Um mundo sem o dólar como moeda de referência é viável? Veja o que dizem especialistas


Para uma moeda virar referência internacional é preciso combinar o poder econômico com o poder geopolítico; especialistas dizem que hoje não há região ou país está apto a superar os EUA nessa equação

Por Jessica Brasil Skroch
Atualização:

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva questionou, durante discurso na sede do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB), o uso exclusivo do dólar como lastro de trocas comerciais internacionais. Especialistas afirmam que a troca da moeda de referência internacional é teoricamente possível, mas que não é algo que acontecerá no curto prazo.

Na China, Lula defendeu a consolidação de uma moeda comum para transações entre os países do Brics, bloco formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul e contestou a hegemonia do dólar: “Por que não podemos fazer nosso comércio lastreado na nossa moeda? Por que não temos o compromisso de inovar? Quem é que decidiu que era o dólar a moeda, depois que desapareceu o ouro como paridade”, questionou o presidente na cerimônia de posse de Dilma Rousseff para comandar o NDB, também chamado de Banco dos Brics.

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Inglaterra

Historicamente, é viável pensar em um mundo com outra moeda chave ou diversas moedas chaves, afirma Pedro Linhares Rossi, professor do Instituto de Economia da Unicamp. Porém, trata-se de um processo muito lento e determinado por um conjunto de fatores.

O professor explica que a Inglaterra, como “fábrica do mundo” na primeira revolução industrial, teve a sua moeda, a libra, como a referência no sistema internacional. “Todos tinham interesse em comercializar com a Inglaterra, o que consolidou a libra como a moeda desejada, já que dava acesso a bens e mercadorias”, explica Rossi.

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Especialistas afirmam que é viável uma nova moeda de referência internacional, mas é algo impossível no curto prazo Foto: Epitácio Pessoa/AE

Estados Unidos

Ao longo do tempo, os EUA, ainda no século XIX, ultrapassaram a Inglaterra na produção de mercadorias e na dimensão real do poder econômico, mas a Inglaterra ainda se manteve como potência financeira, sendo o centro londrino o centro financeiro do mundo. A libra deixa de ser a moeda chave apenas após as duas guerras e uma crise internacional, explica Rossi.

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O dólar, por sua vez, ganha paulatinamente importância no final dos anos 1940, depois da Segunda Guerra, e os EUA confirmam sua hegemonia, com a britânica já em decadência. A partir de então, os valores das moedas são fixados em relação à quantidade de reservas de ouro do país.

“Ao longo dos anos 1960, uma série de gastos dos EUA, como os gastos militares com a Guerra do Vietnã, geraram um processo de valorização do dólar, o que criava uma dificuldade com o volume de dólar suficiente para manter a paridade com o ouro”, explica Frederico Jayme Jr., professor da Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG. Como a situação era insustentável, o então presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon, impõe o fim ao sistema do ouro no país em 1971, e o dólar passa a ser a moeda de referência. O sistema cambial internacional passa então a ter taxas flexíveis.

China?

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Atualmente, os EUA deixaram de ser o centro produtivo do mundo, posto ocupado hoje pela China. A grandeza econômica do país a coloca como possível candidata a ter sua moeda como referência mundial, diz Jayme Jr., mas só isso não é suficiente. “Não se pode pensar numa moeda forte apenas considerando o país rico em termos de PIB. A geopolítica, a hegemonia é fundamental. A China pode ser uma potência regional, mas internacionalmente está atrás”, coloca Jayme Jr. Ele acrescenta que isso pode vir a mudar no futuro, mas é algo que, se ocorrer, será a longo prazo.

Especialistas afirmam que a “receita” para uma moeda virar aquela de referência internacional necessariamente precisa combinar o poder econômico com o poder geopolítico e que, até agora, nenhuma região ou país está apto a superar os Estados Unidos nessa equação.

“Para que o dólar deixe de ser a moeda de referência, seria necessário que a hegemonia americana deixasse efetivamente de existir, mas temos hoje um mundo ainda unipolar com os EUA como nação hegemônica”, diz Jayme Jr. Por isso, é impossível dissociar as moedas dos estados e da política, ressalta Rossi.

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No entanto, os especialistas concordam que a hegemonia do dólar está sendo questionada, o que pode ser intensificado com as tensões internacionais, como o risco de uma nova guerra fria entre China e EUA, cita Jayme. Esse processo de “desdolarização”, como chama Rossi, está acontecendo de forma bastante lenta, mas a velocidade pode aumentar dada as tensões internacionais.

Para Pedro Paulo Bastos, professor do Instituto de Economia da Unicamp, o dólar só perderia o seu posto de moeda global se acontecesse uma crise financeira e econômica estrutural e de escala global. “Isso aconteceria se houvesse um questionamento sobre a qualidade e a capacidade do governo americano de pagar os títulos da dívida pública”, exemplifica. A consequência seria uma crise da economia global sem precedentes e que, para Bastos, é algo até difícil de imaginar.

Notas de yuan, a moeda oficial da China Foto: Dado Ruvic/Reuters
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Yuan

O yuan, a moeda chinesa, apresenta alguns problemas para substituir o dólar como moeda de referência. Por exemplo, o mercado chinês não oferece a mesma liquidez do mercado americano, dizem os especialistas. Na prática, isso quer dizer que, no mercado financeiro americano, é possível vender rapidamente os ativos a curto prazo, transformá-los em dinheiro, sem nenhum tipo de perda. “Além disso, como os ativos podem ser utilizados em qualquer lugar do mundo, induz voluntariamente empresas e indivíduos de alta renda a manterem ativos denominados em dólar”, complementa Bastos.

“Os agentes que têm débitos, que tomam recursos no sistema financeiro americano, ou mesmo nos bancos europeus e japoneses, usam o dólar, por ser o mais líquido”, explica Bastos. O professor coloca que é uma questão de escala e de rede: para participar das redes do comércio internacional necessariamente é preciso usar o dólar.

Como os EUA no século XIX em relação à Inglaterra, a China também já superou os EUA do ponto de vista comercial, produtivo e exportador, diz Rossi. “Porém, para ter a moeda de referência, a China precisa desenvolver um mercado profundo e líquido de títulos públicos em yuan que se torne referência da riqueza global”, opina o professor. Caso a China desenvolva esses mercados, o formato pode ser diverso, e não necessariamente precisa haver uma abertura financeira ampla, complementa Rossi.

Além de não ter um mercado tão líquido, Bastos complementa que a China não parece querer permitir a livre movimentação de recursos a partir do mercado financeiro, um problema que é também de ordem política: “grandes empresas ocidentais rejeitariam estar sujeitas às regulações do Partido Comunista chinês para que pudessem operar no mercado financeiro em yuan”, explica. Segundo o professor, a China quer ter controle sobre as taxas de juros, sobre a taxa de câmbio, sobre o ritmo de expansão do crédito, a fim de não ficar sujeita à fuga ou entrada de capitais, o que dificulta a internacionalização da moeda chinesa.

Para Bastos, o estado chinês não quer subordinar a gestão da política econômica ao interesse do sistema bancário, ao contrário do que ocorre nos EUA, onde o sistema financeiro de bancos tem um “poder político inquestionável e incomparável”, destaca o professor.

Notas de dólar e de euro Foto: Heinz-Peter/Boder/Reuters

Euro?

Além do yuan, os especialistas também citam o euro como eventual candidato para substituir o dólar como moeda referência no mercado internacional. No entanto, Bastos destaca que em mais de 20 anos a moeda não teve o impacto esperado de questionar a supremacia do dólar até agora. Jayme Jr. acrescenta que a mudança também não parece ser interessante à Europa no momento, que, apesar de ter uma moeda bastante sólida, possui uma certa dependência dos EUA.

É consenso entre os especialistas que a substituição do dólar no curto prazo é impossível. Bastos destaca, no entanto, que é possível um sistema gradualmente mais pluri-monetário, com a utilização de outras moedas para acordos regionais, como defendeu Lula para os Brics.

Rossi acredita que acordos bilaterais podem ser interessantes. “O Brasil já teve essa experiência pelo Sistema de Pagamentos em Moeda Local (que possibilita aos exportadores e aos importadores transacionarem em suas respectivas moedas locais) com a Argentina, e pode vir a ter com outros países. A ideia é diminuir a vulnerabilidade das contas externas e a dependência do dólar, o que nos traz soberania”, considera.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva questionou, durante discurso na sede do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB), o uso exclusivo do dólar como lastro de trocas comerciais internacionais. Especialistas afirmam que a troca da moeda de referência internacional é teoricamente possível, mas que não é algo que acontecerá no curto prazo.

Na China, Lula defendeu a consolidação de uma moeda comum para transações entre os países do Brics, bloco formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul e contestou a hegemonia do dólar: “Por que não podemos fazer nosso comércio lastreado na nossa moeda? Por que não temos o compromisso de inovar? Quem é que decidiu que era o dólar a moeda, depois que desapareceu o ouro como paridade”, questionou o presidente na cerimônia de posse de Dilma Rousseff para comandar o NDB, também chamado de Banco dos Brics.

Inglaterra

Historicamente, é viável pensar em um mundo com outra moeda chave ou diversas moedas chaves, afirma Pedro Linhares Rossi, professor do Instituto de Economia da Unicamp. Porém, trata-se de um processo muito lento e determinado por um conjunto de fatores.

O professor explica que a Inglaterra, como “fábrica do mundo” na primeira revolução industrial, teve a sua moeda, a libra, como a referência no sistema internacional. “Todos tinham interesse em comercializar com a Inglaterra, o que consolidou a libra como a moeda desejada, já que dava acesso a bens e mercadorias”, explica Rossi.

Especialistas afirmam que é viável uma nova moeda de referência internacional, mas é algo impossível no curto prazo Foto: Epitácio Pessoa/AE

Estados Unidos

Ao longo do tempo, os EUA, ainda no século XIX, ultrapassaram a Inglaterra na produção de mercadorias e na dimensão real do poder econômico, mas a Inglaterra ainda se manteve como potência financeira, sendo o centro londrino o centro financeiro do mundo. A libra deixa de ser a moeda chave apenas após as duas guerras e uma crise internacional, explica Rossi.

O dólar, por sua vez, ganha paulatinamente importância no final dos anos 1940, depois da Segunda Guerra, e os EUA confirmam sua hegemonia, com a britânica já em decadência. A partir de então, os valores das moedas são fixados em relação à quantidade de reservas de ouro do país.

“Ao longo dos anos 1960, uma série de gastos dos EUA, como os gastos militares com a Guerra do Vietnã, geraram um processo de valorização do dólar, o que criava uma dificuldade com o volume de dólar suficiente para manter a paridade com o ouro”, explica Frederico Jayme Jr., professor da Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG. Como a situação era insustentável, o então presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon, impõe o fim ao sistema do ouro no país em 1971, e o dólar passa a ser a moeda de referência. O sistema cambial internacional passa então a ter taxas flexíveis.

China?

Atualmente, os EUA deixaram de ser o centro produtivo do mundo, posto ocupado hoje pela China. A grandeza econômica do país a coloca como possível candidata a ter sua moeda como referência mundial, diz Jayme Jr., mas só isso não é suficiente. “Não se pode pensar numa moeda forte apenas considerando o país rico em termos de PIB. A geopolítica, a hegemonia é fundamental. A China pode ser uma potência regional, mas internacionalmente está atrás”, coloca Jayme Jr. Ele acrescenta que isso pode vir a mudar no futuro, mas é algo que, se ocorrer, será a longo prazo.

Especialistas afirmam que a “receita” para uma moeda virar aquela de referência internacional necessariamente precisa combinar o poder econômico com o poder geopolítico e que, até agora, nenhuma região ou país está apto a superar os Estados Unidos nessa equação.

“Para que o dólar deixe de ser a moeda de referência, seria necessário que a hegemonia americana deixasse efetivamente de existir, mas temos hoje um mundo ainda unipolar com os EUA como nação hegemônica”, diz Jayme Jr. Por isso, é impossível dissociar as moedas dos estados e da política, ressalta Rossi.

No entanto, os especialistas concordam que a hegemonia do dólar está sendo questionada, o que pode ser intensificado com as tensões internacionais, como o risco de uma nova guerra fria entre China e EUA, cita Jayme. Esse processo de “desdolarização”, como chama Rossi, está acontecendo de forma bastante lenta, mas a velocidade pode aumentar dada as tensões internacionais.

Para Pedro Paulo Bastos, professor do Instituto de Economia da Unicamp, o dólar só perderia o seu posto de moeda global se acontecesse uma crise financeira e econômica estrutural e de escala global. “Isso aconteceria se houvesse um questionamento sobre a qualidade e a capacidade do governo americano de pagar os títulos da dívida pública”, exemplifica. A consequência seria uma crise da economia global sem precedentes e que, para Bastos, é algo até difícil de imaginar.

Notas de yuan, a moeda oficial da China Foto: Dado Ruvic/Reuters

Yuan

O yuan, a moeda chinesa, apresenta alguns problemas para substituir o dólar como moeda de referência. Por exemplo, o mercado chinês não oferece a mesma liquidez do mercado americano, dizem os especialistas. Na prática, isso quer dizer que, no mercado financeiro americano, é possível vender rapidamente os ativos a curto prazo, transformá-los em dinheiro, sem nenhum tipo de perda. “Além disso, como os ativos podem ser utilizados em qualquer lugar do mundo, induz voluntariamente empresas e indivíduos de alta renda a manterem ativos denominados em dólar”, complementa Bastos.

“Os agentes que têm débitos, que tomam recursos no sistema financeiro americano, ou mesmo nos bancos europeus e japoneses, usam o dólar, por ser o mais líquido”, explica Bastos. O professor coloca que é uma questão de escala e de rede: para participar das redes do comércio internacional necessariamente é preciso usar o dólar.

Como os EUA no século XIX em relação à Inglaterra, a China também já superou os EUA do ponto de vista comercial, produtivo e exportador, diz Rossi. “Porém, para ter a moeda de referência, a China precisa desenvolver um mercado profundo e líquido de títulos públicos em yuan que se torne referência da riqueza global”, opina o professor. Caso a China desenvolva esses mercados, o formato pode ser diverso, e não necessariamente precisa haver uma abertura financeira ampla, complementa Rossi.

Além de não ter um mercado tão líquido, Bastos complementa que a China não parece querer permitir a livre movimentação de recursos a partir do mercado financeiro, um problema que é também de ordem política: “grandes empresas ocidentais rejeitariam estar sujeitas às regulações do Partido Comunista chinês para que pudessem operar no mercado financeiro em yuan”, explica. Segundo o professor, a China quer ter controle sobre as taxas de juros, sobre a taxa de câmbio, sobre o ritmo de expansão do crédito, a fim de não ficar sujeita à fuga ou entrada de capitais, o que dificulta a internacionalização da moeda chinesa.

Para Bastos, o estado chinês não quer subordinar a gestão da política econômica ao interesse do sistema bancário, ao contrário do que ocorre nos EUA, onde o sistema financeiro de bancos tem um “poder político inquestionável e incomparável”, destaca o professor.

Notas de dólar e de euro Foto: Heinz-Peter/Boder/Reuters

Euro?

Além do yuan, os especialistas também citam o euro como eventual candidato para substituir o dólar como moeda referência no mercado internacional. No entanto, Bastos destaca que em mais de 20 anos a moeda não teve o impacto esperado de questionar a supremacia do dólar até agora. Jayme Jr. acrescenta que a mudança também não parece ser interessante à Europa no momento, que, apesar de ter uma moeda bastante sólida, possui uma certa dependência dos EUA.

É consenso entre os especialistas que a substituição do dólar no curto prazo é impossível. Bastos destaca, no entanto, que é possível um sistema gradualmente mais pluri-monetário, com a utilização de outras moedas para acordos regionais, como defendeu Lula para os Brics.

Rossi acredita que acordos bilaterais podem ser interessantes. “O Brasil já teve essa experiência pelo Sistema de Pagamentos em Moeda Local (que possibilita aos exportadores e aos importadores transacionarem em suas respectivas moedas locais) com a Argentina, e pode vir a ter com outros países. A ideia é diminuir a vulnerabilidade das contas externas e a dependência do dólar, o que nos traz soberania”, considera.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva questionou, durante discurso na sede do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB), o uso exclusivo do dólar como lastro de trocas comerciais internacionais. Especialistas afirmam que a troca da moeda de referência internacional é teoricamente possível, mas que não é algo que acontecerá no curto prazo.

Na China, Lula defendeu a consolidação de uma moeda comum para transações entre os países do Brics, bloco formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul e contestou a hegemonia do dólar: “Por que não podemos fazer nosso comércio lastreado na nossa moeda? Por que não temos o compromisso de inovar? Quem é que decidiu que era o dólar a moeda, depois que desapareceu o ouro como paridade”, questionou o presidente na cerimônia de posse de Dilma Rousseff para comandar o NDB, também chamado de Banco dos Brics.

Inglaterra

Historicamente, é viável pensar em um mundo com outra moeda chave ou diversas moedas chaves, afirma Pedro Linhares Rossi, professor do Instituto de Economia da Unicamp. Porém, trata-se de um processo muito lento e determinado por um conjunto de fatores.

O professor explica que a Inglaterra, como “fábrica do mundo” na primeira revolução industrial, teve a sua moeda, a libra, como a referência no sistema internacional. “Todos tinham interesse em comercializar com a Inglaterra, o que consolidou a libra como a moeda desejada, já que dava acesso a bens e mercadorias”, explica Rossi.

Especialistas afirmam que é viável uma nova moeda de referência internacional, mas é algo impossível no curto prazo Foto: Epitácio Pessoa/AE

Estados Unidos

Ao longo do tempo, os EUA, ainda no século XIX, ultrapassaram a Inglaterra na produção de mercadorias e na dimensão real do poder econômico, mas a Inglaterra ainda se manteve como potência financeira, sendo o centro londrino o centro financeiro do mundo. A libra deixa de ser a moeda chave apenas após as duas guerras e uma crise internacional, explica Rossi.

O dólar, por sua vez, ganha paulatinamente importância no final dos anos 1940, depois da Segunda Guerra, e os EUA confirmam sua hegemonia, com a britânica já em decadência. A partir de então, os valores das moedas são fixados em relação à quantidade de reservas de ouro do país.

“Ao longo dos anos 1960, uma série de gastos dos EUA, como os gastos militares com a Guerra do Vietnã, geraram um processo de valorização do dólar, o que criava uma dificuldade com o volume de dólar suficiente para manter a paridade com o ouro”, explica Frederico Jayme Jr., professor da Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG. Como a situação era insustentável, o então presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon, impõe o fim ao sistema do ouro no país em 1971, e o dólar passa a ser a moeda de referência. O sistema cambial internacional passa então a ter taxas flexíveis.

China?

Atualmente, os EUA deixaram de ser o centro produtivo do mundo, posto ocupado hoje pela China. A grandeza econômica do país a coloca como possível candidata a ter sua moeda como referência mundial, diz Jayme Jr., mas só isso não é suficiente. “Não se pode pensar numa moeda forte apenas considerando o país rico em termos de PIB. A geopolítica, a hegemonia é fundamental. A China pode ser uma potência regional, mas internacionalmente está atrás”, coloca Jayme Jr. Ele acrescenta que isso pode vir a mudar no futuro, mas é algo que, se ocorrer, será a longo prazo.

Especialistas afirmam que a “receita” para uma moeda virar aquela de referência internacional necessariamente precisa combinar o poder econômico com o poder geopolítico e que, até agora, nenhuma região ou país está apto a superar os Estados Unidos nessa equação.

“Para que o dólar deixe de ser a moeda de referência, seria necessário que a hegemonia americana deixasse efetivamente de existir, mas temos hoje um mundo ainda unipolar com os EUA como nação hegemônica”, diz Jayme Jr. Por isso, é impossível dissociar as moedas dos estados e da política, ressalta Rossi.

No entanto, os especialistas concordam que a hegemonia do dólar está sendo questionada, o que pode ser intensificado com as tensões internacionais, como o risco de uma nova guerra fria entre China e EUA, cita Jayme. Esse processo de “desdolarização”, como chama Rossi, está acontecendo de forma bastante lenta, mas a velocidade pode aumentar dada as tensões internacionais.

Para Pedro Paulo Bastos, professor do Instituto de Economia da Unicamp, o dólar só perderia o seu posto de moeda global se acontecesse uma crise financeira e econômica estrutural e de escala global. “Isso aconteceria se houvesse um questionamento sobre a qualidade e a capacidade do governo americano de pagar os títulos da dívida pública”, exemplifica. A consequência seria uma crise da economia global sem precedentes e que, para Bastos, é algo até difícil de imaginar.

Notas de yuan, a moeda oficial da China Foto: Dado Ruvic/Reuters

Yuan

O yuan, a moeda chinesa, apresenta alguns problemas para substituir o dólar como moeda de referência. Por exemplo, o mercado chinês não oferece a mesma liquidez do mercado americano, dizem os especialistas. Na prática, isso quer dizer que, no mercado financeiro americano, é possível vender rapidamente os ativos a curto prazo, transformá-los em dinheiro, sem nenhum tipo de perda. “Além disso, como os ativos podem ser utilizados em qualquer lugar do mundo, induz voluntariamente empresas e indivíduos de alta renda a manterem ativos denominados em dólar”, complementa Bastos.

“Os agentes que têm débitos, que tomam recursos no sistema financeiro americano, ou mesmo nos bancos europeus e japoneses, usam o dólar, por ser o mais líquido”, explica Bastos. O professor coloca que é uma questão de escala e de rede: para participar das redes do comércio internacional necessariamente é preciso usar o dólar.

Como os EUA no século XIX em relação à Inglaterra, a China também já superou os EUA do ponto de vista comercial, produtivo e exportador, diz Rossi. “Porém, para ter a moeda de referência, a China precisa desenvolver um mercado profundo e líquido de títulos públicos em yuan que se torne referência da riqueza global”, opina o professor. Caso a China desenvolva esses mercados, o formato pode ser diverso, e não necessariamente precisa haver uma abertura financeira ampla, complementa Rossi.

Além de não ter um mercado tão líquido, Bastos complementa que a China não parece querer permitir a livre movimentação de recursos a partir do mercado financeiro, um problema que é também de ordem política: “grandes empresas ocidentais rejeitariam estar sujeitas às regulações do Partido Comunista chinês para que pudessem operar no mercado financeiro em yuan”, explica. Segundo o professor, a China quer ter controle sobre as taxas de juros, sobre a taxa de câmbio, sobre o ritmo de expansão do crédito, a fim de não ficar sujeita à fuga ou entrada de capitais, o que dificulta a internacionalização da moeda chinesa.

Para Bastos, o estado chinês não quer subordinar a gestão da política econômica ao interesse do sistema bancário, ao contrário do que ocorre nos EUA, onde o sistema financeiro de bancos tem um “poder político inquestionável e incomparável”, destaca o professor.

Notas de dólar e de euro Foto: Heinz-Peter/Boder/Reuters

Euro?

Além do yuan, os especialistas também citam o euro como eventual candidato para substituir o dólar como moeda referência no mercado internacional. No entanto, Bastos destaca que em mais de 20 anos a moeda não teve o impacto esperado de questionar a supremacia do dólar até agora. Jayme Jr. acrescenta que a mudança também não parece ser interessante à Europa no momento, que, apesar de ter uma moeda bastante sólida, possui uma certa dependência dos EUA.

É consenso entre os especialistas que a substituição do dólar no curto prazo é impossível. Bastos destaca, no entanto, que é possível um sistema gradualmente mais pluri-monetário, com a utilização de outras moedas para acordos regionais, como defendeu Lula para os Brics.

Rossi acredita que acordos bilaterais podem ser interessantes. “O Brasil já teve essa experiência pelo Sistema de Pagamentos em Moeda Local (que possibilita aos exportadores e aos importadores transacionarem em suas respectivas moedas locais) com a Argentina, e pode vir a ter com outros países. A ideia é diminuir a vulnerabilidade das contas externas e a dependência do dólar, o que nos traz soberania”, considera.

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