BRASÍLIA – A Petrobras e o Ministério de Minas e Energia travaram um duelo na semana passada, quando ainda não havia assentado a poeira da divergência sobre o pagamento de dividendos extraordinários da petroleira. Com o apoio maciço do agronegócio, a Câmara aprovou, na noite da última quarta-feira, 13, um projeto que impõe a adição de biometano ao gás natural a partir de 2026, o que desagradou à Petrobras e levou a indústria a fazer contas. O Ministério de Minas e Energia, por sua vez, ficou do lado oposto.
Pelos cálculos da Associação Brasileira da Indústria Química (Abiquim), a adição de 10% de biometano ao gás natural, limite máximo previsto na lei, implicará gastos extras de R$ 1,712 bilhão à indústria, que é a maior consumidora de gás natural (usa tanto como combustível como matéria-prima).
A associação afirma que a iniciativa pode levar a “aumento significativo dos custos operacionais das empresas, levando até mesmo à paralisação de unidades produtivas”, uma vez que o biometano é mais caro do que o gás natural. Produtores de vidros e de energia elétrica, por meio de termelétricas, também estão insatisfeitos – o que, de maneira inusitada, colocou vendedores (no caso, a Petrobras) e consumidores de gás natural do mesmo lado.
“É uma venda casada, as empresas não podem ser obrigadas a comprar biometano junto com o gás”, afirma o presidente da Abiquim, André Passos Cordeiro. “O gás já é mais caro no Brasil, o que faz com que muitos dos meus associados prefiram queimar biomassa, como cavacos de madeira, apesar da menor eficiência energética. O aumento do custo do gás só fará com que a nossa indústria perca capacidade de competir com os importados”.
A lei aprovada na Câmara fixa como obrigatória a adição de 1% de biometano ao gás natural a partir de janeiro de 2026. O porcentual poderá ser alterado pelo Comitê Nacional de Política Energética (CNPE) até o teto de 10%. O texto agora tramita no Senado, onde será relatado pelo senador Veneziano Vital do Rêgo (MDB-PB).
Representantes do setor de biometano afirmam que a obrigação poderá ser cumprida por meio da compra de certificados pelos consumidores de gás natural – ou seja, não necessariamente será feita a mistura do combustível ao gás derivado do petróleo. E argumentam que, assim como o etanol e o biodiesel, o biometano também merece receber estímulos para se desenvolver, por ser uma fonte renovável.
O projeto de lei que tratou do tema, batizado de PL do “combustível do futuro”, começou a ser debatido em 2021, sob a ótica de inserir combustíveis mais limpos nos transportes de mobilidade urbana. Tanto que há um capítulo dedicado ao aumento da mistura de etanol à gasolina e outro sobre o biodiesel no diesel.
Em novembro do ano passado, o biometano entrou nas discussões como ingrediente do gás natural. A iniciativa partiu do relator, o deputado Arnaldo Jardim (Cidadania-SP), em diálogos com a Associação Brasileira do Biogás (Abiogás), e recebeu a bênção de políticos ligados ao agronegócio. Em 28 de fevereiro, a exigência se materializou no relatório do parlamentar, duas semanas antes da votação.
A principal fonte potencial de biometano no Brasil são as usinas de cana-de-açúcar, que fazem o gás com o bagaço que sobra da produção. Atrás, estão grandes produtores de proteína animal e, em seguida, os produtores agrícolas. Dos seis empreendimentos que hoje atuam na oferta de biometano no País, há dois aterros sanitários – um no Rio e outro no Ceará – que vendem o gás embarcando em caminhões que alimentam siderúrgicas e veículos pesados.
Não há uma rede de escoamento desse gás, tampouco ele está conectado à rede nacional do gás natural. A indústria consumidora afirma, por essas razões, que o biometano é mais caro.
A Petrobras chegou a apresentar uma nota técnica indicando o efeito adverso da exigência sobre o preço do gás ao relator, mas não o convenceu. “Tem muitos setores entusiasmados com o biometano e a cadeia que ele vai propiciar é extraordinária”, afirma Arnaldo Jardim. “Um por cento de adicional no gás natural em 2027, mesmo se o biometano for o dobro do gás natural, significa um acréscimo de 1% no custo. Não há impacto estruturante, e o custo não é tão diferenciado assim.”
A adição do biometano também foi ideia acolhida pelo secretário de óleo e gás do Ministério de Minas e Energia, Pietro Mendes, que vetou os argumentos da Petrobras em reunião reservada na Casa Civil, segundo relatos obtidos pelo Estadão.
Na quarta-feira, ele postou uma foto tirada com Arnaldo Jardim no plenário da Câmara em suas redes sociais. Na legenda, o seguinte comentário: “Texto construído no Executivo sob liderança do ministro Alexandre Silveira no Ministério de Minas e Energia e aperfeiçoado pelo deputado federal Arnaldo Jardim”.
Mendes é o principal nome de Silveira no conselho de administração da Petrobras, onde o ministro vem travando disputas nem sempre reservadas contra o presidente da petroleira, Jean Paul Prates. Dessa vez, assim como no embate sobre os dividendos, a Casa Civil pendeu para o lado de Silveira, e o texto foi aprovado com o apoio das lideranças do governo e do PT na Câmara.
“O governo apoiou o projeto. Casa Civil, Secretaria de Relações Institucionais, Minas e Energia, MDIC, todos com quem me relacionei apoiaram o projeto”, afirma Jardim. “Os setores que estão reclamando ficaram isolados até na indústria, os produtores de equipamentos ficaram entusiasmados, por exemplo”.
O principal argumento da Abiogás em favor do biometano é que os preços tendem a cair à medida que mais investimentos forem feitos no setor – o que no jargão técnico se chama de ganhos de eficiência.
Renata Isfer, que é presidente da entidade, afirma que há 28 projetos de produção de biometano em análise na ANP (Agência Nacional do Petróleo), o que poderia fazer com que a capacidade produtiva atual, avaliada em 1,4 milhão de metros cúbicos (inclusive para auto-consumo), seja elevada para 6,8 milhões em 2029.
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“Vai ter volume suficiente. Mas o fato de haver um incentivo na lei vai fazer o pessoal se chacoalhar para fazer mais”, afirma Isfer. “Uma planta de biogás sai do papel em um a dois anos”.
A queixa de consumidores é que não se pode prever quanto tempo vai levar até que esse ganho seja obtido, menos ainda se na escala necessária para atender ao mercado brasileiro a fim de se alcançar a marca aspiracional de 10%.
As empresas do setor de petróleo, representadas pelo Instituto Brasileiro do Petróleo e Gás Natural (IBP), são críticas da exigência e alegam que se trata de uma reserva de mercado, uma saída antiquada para um combustível que se vende como do futuro. O custo de se dar garantia de demanda aos fabricantes de biometano ao final recairá sobre os consumidores de todos os produtos, indiretamente.
“Já existem muitas indústrias que querem o biometano, por uma estratégia de descarbonização. Há mais demanda do que oferta hoje. Mas há outros consumidores que não têm essa necessidade ou não têm como absorver o preço a mais. Então, deixe o mercado se ajustar”, afirma Sylvie D’Apote, diretora executiva de Gás do IBP. “Não há porque o biometano custar o mesmo que o gás natural, uma vez que traz como atributo ser um combustível renovável.”
No meio da discussão, não faltou quem não propusesse como alternativa que os custos extras fossem bancados pelo Tesouro, ou que o BNDES subvencionasse por meio de linhas de crédito mais baratas o aumento da produção de biometano.
As iniciativas foram apresentadas como emendas ao texto de Jardim, que vedou a alteração no seu texto durante a tramitação na Câmara. Isso não impede, contudo, que novas tentativas sejam feitas no Senado, o que pode empurrar para os cofres públicos a solução do impasse entre os consumidores de gás e os fabricantes do biometano.
Arnaldo Jardim afirma que ele conteve esse movimento durante a tramitação na Câmara, como parte do acordo que firmou com o governo de que a conta não pesaria sobre a meta fiscal. Não se sabe, porém, como será terminará a tramitação do projeto no Congresso, nem quem serão os financiadores das redes que deverão ser construídas para escoar o novo combustível.
Procurados, a Petrobras e o Ministério de Minas e Energia não se pronunciaram.