com alguns líderes. Falta uma coordenação das lideranças em favor da responsabilidade fiscal”, disse ele.
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A crítica também vem de políticos de centro e da direita, principalmente do Nordeste, que querem distância do projeto que altera as regras do BPC, e de parlamentares ligados à saúde e aos direitos da pessoa com deficiência. “Esta proposta não é apenas desumana, mas também um retrato da completa insensibilidade e incompetência com que a saúde pública está sendo tratada”, disse o deputado Zacharias Calil (União-GO).
Na quarta-feira, 4, ao orientar a favor da urgência dos projetos, o líder do bloco da Maioria na Câmara, que reúne a base do governo e o Centrão, André Figueiredo (PDT-CE), deixou clara a insatisfação. “É evidente que nós queremos rediscutir o posicionamento relativo ao BPC e tantos outros pontos que precisam ser discutidos”, disse.
A reação também já ocorre no Senado, que analisará as propostas após eventual provação na Câmara. “O que está sendo proposto é desumano e ameaça milhões de brasileiros que dependem desse benefício para sobreviver”, afirmou a senadora Mara Gabrilli (PSD-SP). “Ajustar as contas públicas é necessário, mas é inadmissível que isso seja feito atacando aqueles que já estão à margem da sociedade.”
O governo espera economizar R$ 2 bilhões por ano com a revisão no BPC, gerando uma economia de R$ 12 bilhões ao longo de seis anos. No total, a economia projetada com o pacote é de R$ 71,9 bilhões entre 2025 e 2026 e de R$ 327 bilhões entre 2025 e 2030.
O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), foi lembrado recentemente por deputados que a disparada do dólar arrefeceu no mercado financeiro após falas dele e do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), se comprometendo com o pacote de gastos e adiando a discussão sobre o Imposto de Renda. Mas, de acordo com interlocutores, Lira não se comprometeu a liderar sozinho um endurecimento do pacote sem iniciativa do governo. A oposição, que já pretende votar contra o pacote, também se mobiliza para desidratar as propostas retirando as mudanças no BPC.
“É claro que nós vamos discutir, na hora certa, o mérito das matérias”, disse o líder do governo na Câmara, José Guimarães (PT-CE), durante a votação da urgência dos projetos, ao fazer um apelo pela tramitação e prometer enfrentar o conteúdo das medidas mais tarde.
“Muitos dos senhores nos colocam, com razão, restrições com relação ao PL, àquilo que está contido no BPC, às mudanças que o governo está sugerindo, muitos levantam ponderações sobre o Bolsa Família. Nós estamos inteiramente abertos para a discussão do mérito, para a discussão daquilo que é fundamental para o País, sem vetar qualquer proposta ou qualquer discussão que seja necessária”, afirmou.
Os nomes dos deputados que vão assumir a relatoria dos projetos na Câmara ainda não foram oficialmente anunciados, mas estão cotados o líder do MDB, Isnaldo Bulhões (AL), para o projeto de lei que cria restrições de acesso ao BPC, e Cláudio Cajado (PP-BA), para o projeto de lei complementar que limita o reajuste do salário mínimo ao teto do arcabouço fiscal.
Já a PEC que trata de temas como a imposição do limite a supersalários no funcionalismo, a relatoria deve ser entregue a Rubens Pereira Júnior (PT-MA).