BRASÍLIA – A disputa tributária entre contribuintes e o Estado brasileiro atingiu R$ 5,7 trilhões, o equivalente a 75% do Produto Interno Bruto (PIB). Em termos comparativos, a cifra é superior ao valor de mercado das 371 companhias listadas na B3, a Bolsa de Valores de São Paulo. Juntas, elas valem R$ 4,7 trilhões.
O montante, levantado pelo Núcleo de Pesquisas em Tributação do Insper, engloba disputas administrativas e judiciais de empresas e pessoas físicas nos municípios, Estados e na União, questionando a cobrança de tributos pelos mais variados motivos. O valor é referente a 2020 – o dado mais atualizado em meio a uma série de lacunas na prestação de informações pelos entes públicos, sobretudo os municípios.
O número evidencia a magnitude desse problema histórico e a janela de oportunidade que o País tem com a reforma dos tributos sobre o consumo – os principais geradores desse contencioso, com uma fatia de R$ 2 trilhões.
Essa é a avaliação dos pesquisadores Breno Vasconcelos, Carla Novo, Larissa Longo e Lorreine Messias, responsáveis pelo levantamento. O grupo vem mapeando as disputas nos tribunais brasileiros desde 2019 e atualmente está sob a coordenação de Vanessa Canado, ex-assessora especial do Ministério da Economia.
“Há uma janela de oportunidade em relação à adoção de boas práticas de administração tributária e de harmonização das interpretações”, afirma Larissa Longo ao Estadão.
O estoque de ações está dado, ponderam os tributaristas, mas há expectativa de uma melhora expressiva no fluxo futuro. “É consenso que o atual sistema tem um potencial de geração de contencioso muito maior do que o novo. Até pelo fato de você tirar dos 5,5 mil municípios e dos 26 Estados e do Distrito Federal a prerrogativa de ficar legislando e concedendo benefício fiscal e regimes especiais”, destaca Breno Vasconcelos.
A reforma tributária – promulgada pelo Congresso Nacional no fim de 2023 e pendente de regulamentação – prevê a unificação de cinco tributos sobre o consumo em um Imposto sobre Valor Agregado (IVA) e um Imposto Seletivo, o qual incidirá sobre bens e serviços considerados nocivos à saúde e ao meio ambiente. Foi a maior reforma tributária aprovada no País desde a ditadura militar, com impacto para os governos locais e federal.
Apesar do potencial de redução do litígio, também é consenso que a reforma tem pontos de atenção, como regras passíveis de questionamento ou sistemáticas cujo funcionamento ainda levantam dúvidas e incertezas. Reduzir esses pontos – ou ao menos não criar novos ― é o grande desafio do atual estágio da regulamentação, em debate no Congresso.
“Existem pontos que claramente podem gerar contencioso, como a questão do ITBI (Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis, cuja cobrança poderá ser antecipada) e do ITCMD (Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação, que poderá incidir sobre a previdência privada)”, afirma Vasconcelos.
“Também acho que o Seletivo tem potencial de criar contencioso novo, além da classificação dos produtos que vão compor a cesta básica nacional”, destaca o pesquisador. Ele reforça, porém, que a redução da complexidade terá efeitos preponderantes em relação a esses itens.
Em valores nominais (não corrigidos pela inflação), o litígio tributário no Brasil saltou de R$ 4,9 trilhões em 2018 para R$ 5,4 trilhões em 2019, alcançando R$ 5,7 trilhões em 2020. “Ou seja, o nível continua astronômico”, destaca Vanessa Canado.
Na esfera subnacional, que engloba Estados e municípios, o aumento pode ser justificado pela ampliação da amostra da pesquisa. O mesmo, porém, não se aplica ao nível federal, cujo estoque saltou R$ 151 bilhões, ou 4%, de 2019 para 2020.
Três fatores principais ajudam a explicar os números: produção desenfreada de normas, imprevisibilidade da jurisprudência – ou seja, como os tribunais interpretam esse amontoado de regras – e a morosidade dos processos. “Quanto mais normas, exceções e diferenciações, maior tende a ser o nosso contencioso”, diz Lorreine.
Demora nos julgamentos
Segundo os pesquisadores, o julgamento dos processos tributários federais demora, em média, 16 anos, considerando todas as etapas: a primeira e segunda esferas administrativas e o processo judicial de execução fiscal.
Apesar de a lei determinar que 360 dias é o prazo máximo para o Fisco proferir uma decisão administrativa, o julgamento demora, em média, 924 dias ou 2,5 anos na primeira instância e 1.287 dias ou 3,5 anos na segunda instância. Na Justiça Federal, por sua vez, o tempo médio de tramitação de um processo de execução fiscal é de 10 anos.
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Além disso, apontam os tributaristas, faltam ações de prevenção. “Ter iniciativas de governança tributária ajuda a evitar a formação de contencioso. Como, por exemplo, a secretaria de Fazenda de um Estado estar alinhada com a opinião jurídica da procuradoria. Muitas vezes há conflito de entendimento interno, o que é um típico problema de falta de governança”, diz Vasconcelos.
Segundo Carla Novo, apenas sete dos 54 entes da federação (Estados e capitais) procurados nesse escopo da pesquisa informaram ter medidas de governança. Já ações de autorregularização incentivada, com desconto em multas e juros, foram predominantes. “São medidas positivas, mas não estruturais (para atacar o contencioso tributário)”, afirma a advogada.
A expectativa é de que o Comitê Gestor, órgão que será responsável pelas decisões administrativas referentes ao IBS (o IVA estadual e municipal) traga melhorias nessa governança. O desafio será harmonizar as decisões com o Conselho de Administração de Recursos Fiscais (Carf), que analisará os questionamentos em torno da CBS (o IVA federal). Como mostrou o Estadão, essa divisão dos órgão julgadores já gera novas preocupações entre especialistas.