China fecha acordos comerciais em todo o mundo sem o dólar; moeda americana pode perder hegemonia?


Participação do dólar nas reservas de outros países caiu de 66% em 2003 para 47% no ano passado, aponta estudo

Por Luciana Dyniewicz
Atualização:

Apesar de considerada pouco viável por economistas, a recente proposta do presidente Luiz Inácio Lula da Silva para que a América do Sul crie uma moeda comum para o comércio entre os países, como forma de impulsionar a integração regional, segue uma tendência global. Nos últimos meses, houve uma série de anúncios de governos que pretendem reduzir o uso do dólar em suas transações comerciais. A restrição à moeda americana no comércio, ao lado da queda de participação do dólar nas reservas internacionais globais, levantou – novamente – a discussão sobre uma possível “desdolarização”.

No centro dessas propostas de substituição da moeda americana por locais está a China, que vem tentando minar a hegemonia do dólar. Desde o fim do ano passado, Pequim anunciou acordos com Argentina, Brasil, Rússia e Arábia Saudita para reduzir a dependência do dólar (leia mais abaixo).

Entre as intenções do governo de Xi Jinping estariam aumentar a influência política e econômica da China no mundo e os ganhos com senhoriagem, isto é, com a diferença entre quanto custa para o país emitir notas de renminbi e quanto paga um estrangeiro para obter a mesma quantia da moda chinesa.

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Além da discussão na área comercial, economistas também observam que o dólar vem perdendo espaço como reserva internacional mantida por Bancos Centrais em todo o mundo. De acordo com um estudo do CEO da gestora europeia Eurizon SLJ Capital, Stephen Jen, em 2022, a participação do dólar nas reservas de outros países caiu a uma taxa dez vezes maior do que a média dos últimos 20 anos.

Jen aponta que muitos especialistas não observaram a velocidade dessa mudança por analisarem o valor nominal das reservas, sem considerar a variação na cotação do dólar. Fazendo esse ajuste, a moeda americana passou de uma participação nas reservas globais de cerca de 66% em 2003 para 55% em 2021 e para 47% em 2022.

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Também em 2022, o euro ganhou quase 5% de participação. Com o crescimento, a moeda voltou ao mesmo nível de 2003. Já o renminbi vem crescendo lentamente. Segundo o estudo, o espaço de 20 pontos porcentuais que a moeda americana perdeu nos últimos 20 anos foi ocupado principalmente pela libra (4 pontos), pelo renminbi (3 pontos), pelo iene (3 pontos) e pelo dólar canadense (3 pontos).

Autor da teoria “Sorriso do Dólar” – segundo a qual a moeda americana se fortalece quando a economia dos EUA cresce ou recua profundamente, mas enfraquece quando o desempenho é medíocre –, Jen afirma que a “erosão” do dólar como reserva internacional se acelerou com a guerra na Ucrânia. Isso porque o G7, liderado pelos EUA, “assustou” países que são grandes detentores de reservas internacionais ao congelar metade dos US$ 630 bilhões das reservas russas e ao apreender ativos, como iates, de oligarcas russos.

Participação da moeda americana nas reservas globais chegou a 47% em 2022 Foto: Clayton de Souza/Estadão
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Jen não acredita que o temor gerado por essas medidas adotadas contra a Rússia será temporário. “Suspeito que Bancos Centrais estejam genuinamente temerosos e zangados com a mudança repentina nas regras. No passado (por exemplo, Segunda Guerra Mundial), confiscos financeiros também ocorreram, mas isso foi quando os EUA, o Reino Unido e outros países que confiscaram bens alemães já estavam em guerra. Desta vez é diferente”, afirmou, por e-mail, ao Estadão.

“Isso levanta a possibilidade de que os EUA e o Reino Unido possam decidir unilateral e subjetivamente confiscar bens de países cujas políticas os desagradam. A ‘linha’ já não é clara e isso é extremamente preocupante para os países do sul global, que têm ‘valores’ ou formas de ver o mundo muito diferentes da dos EUA.”

Apesar das tendências de se evitar o dólar em transações comerciais e de substituí-lo em reservas internacionais, especialistas apontam que a moeda americana ainda continua forte no mais importante dos mercados: o financeiro, que envolve operações de hedge e investimentos. Hoje, as operações de câmbio feitas para a realização de transações comerciais não chegam a 2% do total.

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Como os EUA podem perder a hegemonia?

Diante do fato de as transações financeiras serem 50 vezes mais relevantes que as comerciais, para o dólar perder sua hegemonia, o mercado financeiro em outras partes do mundo que não os EUA precisaria crescer e melhorar, enquanto o americano teria de piorar devido a políticas econômicas inadequadas, na análise de Jen. Ainda segundo ele, essas tendências existem, mas estão hoje em sua “infância”.

“Se os EUA continuar implementando políticas ruins, como executar enormes déficits fiscais, imprimir dinheiro e promover políticas externas beligerantes. Ao mesmo tempo em que a China corrigir seu caminho e voltar a políticas sensatas, com foco em reformas liberalizantes, no lugar de insistir nas virtudes do socialismo, poderíamos ver o renmimbi rivalizando com o euro nos próximos 15 anos”, diz.

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O economista questiona ainda se investidores considerarão o dólar e os títulos do Tesouro americano portos seguros se a dívida pública dos EUA atingir uma dívida de 200% do PIB em 2050 – número estimado pelo CBO (órgão do Congresso americano que faz estudos sobre questões orçamentárias). Nesse caso, a dívida americana seria inferior apenas à do Japão.

Para o professor da Universidade da Califórnia Barry Eichengreen, o mundo está, sim, caminhando para um sistema em que o dólar perderá a hegemonia e múltiplas moedas desempenharão um papel internacional. Essa mudança, no entanto, está acontecendo “muito gradualmente”. Eichengreen não vê eventos recentes tendo acelerado essa transição.

Eichengreen: 'Esperança é que sistema com múltiplas moedas internacionais seja benéfico' Foto: Ryan Rayburn/IMF Photo
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Em entrevista ao Estadão, também por e-mail, o economista afirmou esperar que esse novo sistema será benéfico ao garantir novas fontes de liquidez internacional. “Essa é uma esperança”, destacou ele, no entanto. Isso porque, no passado, já houve momentos em que houve um sistema múltiplo pouco vantajoso, como entre 1920 e 1930, quando Inglaterra e EUA dominavam com a libra e o dólar e suas políticas econômicas instáveis.

Antes da Primeira Guerra Mundial, porém, o sistema multipolar composto por libra, franco e marco foi benéfico, dado que as políticas dos países dominantes eram estáveis.

Um dos maiores estudiosos do tema no mundo, Eichengreen aponta em seu livro “How Global Currencies Work” (Como funcionam as moedas globais, em tradução literal) que moedas de grandes economias, como da zona do euro e da China, teriam potencial para, no futuro, ter relevância internacional devido ao volume de transações transfronteiriças que realizam.

Eichengreen afirmou, ao Estadão, que novas tecnologias financeiras (plataformas de negociação eletrônica, por exemplo) facilitarão o uso de moedas de países menores. “Agora, também prevejo um papel para as moedas de economias pequenas e bem administradas: Austrália, Canadá, Noruega, Suécia, Coreia do Sul e assim por diante.”

Apesar de citar o renminbi como uma moeda com potencial devido ao tamanho da economia chinesa, o professor pondera que o controle de capital por parte do governo de Xi Jinping e o sistema financeiro ainda “subdesenvolvido” do país dificultam o uso da moeda internacionalmente.

“O sistema político do país carece de freios e contrapesos, não inspira confiança por parte dos investidores. Se você olhar para a lista de economias pequenas e bem administradas cujas moedas estão começando a desempenhar um papel internacional, notará que todas são democracias.”

Controle de capital por parte de Pequim dificulta uso da moeda chinesa internacionalmente, segundo especialistas Foto: Petar Kujundzic/Reuters

O ex-vice-presidente do Banco Mundial e membro sênior do think tank Policy Center for the New South, Otaviano Canuto, também afirma que a desconfiança dos investidores em relação ao renmimbi decorrente da intervenção do governo de Xi Jinping na economia dificulta a adoção internacional da moeda chinesa, ainda que o país aumente a presença da moeda pelo mundo em transações comerciais.

Canuto lembra ainda que, quando o Banco Central de um país precisa interferir no mercado cambial, precisa ter uma moeda amplamente aceita, inclusive entre agentes privados. “O renmimbi não é uma moeda de reserva equivalente ao dólar dado o controle de capital e a intervenção. Ainda que os EUA adotem sanções contra a Rússia, o Irã e a Venezuela, o investidor se sente menos receoso em relação a uma ordem de bloqueio de ativos por parte do governo americano do que a uma decisão arbitral do governo chinês.”

Quais foram os acordos que a China fechou para minar o dólar em transações comerciais?

Nos últimos meses, o Brasil e a China têm avançado na negociação para que o comércio e os investimentos entre os dois países sejam feitos diretamente com real e renminbi, o que exclui o dólar das transações. Em janeiro, os bancos centrais dos dois países assinaram um memorando para estabelecer uma “clearing house” no Brasil. Trata-se de um banco com liquidez na moeda chinesa para fazer a compensação das divisas sem transacionar pelo dólar.

A Rússia já adotou o renminbi como moeda de reserva primária e também anunciou que as transações comerciais com a China serão feitas em rublo e em renminbi. A moeda chinesa se tornou a mais negociada no país. Quase sem divisas internacionais, a Argentina também fechou acordo com Pequim para pagar as importações provenientes do país em renminbi.

Em dezembro passado, a China e a Arábia Saudita realizaram a primeira transação usando suas moedas. O país árabe ainda anunciou a intenção de usar a moeda chinesa como parte de suas reservas internacionais.

Três meses depois, a China fez o primeiro acordo de importação de gás natural dos Emirados Árabes em renminbi e, em abril, o primeiro-ministro da Malásia, Anwar Ibrahim, afirmou não haver razão para o país continuar “dependendo do dólar” na área de investimentos e que transações com outros países deveriam ser fechadas nas moedas locais.

Apesar de considerada pouco viável por economistas, a recente proposta do presidente Luiz Inácio Lula da Silva para que a América do Sul crie uma moeda comum para o comércio entre os países, como forma de impulsionar a integração regional, segue uma tendência global. Nos últimos meses, houve uma série de anúncios de governos que pretendem reduzir o uso do dólar em suas transações comerciais. A restrição à moeda americana no comércio, ao lado da queda de participação do dólar nas reservas internacionais globais, levantou – novamente – a discussão sobre uma possível “desdolarização”.

No centro dessas propostas de substituição da moeda americana por locais está a China, que vem tentando minar a hegemonia do dólar. Desde o fim do ano passado, Pequim anunciou acordos com Argentina, Brasil, Rússia e Arábia Saudita para reduzir a dependência do dólar (leia mais abaixo).

Entre as intenções do governo de Xi Jinping estariam aumentar a influência política e econômica da China no mundo e os ganhos com senhoriagem, isto é, com a diferença entre quanto custa para o país emitir notas de renminbi e quanto paga um estrangeiro para obter a mesma quantia da moda chinesa.

Além da discussão na área comercial, economistas também observam que o dólar vem perdendo espaço como reserva internacional mantida por Bancos Centrais em todo o mundo. De acordo com um estudo do CEO da gestora europeia Eurizon SLJ Capital, Stephen Jen, em 2022, a participação do dólar nas reservas de outros países caiu a uma taxa dez vezes maior do que a média dos últimos 20 anos.

Jen aponta que muitos especialistas não observaram a velocidade dessa mudança por analisarem o valor nominal das reservas, sem considerar a variação na cotação do dólar. Fazendo esse ajuste, a moeda americana passou de uma participação nas reservas globais de cerca de 66% em 2003 para 55% em 2021 e para 47% em 2022.

Também em 2022, o euro ganhou quase 5% de participação. Com o crescimento, a moeda voltou ao mesmo nível de 2003. Já o renminbi vem crescendo lentamente. Segundo o estudo, o espaço de 20 pontos porcentuais que a moeda americana perdeu nos últimos 20 anos foi ocupado principalmente pela libra (4 pontos), pelo renminbi (3 pontos), pelo iene (3 pontos) e pelo dólar canadense (3 pontos).

Autor da teoria “Sorriso do Dólar” – segundo a qual a moeda americana se fortalece quando a economia dos EUA cresce ou recua profundamente, mas enfraquece quando o desempenho é medíocre –, Jen afirma que a “erosão” do dólar como reserva internacional se acelerou com a guerra na Ucrânia. Isso porque o G7, liderado pelos EUA, “assustou” países que são grandes detentores de reservas internacionais ao congelar metade dos US$ 630 bilhões das reservas russas e ao apreender ativos, como iates, de oligarcas russos.

Participação da moeda americana nas reservas globais chegou a 47% em 2022 Foto: Clayton de Souza/Estadão

Jen não acredita que o temor gerado por essas medidas adotadas contra a Rússia será temporário. “Suspeito que Bancos Centrais estejam genuinamente temerosos e zangados com a mudança repentina nas regras. No passado (por exemplo, Segunda Guerra Mundial), confiscos financeiros também ocorreram, mas isso foi quando os EUA, o Reino Unido e outros países que confiscaram bens alemães já estavam em guerra. Desta vez é diferente”, afirmou, por e-mail, ao Estadão.

“Isso levanta a possibilidade de que os EUA e o Reino Unido possam decidir unilateral e subjetivamente confiscar bens de países cujas políticas os desagradam. A ‘linha’ já não é clara e isso é extremamente preocupante para os países do sul global, que têm ‘valores’ ou formas de ver o mundo muito diferentes da dos EUA.”

Apesar das tendências de se evitar o dólar em transações comerciais e de substituí-lo em reservas internacionais, especialistas apontam que a moeda americana ainda continua forte no mais importante dos mercados: o financeiro, que envolve operações de hedge e investimentos. Hoje, as operações de câmbio feitas para a realização de transações comerciais não chegam a 2% do total.

Como os EUA podem perder a hegemonia?

Diante do fato de as transações financeiras serem 50 vezes mais relevantes que as comerciais, para o dólar perder sua hegemonia, o mercado financeiro em outras partes do mundo que não os EUA precisaria crescer e melhorar, enquanto o americano teria de piorar devido a políticas econômicas inadequadas, na análise de Jen. Ainda segundo ele, essas tendências existem, mas estão hoje em sua “infância”.

“Se os EUA continuar implementando políticas ruins, como executar enormes déficits fiscais, imprimir dinheiro e promover políticas externas beligerantes. Ao mesmo tempo em que a China corrigir seu caminho e voltar a políticas sensatas, com foco em reformas liberalizantes, no lugar de insistir nas virtudes do socialismo, poderíamos ver o renmimbi rivalizando com o euro nos próximos 15 anos”, diz.

O economista questiona ainda se investidores considerarão o dólar e os títulos do Tesouro americano portos seguros se a dívida pública dos EUA atingir uma dívida de 200% do PIB em 2050 – número estimado pelo CBO (órgão do Congresso americano que faz estudos sobre questões orçamentárias). Nesse caso, a dívida americana seria inferior apenas à do Japão.

Para o professor da Universidade da Califórnia Barry Eichengreen, o mundo está, sim, caminhando para um sistema em que o dólar perderá a hegemonia e múltiplas moedas desempenharão um papel internacional. Essa mudança, no entanto, está acontecendo “muito gradualmente”. Eichengreen não vê eventos recentes tendo acelerado essa transição.

Eichengreen: 'Esperança é que sistema com múltiplas moedas internacionais seja benéfico' Foto: Ryan Rayburn/IMF Photo

Em entrevista ao Estadão, também por e-mail, o economista afirmou esperar que esse novo sistema será benéfico ao garantir novas fontes de liquidez internacional. “Essa é uma esperança”, destacou ele, no entanto. Isso porque, no passado, já houve momentos em que houve um sistema múltiplo pouco vantajoso, como entre 1920 e 1930, quando Inglaterra e EUA dominavam com a libra e o dólar e suas políticas econômicas instáveis.

Antes da Primeira Guerra Mundial, porém, o sistema multipolar composto por libra, franco e marco foi benéfico, dado que as políticas dos países dominantes eram estáveis.

Um dos maiores estudiosos do tema no mundo, Eichengreen aponta em seu livro “How Global Currencies Work” (Como funcionam as moedas globais, em tradução literal) que moedas de grandes economias, como da zona do euro e da China, teriam potencial para, no futuro, ter relevância internacional devido ao volume de transações transfronteiriças que realizam.

Eichengreen afirmou, ao Estadão, que novas tecnologias financeiras (plataformas de negociação eletrônica, por exemplo) facilitarão o uso de moedas de países menores. “Agora, também prevejo um papel para as moedas de economias pequenas e bem administradas: Austrália, Canadá, Noruega, Suécia, Coreia do Sul e assim por diante.”

Apesar de citar o renminbi como uma moeda com potencial devido ao tamanho da economia chinesa, o professor pondera que o controle de capital por parte do governo de Xi Jinping e o sistema financeiro ainda “subdesenvolvido” do país dificultam o uso da moeda internacionalmente.

“O sistema político do país carece de freios e contrapesos, não inspira confiança por parte dos investidores. Se você olhar para a lista de economias pequenas e bem administradas cujas moedas estão começando a desempenhar um papel internacional, notará que todas são democracias.”

Controle de capital por parte de Pequim dificulta uso da moeda chinesa internacionalmente, segundo especialistas Foto: Petar Kujundzic/Reuters

O ex-vice-presidente do Banco Mundial e membro sênior do think tank Policy Center for the New South, Otaviano Canuto, também afirma que a desconfiança dos investidores em relação ao renmimbi decorrente da intervenção do governo de Xi Jinping na economia dificulta a adoção internacional da moeda chinesa, ainda que o país aumente a presença da moeda pelo mundo em transações comerciais.

Canuto lembra ainda que, quando o Banco Central de um país precisa interferir no mercado cambial, precisa ter uma moeda amplamente aceita, inclusive entre agentes privados. “O renmimbi não é uma moeda de reserva equivalente ao dólar dado o controle de capital e a intervenção. Ainda que os EUA adotem sanções contra a Rússia, o Irã e a Venezuela, o investidor se sente menos receoso em relação a uma ordem de bloqueio de ativos por parte do governo americano do que a uma decisão arbitral do governo chinês.”

Quais foram os acordos que a China fechou para minar o dólar em transações comerciais?

Nos últimos meses, o Brasil e a China têm avançado na negociação para que o comércio e os investimentos entre os dois países sejam feitos diretamente com real e renminbi, o que exclui o dólar das transações. Em janeiro, os bancos centrais dos dois países assinaram um memorando para estabelecer uma “clearing house” no Brasil. Trata-se de um banco com liquidez na moeda chinesa para fazer a compensação das divisas sem transacionar pelo dólar.

A Rússia já adotou o renminbi como moeda de reserva primária e também anunciou que as transações comerciais com a China serão feitas em rublo e em renminbi. A moeda chinesa se tornou a mais negociada no país. Quase sem divisas internacionais, a Argentina também fechou acordo com Pequim para pagar as importações provenientes do país em renminbi.

Em dezembro passado, a China e a Arábia Saudita realizaram a primeira transação usando suas moedas. O país árabe ainda anunciou a intenção de usar a moeda chinesa como parte de suas reservas internacionais.

Três meses depois, a China fez o primeiro acordo de importação de gás natural dos Emirados Árabes em renminbi e, em abril, o primeiro-ministro da Malásia, Anwar Ibrahim, afirmou não haver razão para o país continuar “dependendo do dólar” na área de investimentos e que transações com outros países deveriam ser fechadas nas moedas locais.

Apesar de considerada pouco viável por economistas, a recente proposta do presidente Luiz Inácio Lula da Silva para que a América do Sul crie uma moeda comum para o comércio entre os países, como forma de impulsionar a integração regional, segue uma tendência global. Nos últimos meses, houve uma série de anúncios de governos que pretendem reduzir o uso do dólar em suas transações comerciais. A restrição à moeda americana no comércio, ao lado da queda de participação do dólar nas reservas internacionais globais, levantou – novamente – a discussão sobre uma possível “desdolarização”.

No centro dessas propostas de substituição da moeda americana por locais está a China, que vem tentando minar a hegemonia do dólar. Desde o fim do ano passado, Pequim anunciou acordos com Argentina, Brasil, Rússia e Arábia Saudita para reduzir a dependência do dólar (leia mais abaixo).

Entre as intenções do governo de Xi Jinping estariam aumentar a influência política e econômica da China no mundo e os ganhos com senhoriagem, isto é, com a diferença entre quanto custa para o país emitir notas de renminbi e quanto paga um estrangeiro para obter a mesma quantia da moda chinesa.

Além da discussão na área comercial, economistas também observam que o dólar vem perdendo espaço como reserva internacional mantida por Bancos Centrais em todo o mundo. De acordo com um estudo do CEO da gestora europeia Eurizon SLJ Capital, Stephen Jen, em 2022, a participação do dólar nas reservas de outros países caiu a uma taxa dez vezes maior do que a média dos últimos 20 anos.

Jen aponta que muitos especialistas não observaram a velocidade dessa mudança por analisarem o valor nominal das reservas, sem considerar a variação na cotação do dólar. Fazendo esse ajuste, a moeda americana passou de uma participação nas reservas globais de cerca de 66% em 2003 para 55% em 2021 e para 47% em 2022.

Também em 2022, o euro ganhou quase 5% de participação. Com o crescimento, a moeda voltou ao mesmo nível de 2003. Já o renminbi vem crescendo lentamente. Segundo o estudo, o espaço de 20 pontos porcentuais que a moeda americana perdeu nos últimos 20 anos foi ocupado principalmente pela libra (4 pontos), pelo renminbi (3 pontos), pelo iene (3 pontos) e pelo dólar canadense (3 pontos).

Autor da teoria “Sorriso do Dólar” – segundo a qual a moeda americana se fortalece quando a economia dos EUA cresce ou recua profundamente, mas enfraquece quando o desempenho é medíocre –, Jen afirma que a “erosão” do dólar como reserva internacional se acelerou com a guerra na Ucrânia. Isso porque o G7, liderado pelos EUA, “assustou” países que são grandes detentores de reservas internacionais ao congelar metade dos US$ 630 bilhões das reservas russas e ao apreender ativos, como iates, de oligarcas russos.

Participação da moeda americana nas reservas globais chegou a 47% em 2022 Foto: Clayton de Souza/Estadão

Jen não acredita que o temor gerado por essas medidas adotadas contra a Rússia será temporário. “Suspeito que Bancos Centrais estejam genuinamente temerosos e zangados com a mudança repentina nas regras. No passado (por exemplo, Segunda Guerra Mundial), confiscos financeiros também ocorreram, mas isso foi quando os EUA, o Reino Unido e outros países que confiscaram bens alemães já estavam em guerra. Desta vez é diferente”, afirmou, por e-mail, ao Estadão.

“Isso levanta a possibilidade de que os EUA e o Reino Unido possam decidir unilateral e subjetivamente confiscar bens de países cujas políticas os desagradam. A ‘linha’ já não é clara e isso é extremamente preocupante para os países do sul global, que têm ‘valores’ ou formas de ver o mundo muito diferentes da dos EUA.”

Apesar das tendências de se evitar o dólar em transações comerciais e de substituí-lo em reservas internacionais, especialistas apontam que a moeda americana ainda continua forte no mais importante dos mercados: o financeiro, que envolve operações de hedge e investimentos. Hoje, as operações de câmbio feitas para a realização de transações comerciais não chegam a 2% do total.

Como os EUA podem perder a hegemonia?

Diante do fato de as transações financeiras serem 50 vezes mais relevantes que as comerciais, para o dólar perder sua hegemonia, o mercado financeiro em outras partes do mundo que não os EUA precisaria crescer e melhorar, enquanto o americano teria de piorar devido a políticas econômicas inadequadas, na análise de Jen. Ainda segundo ele, essas tendências existem, mas estão hoje em sua “infância”.

“Se os EUA continuar implementando políticas ruins, como executar enormes déficits fiscais, imprimir dinheiro e promover políticas externas beligerantes. Ao mesmo tempo em que a China corrigir seu caminho e voltar a políticas sensatas, com foco em reformas liberalizantes, no lugar de insistir nas virtudes do socialismo, poderíamos ver o renmimbi rivalizando com o euro nos próximos 15 anos”, diz.

O economista questiona ainda se investidores considerarão o dólar e os títulos do Tesouro americano portos seguros se a dívida pública dos EUA atingir uma dívida de 200% do PIB em 2050 – número estimado pelo CBO (órgão do Congresso americano que faz estudos sobre questões orçamentárias). Nesse caso, a dívida americana seria inferior apenas à do Japão.

Para o professor da Universidade da Califórnia Barry Eichengreen, o mundo está, sim, caminhando para um sistema em que o dólar perderá a hegemonia e múltiplas moedas desempenharão um papel internacional. Essa mudança, no entanto, está acontecendo “muito gradualmente”. Eichengreen não vê eventos recentes tendo acelerado essa transição.

Eichengreen: 'Esperança é que sistema com múltiplas moedas internacionais seja benéfico' Foto: Ryan Rayburn/IMF Photo

Em entrevista ao Estadão, também por e-mail, o economista afirmou esperar que esse novo sistema será benéfico ao garantir novas fontes de liquidez internacional. “Essa é uma esperança”, destacou ele, no entanto. Isso porque, no passado, já houve momentos em que houve um sistema múltiplo pouco vantajoso, como entre 1920 e 1930, quando Inglaterra e EUA dominavam com a libra e o dólar e suas políticas econômicas instáveis.

Antes da Primeira Guerra Mundial, porém, o sistema multipolar composto por libra, franco e marco foi benéfico, dado que as políticas dos países dominantes eram estáveis.

Um dos maiores estudiosos do tema no mundo, Eichengreen aponta em seu livro “How Global Currencies Work” (Como funcionam as moedas globais, em tradução literal) que moedas de grandes economias, como da zona do euro e da China, teriam potencial para, no futuro, ter relevância internacional devido ao volume de transações transfronteiriças que realizam.

Eichengreen afirmou, ao Estadão, que novas tecnologias financeiras (plataformas de negociação eletrônica, por exemplo) facilitarão o uso de moedas de países menores. “Agora, também prevejo um papel para as moedas de economias pequenas e bem administradas: Austrália, Canadá, Noruega, Suécia, Coreia do Sul e assim por diante.”

Apesar de citar o renminbi como uma moeda com potencial devido ao tamanho da economia chinesa, o professor pondera que o controle de capital por parte do governo de Xi Jinping e o sistema financeiro ainda “subdesenvolvido” do país dificultam o uso da moeda internacionalmente.

“O sistema político do país carece de freios e contrapesos, não inspira confiança por parte dos investidores. Se você olhar para a lista de economias pequenas e bem administradas cujas moedas estão começando a desempenhar um papel internacional, notará que todas são democracias.”

Controle de capital por parte de Pequim dificulta uso da moeda chinesa internacionalmente, segundo especialistas Foto: Petar Kujundzic/Reuters

O ex-vice-presidente do Banco Mundial e membro sênior do think tank Policy Center for the New South, Otaviano Canuto, também afirma que a desconfiança dos investidores em relação ao renmimbi decorrente da intervenção do governo de Xi Jinping na economia dificulta a adoção internacional da moeda chinesa, ainda que o país aumente a presença da moeda pelo mundo em transações comerciais.

Canuto lembra ainda que, quando o Banco Central de um país precisa interferir no mercado cambial, precisa ter uma moeda amplamente aceita, inclusive entre agentes privados. “O renmimbi não é uma moeda de reserva equivalente ao dólar dado o controle de capital e a intervenção. Ainda que os EUA adotem sanções contra a Rússia, o Irã e a Venezuela, o investidor se sente menos receoso em relação a uma ordem de bloqueio de ativos por parte do governo americano do que a uma decisão arbitral do governo chinês.”

Quais foram os acordos que a China fechou para minar o dólar em transações comerciais?

Nos últimos meses, o Brasil e a China têm avançado na negociação para que o comércio e os investimentos entre os dois países sejam feitos diretamente com real e renminbi, o que exclui o dólar das transações. Em janeiro, os bancos centrais dos dois países assinaram um memorando para estabelecer uma “clearing house” no Brasil. Trata-se de um banco com liquidez na moeda chinesa para fazer a compensação das divisas sem transacionar pelo dólar.

A Rússia já adotou o renminbi como moeda de reserva primária e também anunciou que as transações comerciais com a China serão feitas em rublo e em renminbi. A moeda chinesa se tornou a mais negociada no país. Quase sem divisas internacionais, a Argentina também fechou acordo com Pequim para pagar as importações provenientes do país em renminbi.

Em dezembro passado, a China e a Arábia Saudita realizaram a primeira transação usando suas moedas. O país árabe ainda anunciou a intenção de usar a moeda chinesa como parte de suas reservas internacionais.

Três meses depois, a China fez o primeiro acordo de importação de gás natural dos Emirados Árabes em renminbi e, em abril, o primeiro-ministro da Malásia, Anwar Ibrahim, afirmou não haver razão para o país continuar “dependendo do dólar” na área de investimentos e que transações com outros países deveriam ser fechadas nas moedas locais.

Apesar de considerada pouco viável por economistas, a recente proposta do presidente Luiz Inácio Lula da Silva para que a América do Sul crie uma moeda comum para o comércio entre os países, como forma de impulsionar a integração regional, segue uma tendência global. Nos últimos meses, houve uma série de anúncios de governos que pretendem reduzir o uso do dólar em suas transações comerciais. A restrição à moeda americana no comércio, ao lado da queda de participação do dólar nas reservas internacionais globais, levantou – novamente – a discussão sobre uma possível “desdolarização”.

No centro dessas propostas de substituição da moeda americana por locais está a China, que vem tentando minar a hegemonia do dólar. Desde o fim do ano passado, Pequim anunciou acordos com Argentina, Brasil, Rússia e Arábia Saudita para reduzir a dependência do dólar (leia mais abaixo).

Entre as intenções do governo de Xi Jinping estariam aumentar a influência política e econômica da China no mundo e os ganhos com senhoriagem, isto é, com a diferença entre quanto custa para o país emitir notas de renminbi e quanto paga um estrangeiro para obter a mesma quantia da moda chinesa.

Além da discussão na área comercial, economistas também observam que o dólar vem perdendo espaço como reserva internacional mantida por Bancos Centrais em todo o mundo. De acordo com um estudo do CEO da gestora europeia Eurizon SLJ Capital, Stephen Jen, em 2022, a participação do dólar nas reservas de outros países caiu a uma taxa dez vezes maior do que a média dos últimos 20 anos.

Jen aponta que muitos especialistas não observaram a velocidade dessa mudança por analisarem o valor nominal das reservas, sem considerar a variação na cotação do dólar. Fazendo esse ajuste, a moeda americana passou de uma participação nas reservas globais de cerca de 66% em 2003 para 55% em 2021 e para 47% em 2022.

Também em 2022, o euro ganhou quase 5% de participação. Com o crescimento, a moeda voltou ao mesmo nível de 2003. Já o renminbi vem crescendo lentamente. Segundo o estudo, o espaço de 20 pontos porcentuais que a moeda americana perdeu nos últimos 20 anos foi ocupado principalmente pela libra (4 pontos), pelo renminbi (3 pontos), pelo iene (3 pontos) e pelo dólar canadense (3 pontos).

Autor da teoria “Sorriso do Dólar” – segundo a qual a moeda americana se fortalece quando a economia dos EUA cresce ou recua profundamente, mas enfraquece quando o desempenho é medíocre –, Jen afirma que a “erosão” do dólar como reserva internacional se acelerou com a guerra na Ucrânia. Isso porque o G7, liderado pelos EUA, “assustou” países que são grandes detentores de reservas internacionais ao congelar metade dos US$ 630 bilhões das reservas russas e ao apreender ativos, como iates, de oligarcas russos.

Participação da moeda americana nas reservas globais chegou a 47% em 2022 Foto: Clayton de Souza/Estadão

Jen não acredita que o temor gerado por essas medidas adotadas contra a Rússia será temporário. “Suspeito que Bancos Centrais estejam genuinamente temerosos e zangados com a mudança repentina nas regras. No passado (por exemplo, Segunda Guerra Mundial), confiscos financeiros também ocorreram, mas isso foi quando os EUA, o Reino Unido e outros países que confiscaram bens alemães já estavam em guerra. Desta vez é diferente”, afirmou, por e-mail, ao Estadão.

“Isso levanta a possibilidade de que os EUA e o Reino Unido possam decidir unilateral e subjetivamente confiscar bens de países cujas políticas os desagradam. A ‘linha’ já não é clara e isso é extremamente preocupante para os países do sul global, que têm ‘valores’ ou formas de ver o mundo muito diferentes da dos EUA.”

Apesar das tendências de se evitar o dólar em transações comerciais e de substituí-lo em reservas internacionais, especialistas apontam que a moeda americana ainda continua forte no mais importante dos mercados: o financeiro, que envolve operações de hedge e investimentos. Hoje, as operações de câmbio feitas para a realização de transações comerciais não chegam a 2% do total.

Como os EUA podem perder a hegemonia?

Diante do fato de as transações financeiras serem 50 vezes mais relevantes que as comerciais, para o dólar perder sua hegemonia, o mercado financeiro em outras partes do mundo que não os EUA precisaria crescer e melhorar, enquanto o americano teria de piorar devido a políticas econômicas inadequadas, na análise de Jen. Ainda segundo ele, essas tendências existem, mas estão hoje em sua “infância”.

“Se os EUA continuar implementando políticas ruins, como executar enormes déficits fiscais, imprimir dinheiro e promover políticas externas beligerantes. Ao mesmo tempo em que a China corrigir seu caminho e voltar a políticas sensatas, com foco em reformas liberalizantes, no lugar de insistir nas virtudes do socialismo, poderíamos ver o renmimbi rivalizando com o euro nos próximos 15 anos”, diz.

O economista questiona ainda se investidores considerarão o dólar e os títulos do Tesouro americano portos seguros se a dívida pública dos EUA atingir uma dívida de 200% do PIB em 2050 – número estimado pelo CBO (órgão do Congresso americano que faz estudos sobre questões orçamentárias). Nesse caso, a dívida americana seria inferior apenas à do Japão.

Para o professor da Universidade da Califórnia Barry Eichengreen, o mundo está, sim, caminhando para um sistema em que o dólar perderá a hegemonia e múltiplas moedas desempenharão um papel internacional. Essa mudança, no entanto, está acontecendo “muito gradualmente”. Eichengreen não vê eventos recentes tendo acelerado essa transição.

Eichengreen: 'Esperança é que sistema com múltiplas moedas internacionais seja benéfico' Foto: Ryan Rayburn/IMF Photo

Em entrevista ao Estadão, também por e-mail, o economista afirmou esperar que esse novo sistema será benéfico ao garantir novas fontes de liquidez internacional. “Essa é uma esperança”, destacou ele, no entanto. Isso porque, no passado, já houve momentos em que houve um sistema múltiplo pouco vantajoso, como entre 1920 e 1930, quando Inglaterra e EUA dominavam com a libra e o dólar e suas políticas econômicas instáveis.

Antes da Primeira Guerra Mundial, porém, o sistema multipolar composto por libra, franco e marco foi benéfico, dado que as políticas dos países dominantes eram estáveis.

Um dos maiores estudiosos do tema no mundo, Eichengreen aponta em seu livro “How Global Currencies Work” (Como funcionam as moedas globais, em tradução literal) que moedas de grandes economias, como da zona do euro e da China, teriam potencial para, no futuro, ter relevância internacional devido ao volume de transações transfronteiriças que realizam.

Eichengreen afirmou, ao Estadão, que novas tecnologias financeiras (plataformas de negociação eletrônica, por exemplo) facilitarão o uso de moedas de países menores. “Agora, também prevejo um papel para as moedas de economias pequenas e bem administradas: Austrália, Canadá, Noruega, Suécia, Coreia do Sul e assim por diante.”

Apesar de citar o renminbi como uma moeda com potencial devido ao tamanho da economia chinesa, o professor pondera que o controle de capital por parte do governo de Xi Jinping e o sistema financeiro ainda “subdesenvolvido” do país dificultam o uso da moeda internacionalmente.

“O sistema político do país carece de freios e contrapesos, não inspira confiança por parte dos investidores. Se você olhar para a lista de economias pequenas e bem administradas cujas moedas estão começando a desempenhar um papel internacional, notará que todas são democracias.”

Controle de capital por parte de Pequim dificulta uso da moeda chinesa internacionalmente, segundo especialistas Foto: Petar Kujundzic/Reuters

O ex-vice-presidente do Banco Mundial e membro sênior do think tank Policy Center for the New South, Otaviano Canuto, também afirma que a desconfiança dos investidores em relação ao renmimbi decorrente da intervenção do governo de Xi Jinping na economia dificulta a adoção internacional da moeda chinesa, ainda que o país aumente a presença da moeda pelo mundo em transações comerciais.

Canuto lembra ainda que, quando o Banco Central de um país precisa interferir no mercado cambial, precisa ter uma moeda amplamente aceita, inclusive entre agentes privados. “O renmimbi não é uma moeda de reserva equivalente ao dólar dado o controle de capital e a intervenção. Ainda que os EUA adotem sanções contra a Rússia, o Irã e a Venezuela, o investidor se sente menos receoso em relação a uma ordem de bloqueio de ativos por parte do governo americano do que a uma decisão arbitral do governo chinês.”

Quais foram os acordos que a China fechou para minar o dólar em transações comerciais?

Nos últimos meses, o Brasil e a China têm avançado na negociação para que o comércio e os investimentos entre os dois países sejam feitos diretamente com real e renminbi, o que exclui o dólar das transações. Em janeiro, os bancos centrais dos dois países assinaram um memorando para estabelecer uma “clearing house” no Brasil. Trata-se de um banco com liquidez na moeda chinesa para fazer a compensação das divisas sem transacionar pelo dólar.

A Rússia já adotou o renminbi como moeda de reserva primária e também anunciou que as transações comerciais com a China serão feitas em rublo e em renminbi. A moeda chinesa se tornou a mais negociada no país. Quase sem divisas internacionais, a Argentina também fechou acordo com Pequim para pagar as importações provenientes do país em renminbi.

Em dezembro passado, a China e a Arábia Saudita realizaram a primeira transação usando suas moedas. O país árabe ainda anunciou a intenção de usar a moeda chinesa como parte de suas reservas internacionais.

Três meses depois, a China fez o primeiro acordo de importação de gás natural dos Emirados Árabes em renminbi e, em abril, o primeiro-ministro da Malásia, Anwar Ibrahim, afirmou não haver razão para o país continuar “dependendo do dólar” na área de investimentos e que transações com outros países deveriam ser fechadas nas moedas locais.

Apesar de considerada pouco viável por economistas, a recente proposta do presidente Luiz Inácio Lula da Silva para que a América do Sul crie uma moeda comum para o comércio entre os países, como forma de impulsionar a integração regional, segue uma tendência global. Nos últimos meses, houve uma série de anúncios de governos que pretendem reduzir o uso do dólar em suas transações comerciais. A restrição à moeda americana no comércio, ao lado da queda de participação do dólar nas reservas internacionais globais, levantou – novamente – a discussão sobre uma possível “desdolarização”.

No centro dessas propostas de substituição da moeda americana por locais está a China, que vem tentando minar a hegemonia do dólar. Desde o fim do ano passado, Pequim anunciou acordos com Argentina, Brasil, Rússia e Arábia Saudita para reduzir a dependência do dólar (leia mais abaixo).

Entre as intenções do governo de Xi Jinping estariam aumentar a influência política e econômica da China no mundo e os ganhos com senhoriagem, isto é, com a diferença entre quanto custa para o país emitir notas de renminbi e quanto paga um estrangeiro para obter a mesma quantia da moda chinesa.

Além da discussão na área comercial, economistas também observam que o dólar vem perdendo espaço como reserva internacional mantida por Bancos Centrais em todo o mundo. De acordo com um estudo do CEO da gestora europeia Eurizon SLJ Capital, Stephen Jen, em 2022, a participação do dólar nas reservas de outros países caiu a uma taxa dez vezes maior do que a média dos últimos 20 anos.

Jen aponta que muitos especialistas não observaram a velocidade dessa mudança por analisarem o valor nominal das reservas, sem considerar a variação na cotação do dólar. Fazendo esse ajuste, a moeda americana passou de uma participação nas reservas globais de cerca de 66% em 2003 para 55% em 2021 e para 47% em 2022.

Também em 2022, o euro ganhou quase 5% de participação. Com o crescimento, a moeda voltou ao mesmo nível de 2003. Já o renminbi vem crescendo lentamente. Segundo o estudo, o espaço de 20 pontos porcentuais que a moeda americana perdeu nos últimos 20 anos foi ocupado principalmente pela libra (4 pontos), pelo renminbi (3 pontos), pelo iene (3 pontos) e pelo dólar canadense (3 pontos).

Autor da teoria “Sorriso do Dólar” – segundo a qual a moeda americana se fortalece quando a economia dos EUA cresce ou recua profundamente, mas enfraquece quando o desempenho é medíocre –, Jen afirma que a “erosão” do dólar como reserva internacional se acelerou com a guerra na Ucrânia. Isso porque o G7, liderado pelos EUA, “assustou” países que são grandes detentores de reservas internacionais ao congelar metade dos US$ 630 bilhões das reservas russas e ao apreender ativos, como iates, de oligarcas russos.

Participação da moeda americana nas reservas globais chegou a 47% em 2022 Foto: Clayton de Souza/Estadão

Jen não acredita que o temor gerado por essas medidas adotadas contra a Rússia será temporário. “Suspeito que Bancos Centrais estejam genuinamente temerosos e zangados com a mudança repentina nas regras. No passado (por exemplo, Segunda Guerra Mundial), confiscos financeiros também ocorreram, mas isso foi quando os EUA, o Reino Unido e outros países que confiscaram bens alemães já estavam em guerra. Desta vez é diferente”, afirmou, por e-mail, ao Estadão.

“Isso levanta a possibilidade de que os EUA e o Reino Unido possam decidir unilateral e subjetivamente confiscar bens de países cujas políticas os desagradam. A ‘linha’ já não é clara e isso é extremamente preocupante para os países do sul global, que têm ‘valores’ ou formas de ver o mundo muito diferentes da dos EUA.”

Apesar das tendências de se evitar o dólar em transações comerciais e de substituí-lo em reservas internacionais, especialistas apontam que a moeda americana ainda continua forte no mais importante dos mercados: o financeiro, que envolve operações de hedge e investimentos. Hoje, as operações de câmbio feitas para a realização de transações comerciais não chegam a 2% do total.

Como os EUA podem perder a hegemonia?

Diante do fato de as transações financeiras serem 50 vezes mais relevantes que as comerciais, para o dólar perder sua hegemonia, o mercado financeiro em outras partes do mundo que não os EUA precisaria crescer e melhorar, enquanto o americano teria de piorar devido a políticas econômicas inadequadas, na análise de Jen. Ainda segundo ele, essas tendências existem, mas estão hoje em sua “infância”.

“Se os EUA continuar implementando políticas ruins, como executar enormes déficits fiscais, imprimir dinheiro e promover políticas externas beligerantes. Ao mesmo tempo em que a China corrigir seu caminho e voltar a políticas sensatas, com foco em reformas liberalizantes, no lugar de insistir nas virtudes do socialismo, poderíamos ver o renmimbi rivalizando com o euro nos próximos 15 anos”, diz.

O economista questiona ainda se investidores considerarão o dólar e os títulos do Tesouro americano portos seguros se a dívida pública dos EUA atingir uma dívida de 200% do PIB em 2050 – número estimado pelo CBO (órgão do Congresso americano que faz estudos sobre questões orçamentárias). Nesse caso, a dívida americana seria inferior apenas à do Japão.

Para o professor da Universidade da Califórnia Barry Eichengreen, o mundo está, sim, caminhando para um sistema em que o dólar perderá a hegemonia e múltiplas moedas desempenharão um papel internacional. Essa mudança, no entanto, está acontecendo “muito gradualmente”. Eichengreen não vê eventos recentes tendo acelerado essa transição.

Eichengreen: 'Esperança é que sistema com múltiplas moedas internacionais seja benéfico' Foto: Ryan Rayburn/IMF Photo

Em entrevista ao Estadão, também por e-mail, o economista afirmou esperar que esse novo sistema será benéfico ao garantir novas fontes de liquidez internacional. “Essa é uma esperança”, destacou ele, no entanto. Isso porque, no passado, já houve momentos em que houve um sistema múltiplo pouco vantajoso, como entre 1920 e 1930, quando Inglaterra e EUA dominavam com a libra e o dólar e suas políticas econômicas instáveis.

Antes da Primeira Guerra Mundial, porém, o sistema multipolar composto por libra, franco e marco foi benéfico, dado que as políticas dos países dominantes eram estáveis.

Um dos maiores estudiosos do tema no mundo, Eichengreen aponta em seu livro “How Global Currencies Work” (Como funcionam as moedas globais, em tradução literal) que moedas de grandes economias, como da zona do euro e da China, teriam potencial para, no futuro, ter relevância internacional devido ao volume de transações transfronteiriças que realizam.

Eichengreen afirmou, ao Estadão, que novas tecnologias financeiras (plataformas de negociação eletrônica, por exemplo) facilitarão o uso de moedas de países menores. “Agora, também prevejo um papel para as moedas de economias pequenas e bem administradas: Austrália, Canadá, Noruega, Suécia, Coreia do Sul e assim por diante.”

Apesar de citar o renminbi como uma moeda com potencial devido ao tamanho da economia chinesa, o professor pondera que o controle de capital por parte do governo de Xi Jinping e o sistema financeiro ainda “subdesenvolvido” do país dificultam o uso da moeda internacionalmente.

“O sistema político do país carece de freios e contrapesos, não inspira confiança por parte dos investidores. Se você olhar para a lista de economias pequenas e bem administradas cujas moedas estão começando a desempenhar um papel internacional, notará que todas são democracias.”

Controle de capital por parte de Pequim dificulta uso da moeda chinesa internacionalmente, segundo especialistas Foto: Petar Kujundzic/Reuters

O ex-vice-presidente do Banco Mundial e membro sênior do think tank Policy Center for the New South, Otaviano Canuto, também afirma que a desconfiança dos investidores em relação ao renmimbi decorrente da intervenção do governo de Xi Jinping na economia dificulta a adoção internacional da moeda chinesa, ainda que o país aumente a presença da moeda pelo mundo em transações comerciais.

Canuto lembra ainda que, quando o Banco Central de um país precisa interferir no mercado cambial, precisa ter uma moeda amplamente aceita, inclusive entre agentes privados. “O renmimbi não é uma moeda de reserva equivalente ao dólar dado o controle de capital e a intervenção. Ainda que os EUA adotem sanções contra a Rússia, o Irã e a Venezuela, o investidor se sente menos receoso em relação a uma ordem de bloqueio de ativos por parte do governo americano do que a uma decisão arbitral do governo chinês.”

Quais foram os acordos que a China fechou para minar o dólar em transações comerciais?

Nos últimos meses, o Brasil e a China têm avançado na negociação para que o comércio e os investimentos entre os dois países sejam feitos diretamente com real e renminbi, o que exclui o dólar das transações. Em janeiro, os bancos centrais dos dois países assinaram um memorando para estabelecer uma “clearing house” no Brasil. Trata-se de um banco com liquidez na moeda chinesa para fazer a compensação das divisas sem transacionar pelo dólar.

A Rússia já adotou o renminbi como moeda de reserva primária e também anunciou que as transações comerciais com a China serão feitas em rublo e em renminbi. A moeda chinesa se tornou a mais negociada no país. Quase sem divisas internacionais, a Argentina também fechou acordo com Pequim para pagar as importações provenientes do país em renminbi.

Em dezembro passado, a China e a Arábia Saudita realizaram a primeira transação usando suas moedas. O país árabe ainda anunciou a intenção de usar a moeda chinesa como parte de suas reservas internacionais.

Três meses depois, a China fez o primeiro acordo de importação de gás natural dos Emirados Árabes em renminbi e, em abril, o primeiro-ministro da Malásia, Anwar Ibrahim, afirmou não haver razão para o país continuar “dependendo do dólar” na área de investimentos e que transações com outros países deveriam ser fechadas nas moedas locais.

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