Na avaliação da advogada tributarista Maria Carolina Gontijo, que atua com o pseudônimo de Duquesa de Tax nas redes sociais, onde se tornou uma das figuras mais populares da área, o principal problema da reforma tributária são as exceções incluídas na regulamentação aprovada recentemente pela Câmara dos Deputados e não o aumento de impostos.
Nesta entrevista ao Estadão, ela comenta alguns dos principais pontos da reforma e diz que a sanha arrecadatória ido ministro da Fazenda, Fernando Haddad, não contaminou a reforma. “As medidas arrecadatórias e a reforma tributária são duas coisas diferentes”, afirma. “A percepção de que a reforma vai levar a um aumento de carga tributária se deve principalmente ao fato de que ela está redistribuindo o peso dos impostos entre os diferentes setores e atividades da economia.” Confira a seguir os principais trechos da entrevista.
Qual a sua avaliação da regulamentação da reforma tributária que foi aprovada pela Câmara e que agora está em avaliação no Senado?
A gente partiu de uma reforma muito boa, que entrou pelo caminho certo, que deve deixar muito transparente quanto as pessoas pagam de imposto. Isso é muito importante. A partir do momento que as pessoas identificarem o valor que elas pagam em cima de cada coisa, a percepção em relação à questão tributária vai mudar de figura. Porque do jeito que o sistema está hoje ele abre espaço para a realização de conchavos e a concessão de benefícios a setores específicos da economia ou a “amigos do rei” que a gente não fica sabendo quais são nem quem eles são, o que é um grande problema. Ao jogar luz nessas coisas todas, a gente vai conseguir ter uma transparência muito maior e um sistema tributário mais objetivo.
Agora, muitos analistas dizem que a versão da reforma que saiu da Câmara criou muitas distorções que comprometeram o projeto original. Como a sra. avalia isso?
Muita gente fala que a reforma está meio que perdendo as suas características, mas a Câmara preservou suas bases. O núcleo da reforma, que era o mais importante, que são pontos que tem um impacto muito grande, como poder usar créditos tributários e ser neutra em termos de carga tributária, foi mantido. O que aconteceu na Câmara com a regulamentação foi aquela tortura da matemática. Eles colocaram um monte de benefícios no texto, como os planos de saúde para pets, e falaram que a alíquota vai ficar em 26,5%. Não sei como isso vai acontecer. As casas legislativas são especialistas nisso. O governo entregou uma reforma fechadinha, bem amarradinha e disse: “Olha, essa reforma prevê uma alíquota média de 26,5%”. Como é que a Câmara pode colocar no texto um monte de exceção e falar que vai continuar em 26,5%? É impossível. Essa conta não vai fechar.
Confira a 1ª parte da entrevista
A primeira-dama Janja da Silva gravou até um vídeo defendendo a inclusão dos planos de saúde para pets nas exceções da reforma. O que a sra. achou disso?
Isso deturpa e atrapalha o jogo, atrapalha a divulgação do que é a reforma. Os planos de saúde para pets vão ter impacto no sistema? Não vão. Isso aí vai ter um impacto 0,0001 na alíquota, um impacto ínfimo. Não é esta a questão. É a ideia. Quem contrata esse tipo de coisa? O pessoal mais humilde, que mora numa comunidade, vai ter planos de saúde para pet? Não. Então, quem a gente está beneficiando com uma medida dessas? Os mais ricos, claro! Essas coisinhas que foram inseridas no texto, honestamente, não comprometem o todo da reforma, como eu disse. A estrutura da reforma foi preservada pela Câmara. O resto a gente tem a possibilidade de ir consertando com o tempo. Não pensem que essa reforma vai durar. A Índia, por exemplo, que fez a reforma tributária dela em 2018, está arrumando a casa até hoje. Então, fiquem tranquilos, porque a gente vai ter assunto para discutir até 2040.
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A trava que a Câmara previu para a tributação não ultrapassar os 26,5% de alíquota média não resolve esse problema?
A Câmara criou essa trava de 26,5%, mas não explicou como é que essa trava vai funcionar. Na verdade, jogou o problema de novo no colo do Executivo. Aí, quando chegar lá em 2033, com o sistema 100% implantado, será o governo da vez, que a gente não sabe quem vai ser, que terá de desarmar essa bomba, que terá de “fazer o sorteio” de quem vão ser os prejudicados, para manter a alíquota em 26,5%. Isso precisa ser melhor discutido, não pode ser deixado desse jeito.
Entre as exceções que a sra. mencionou, qual vai ter impacto maior na alíquota média?
A entrada da carne na cesta básica, sem dúvida. Esta, sim, vai ter um impacto grande na alíquota, de 0,5 ponto porcentual a mais. De novo, foi uma pauta bem mais política do que técnica, porque hoje as carnes não são isentas de ICMS (Imposto de Circulação de Mercadorias e Serviços). Hoje elas têm isenção de PIS (Programa de Integração Social) e Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social), mas não são isentas de ICMS. Ou seja, a gente vai dar, de novo, um benefício que vai beneficiar quem consome mais proteína animal. E quem consome mais proteína são os mais ricos. Além disso, é um benefício que eu duvido que vai se reverter em preço. Isso vai virar margem das empresas. Então, no fim, essa história de “Ah, vamos colocar a carne na cesta básica para beneficiar os mais pobres” não vai chegar na ponta. É uma pauta que foi sequestrada.
Hoje, já tem gente falando que, com todas essas exceções, a alíquota média pode chegar em 28%, colocando o Brasil no topo do ranking dos países com o maior IVA (Imposto de Valor Agregado).
Sem dúvida. A rigor, a gente não poderia comparar as alíquotas dos países, porque as bases de cálculo são diferentes, mas é inevitável fazer esta comparação. Hoje, a maior alíquota do mundo é a da Hungria, de 27%, que eu costumo colocar como um teto para nós, porque ninguém vai querer assumir a paternidade de colocar o Brasil como o país que tem o maior IVA do planeta. Mas, do jeito que ficou o texto aprovado na Câmara, tenho certeza de que a alíquota já está tranquilamente acima de 27%.
É curioso que, ao comentar a reforma tributária, a sra. se concentrou principalmente nas exceções incluídas pela Câmara, que terão alíquota reduzida. Mas, nas redes sociais, muita gente está atribuindo um papel arrecadatório à reforma tributária, em linha com as medidas adotadas pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, para incrementar a receita do governo. Em sua avaliação, a reforma tributária não se enquadra nessa sanha arrecadatória do governo Lula?
São assuntos diferentes, até porque, na reforma tributária, o governo federal é quem mais vai se sacrificar em termos de arrecadação, talvez com o objetivo de deixar esse legado de ter aprovado a reforma. Primeiro, porque ele vai ter uma alíquota menor dentro da CBS (Contribuição Social de Bens e Serviços) do que a soma hoje do PIS, da Cofins e do IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados), para tentar dar mais espaço na tributação para os Estados e os municípios. Ele terá de bancar vários fundos – o Fundo de Compensação de Benefícios Fiscais, o Fundo de Desenvolvimento Regional e outros. O que esse governo fez de diferente foi optar por negociar e abrir mão de muita coisa para os Estados e municípios, com o objetivo de aprovar a reforma em nome de um ganho político. Em termos de arrecadação, o governo federal é o que mais colocou dinheiro nessa história. As pessoas têm um pouco de dificuldade de entender isso, porque esse texto foi apresentado no governo anterior, teve um parecer favorável no governo anterior e é uma mistura de uma outra PEC (Proposta de Emenda à Constituição), que foi apoiada por um parlamentar ligado ao governo anterior.
Mesmo levando em conta tudo isso, a percepção que predomina por aí não é essa.
A percepção de que a reforma vai levar a um aumento de carga tributária se deve principalmente ao fato de que ela está redistribuindo o peso dos impostos entre os diferentes setores da economia. Hoje, há um monte de distorções. Tem gente pagando assim e gente pagando assado. Então, a ideia, desde o princípio, foi fazer uma redistribuição para todo mundo pagar a mesma coisa.
Agora, do ponto de vista fiscal, para o governo federal, a reforma tributária me preocupa, pela quantidade de dinheiro que eles se comprometeram a colocar para viabilizar a mudança. Os cálculos são de que, só os fundos que o governo terá de bancar vão consumir cerca de R$ 80 bilhões por ano. Aí você vai me perguntar: “O pessoal está fazendo isso de bonzinho que eles são, só porque querem aprovar a reforma? Não. Eles estão apostando no crescimento do PIB (Produto Interno Bruto), para compensar com aumento da arrecadação o que eles estão perdendo, e numa maior formalização da economia com a simplificação do sistema. Estão colocando todas as fichas nisso. A expectativa é de que, com a colocação das pessoas que hoje não emitem nota dentro do sistema e com a redução da sonegação, o governo consiga arrecadar mais. Então, se a reforma tem intuito arrecadatório, é algo para a gente ver em 2033, porque até lá a gente não vai ter a reforma implementada em 100%.
Desculpe insistir nesta questão, mas a percepção de muita gente não é essa.
Não, de fato não é. É o que falo: hoje, as pessoas não sabem quanto elas pagam de imposto. Isso é que é o pior. Quando elas não sabem quanto estão pagando, você chega e fala que a alíquota será de 26,5% e elas acham que é muito. É lógico que é muito. Quando você fala que uma academia de ginástica vai pagar 26,5% de imposto, assusta. Hoje ela paga o quê? Hoje, ela paga PIS, Cofins e um pouquinho de ISS (Imposto sobre Serviços). Então, são coisas que de fato precisam ser ajustadas e é por isso que há essa percepção de que a reforma tributária tem um objetivo arrecadatório.
Um setor que está reclamando muito é imobiliário. O pessoal está dizendo que da forma como ficou o texto da Câmara, que prevê uma tributação progressiva conformo o valor do imóvel, deve haver um aumento de 12% no preço dos imóveis. Tem muita gente falando também que, quando alguém comprar e vender um imóvel, vai ter de pagar 26,5% de imposto. É isso mesmo?
Em relação aos imóveis, há um ruído de comunicação muito grande, porque de fato o texto apresentado pelo governo não foi bom. Eu falei desde o começo que, se tinha alguém para ficar preocupado com o texto da regulamentação da reforma apresentado pelo governo, que serviu de base para o que foi aprovado pela Câmara, era o pessoal do setor de imóveis. A proposta original do governo até foi melhorada na Câmara, mas ainda não ficou do jeito que as construtoras e demais empresas do setor queriam. Vai ter aumento de tributação? Sem sombra de dúvida, especialmente para quem não produz imóvel mais popular.
Essa questão da tributação escalonada não é exatamente assim. Na verdade, a cobrança do imposto terá um redutor, o chamado redutor social, que é para diminuir o impacto dessa tributação nos imóveis de menor valor. Então, por exemplo, se você tem um imóvel popular, vai poder tirar ali cento e tantos mil reais da base de cálculo, para que esse percentual fique pequenininho. À medida que o imóvel subir de valor, esse redutor social não vai fazer diferença nenhuma. Num imóvel de R$ 4 milhões, um redutor de R$ 100 mil vai fazer pouca diferença. A ideia é justamente esta, beneficiar os imóveis que são mais baratos. Agora, é o óbvio que o preço dos imóveis vai subir. E o que vai acontecer é que o preço do imóvel mais barato vai acabar subindo também. Este é o problema de fazer esse tipo de política. Agora, nas operações de pessoa física para pessoa física não há incidência de IVA. O IVA é só para quem exerce atividade econômica.